Música, apenas música |
ABERTURAS
Estava na cozinha a vigiar o
esparguete ao lume, quando tocou o telefone. Ao mesmo tempo ia assobiando a
abertura da ópera La Gazza Ladra de Rossini, que estava a tocar numa
estação de rádio em FM. O fundo musical perfeito para cozinhar massa.
Senti-me tentado a ignorar o toque,
uma vez que o esparguete estava quase pronto e Claudio Abbado se aprestava para
conduzir a Orquestra Filarmónica de Londres ao auge da intensidade dramática. Por
fim, não tive outro remédio senão atender. Podia ser alguém conhecido a querer
entrar em contacto comigo por causa de uma nova proposta de trabalho. Baixei o
gás, fui até à sala e levantei o auscultador.
– Só peço dez minutos do teu tempo –
disse uma mulher do outro lado da linha.
Costumo ser bom a reconhecer uma
pessoa pela voz, mas confesso que nunca tinha ouvido aquela.
– Desculpe, mas com quem é que
deseja falar? – perguntei educadamente.
Contigo, é óbvio. Dez minutos. Dá-me
apenas dez minutos do teu tempo. Vais ver que conseguimos entender-nos na
perfeição. – A mulher tinha uma voz suave e profunda, mas, tirando isso, impossível
de descrever.
– Entender-nos?
– Entender-nos no que toca aos
sentimentos um do outro.
Meti a cabeça através da porta e
espreitei para dentro da cozinha. Uma nuvem de vapor branco saía da panela com
a massa ao lume e Abbado continuava a dirigir La Gazza Ladra.
– Vai ter de me desculpar, mas tenho
o esparguete quase pronto. Importa-se de ligar mais tarde?
Haruki Murakami, Crónica do pássaro de corda (1997, 1998)
[Lisboa, Casa das Letras, 2006, cap.1., p. 7]
Cozinhar esparguete ao som de uma magnífica ópera italiana conduzida por um maestro italiano é um preciosismo que bem enquadra num conto mágico de Murakami. Este não o li ainda, mas o excerto é bem apelativo... Espero que a massa tenha ficado al dente!
ResponderEliminarAinda não passei da primeira página, mas pela abertura toda a crónica deve ter sido cozinhada al dente...
EliminarQue abertura gira!
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