8 de abril de 2022

Mario Vargas Llosa, os tempos duros guatemaltecos durante a guerra fria

«Luego de una breve pausa, Bernays continuó: Arévalo quisiera hacer de Gua-temala una democracia, como los Estados Unidos, país que admira y tiene como modelo. Los soñadores suelen ser peligrosos, y en este sentido el doctor Arévalo lo es. Su proyecto no tiene la menor posibilidad de realizarse. ¿Cómo se podría convertir en una democracia moderna un país de tres millones de ha-bitantes, el setenta por ciento de los cuales son indios analfabetos que apenas han salido del paganismo, o todavía siguen en él, y donde por cada médico debe de haber tres o cuatro chamanes? En el que, de otra parte, la minoría blan-ca, conformada por latifundistas racistas y explotadores, desprecia a los indios y los trata como a esclavos.»

Teresa de Jesús queixa-se nas páginas autobiográficas do Libro de la vida (1588) dos tiempos recios* que então se viviam no mundo hispânico. A futura beata, santa e doutora da Igreja Católica referia-se às ações persecutórias efetuadas pela Inquisição em 1559, que levaram ao arresto do arcebispo Bartolomé Carranza de Toledo, à execução num auto-de-fé em Valladolid do clérigo Agustín de Cazalla e à publicação do Índice de libros prohibidos do inquisidor geral Fernando de Valdés. Mario Vargas Llosa inspira-se neste período conturbado quinhentista e transfere para o corpo romanesco dos Tempos duros (2019) os sucessos violentos que configuraram o golpe militar auspiciado pelos EUA e executado pelo coronel Carlos Castillo Armas, que levaram à renúncia do presidente Jacobo Árbenz da Guatemala em 1954.

Nos tempos agitados (récios/duros) que vivemos atualmente, apetece pouco falar de conflitos bélicos, sobretudo quando se trata da invasão de forças estrangeiras a um país soberano detentor dum governo legítimo sancionado pela vontade popular. O Nobel da Literatura 2010 fê-lo nas vésperas da crise pandémica revelada nos finais de 2019 e da agressão russa sem quartel ao território ucraniano em 2022. Mal sonhava então como as lições mal aprendidas do devir histórico estão sempre ao dispor dos déspotas, autocratas e tiranos de primeiro ou de segundo plano. A propensão do fabulador peruano para os relatos de factos reais é antigo, tendo assumido neste caso a variante bem sua conhecida duma novela de dictador(es), máxime no tratamento narrativo dado dezanove anos antes em La fiesta del chivo.

O leitmotiv novelesco assenta na história duma mentira gizada pela propaganda política, registada nos manuais oficiais de História como uma verdade absoluta. Os fake news da época espalharam aos quatro ventos a acusação que o regime guatemalteco alentava a entrada do comunismo soviético no continente e a invasão libertadora do país começa a ser delineada. Uma inverdade denunciada desde o início da ficção e mantida até ao final. Então como agora, a contrainformação posta ao serviço do poder instituído e dos interesses multinacionais no seu melhor são avaliados à exaustão nesta crónica-saga de golpes e contragolpes sucessivos, perpetrados sempre em nome do povo. Neste caso concreto, evidencia-se o papel assumido pela United Fruit norte-americana na conspiração orquestrada sob a batuta experiente da CIA e a conivência superior de Eisenhower.

Toda a criação artística é intrinsecamente subjetiva, por muito que os seus obreiros apresentem os factos relatados como genuinamente objetivos. O romance histórico não foge a essa premissa axiomática. As figuras reais vestem o manto diáfano da fantasia e reduzem-se a atores ilusórios de faz-de-conta, ora como paladino dos mais altos ideais de vida, ora de meras caricaturas da espécie humana. É neste processo de transfiguração literária, que aquele sujeito sinistro, meio tísico e ridículo de coronelzeco magricela, com olhos de rato, bigodito mosca hitleriano e cabelo quase rapado nos é apresentado. Entre o Antes e o Depois do regime legal da Revolução de Outubro de 1944 e o fraudulento da alegada Revolução Libertária de 1954, o tal ditador centro-americano conhecido por Cara de Hacha ou CaCa acaba por ceder o protagonismo à sua queridaapodada de Miss Guatemala.

O magnicídio do caudilho autoritário em 1957, três anos após ter sido plebiscitado como candidato único à presidência guatemalteca, podia ter posto um ponto final no relato, mas prossegue com mais alguns episódios, aflorados com uma veracidade duvidosa ou pouco clara, a preencher algumas parcelas de tempo que se aproximam da data de publicação do romance, quando a Casa Branca ainda era ocupada por Trump. O fabulador e ex-candidato peruano vencido nas urnas não se satisfaz com o relato duma crónica ficcionada dum golpe de estado sangrento, completando a sua versão dos factos com muitas mentiras e invenções exigidas pela criação poética, as tais que traçam a raia entre o real e o imaginário. Pula o período de terror pautado pela Guerra Fria e centra-se nas guerras quentes, mornas e de todas as temperaturas dos nossos dias, aquelas que a ambição do homo sapiens nos tem vindo a habituar desde que surgiu à face da terra. 

Rufino Tamayo, Dualidad (1964)

NOTA
Vd. Santa Teresa de Jesús, Libro da la vida. Salamanca: 1588. Cap. 33, § 5: «También comenzó aquí el demonio, de una persona en otra, procurar se entendiese que había yo visto alguna revelación en este negocio, e iban a mí con mucho miedo a decirme que andaban los tiempos recios y que podría ser me levantasen algo y fuesen a los inquisidores.»

2 comentários:

  1. É magnífica a criatividade de Vargas Llosa ao serviço da literatura histórica, relatando as realidades que nos agridem nos tempos de guerra que tudo arrasam à sua frente. Quiséramos nós que a passagem dos séculos moldasse uma alma digna de se apelidar humana aos homens... Infelizmente, não temos a memória dos elefantes para aprendermos as lições e a história repete-se, com todos os seus horrores, perante os nossos olhos.

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    1. E a criatividade de Vargas Llosa ao serviço da literatura histórica não tem fim, porque a série de ditadores sangrentos no contexto latino-americano são um poço sem fundo. E assim as "novelas de dictador(es)" lá vão proliferando a um ritmo incessante...

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