27 de maio de 2022

Sons da música no coração

POSTERS ORIGINAIS
[Musical, 1959 - Filme, 1965] 
CLIMB EV’RY MOUNTAIN
Climb ev’ry mountain | Search high and low | Follow ev’ry byway | Ev’ry path you know || Climb ev’ry mountain | Ford ev’ry stream | Follow ev’ry rainbow | Till you find your dream || A dream that will need | All the love you can give | Ev’ry day of your life | For as long as you live || Climb ev’ry mountain | Ford ev’ry stream | Follow ev’ry rainbow | Till you find your dream || A dream that will need | All the love you can give | Ev’ry day of your life | For as long as you live || Climb ev’ry mountain | Ford ev’ry stream | Follow ev’ry rainbow | Till you find your dream.
Oscar II Hammerstein / Richard Rodgers

Andava eu no início do ensino secundário quando o The sound of music (1965) se estreou entre nós e se tornou no maior êxito da permanência contínua num cinema de Lisboa. Registam as notícias da época sobreviventes à voragem do tempo que terá permanecido no cartaz do Tivoli 58 semanas com várias sessões diárias, tendo sido visto, só ali, por mais de 700 000 espetadores. Espantoso mesmo nos nossos dias um tal sucesso, sobretudo quando a projeção de longas e curtas metragens se transferiu em grande parte das salas tradicionais para os ecrãs maiores ou menores dos televisores domésticos. Tecnologias e práticas agora vulgares completamente desconhecidas na época.

Tive conhecimento dos primeiros ecos do sucesso do filme a partir da trilha sonora gravada em disco, que as rádios começaram a transmitir desde os primeiros instantes a qualquer hora do dia ou da noite. Ouvi-a depois vezes sem conta no gabinete de Religião e Moral, onde o P.e Naia tinha por hábito receber os alunos, mesmo aqueles que já não frequentavam a disciplina, como seria o meu caso. Falava-se um pouco de tudo, sem tabus, e até das temáticas mais cruciais que o bom senso permitia abordar. O ambiente dramático-musical levado ao grande ecrã por Robert Wise permitia abordar alguns assuntos que já tinham entrado no domínio público, apesar dos cortes cirúrgicos da censura.

Assisti à projeção do Música no Coração na plateia do Salão Ibéria do Parque da Rainha D. Leonor. Fi-lo numa matinée de fim de semana numa sala completamente esgotada, à semelhança das restantes sessões que ali se terão realizado. Por entre dentes trauteei as melodias compostas para um musical homónimo idealizado para os palcos americanos em 1959 e transposto seis anos depois para as telas de todo o mundo. Não terei sido o único a fazê-lo. Ainda hoje haja quem continue a dar vida às canções de Oscar II Hammerstein e Richard Rodgers e as interprete como pode e sabe sempre que se proporciona. A história d'A família Trapp continua a ter os seus fiéis intérpretes amadores e profissionais.

À distância de várias décadas, o Parque das Caldas da Rainha mudou de nome e chama-se agora de D. Carlos I, o velho cinema erigido junto aos Pavilhões do Hospital Termal ruiu e não foi substituído por coisa nenhuma, o livro passou de moda e caiu no mais completo esquecimento, o LP cessou de rodar nos velhos gira-discos e foi agora convertido em adaptações vídeo alojadas no YouTube, o  filme deixou de ser projetado pelas televisões na quadra de Natal e foi trocado pelo Sozinho em casa original e sequela(s). A história dos cantores da família von Trapp cedeu o por outras histórias contadas-cantadas doutras famílias. Venham elas para as podermos trautear, assobiar ou dramatizar.     

MARIA AUGUSTA TRAPP
The story of Trapp Family Singers (1949) | A família Trapp (1962)

23 de maio de 2022

Patrick Modiano, remissão de penas obscuras da infância e da juventude

« C’était l’époque les tournées théâtrales ne parcouraient pas seulement la France, la Suisse et la Belgique, mais aussi l’Afrique du Nord. J’avais dix ans. Ma mère était partie jouer une pièce en tournée et nous habitions, mon frère et moi, chez des amies à elle, dans un village des environs de Paris. »
Patrick Modiano, Remise de peine (1988)

Lidos os livros mais antigos de Patrick Modiano, comecei a construir a ideia de cada um deles se comportar como uma sucessão ininterrupta de fragmentos pertencentes a uma única história, sempre curtos e inconclusivos. Estaria repartida por uma multiplicidade de intérpretes, como se se tratasse dum imenso roman fleuve, cuja nascente se vai dando a conhecer paulatinamente, a engrossar como pode o caudal e a remetê-lo para uma foz bastante distante que com paciência talvez se deixe avistar e tocar. Esta sensação de déjà vu não me impede, todavia, de regressar ciclicamente à sua companhia. A comprovada técnica de escrita do Prémio Nobel da Literatura 2014 sobrepõe-se sempre ao universo temático algo repetitivo detetado. Comecei com essa dúvida quando retomei o volume de romances, publicado pela Quarto-Gallimard, e me atirei à Remissão da pena (1988), cujo título, por si, me levava a comprovar a suspeita já referida. Cada vez me convenço mais de ter acertado nessa suspeita.

O caráter autobiográfico confiado ao leitor é claro desde as linhas iniciais do relato. Esta afirmação não encerra em si uma mera suspeita difícil de descartar. É recorrente em anteriores incursões do criador gaulês pelas esteiras da escrita. As evidências trazidas para a ficção são sempre copiosas e contínuas. O eu efabulador assumido pela instância discursiva encarrega-se de reiterar essa linha de fusão perene do real e do imaginário. Patrick Modiano, na papel de autor do livro, refugia-se no testigo ingénuo do jovem Pastoche-Patrick, o narrador-protagonista revelado. Fá-lo ao sabor da pena e do elã do momento, nas sete dezenas de páginas impressas que dão corpo aos fragmentos memorialistas ali arrolados, vividos/recriados numa infância-juventude distante e à espera duma remissão/alivio total das penas/provações obscuras por si sentidas quando rondava os dez anos de idade.

A dar nos indícios facultados neste conto longo ou novela breve disfarçada de romance ‒ etiquetas tradicionais irrelevantes para a decifração de cada um dos episódios elencados ‒, o núcleo central da autoficção retrospetiva situa-se num pós-guerra não muito distante de meados da década de 50. O cruzamento de eventos factuais com os factíveis permite-nos apontar com alguma margem de segurança para os anos que se seguiram à publicação do Touchez pas au grisbi (1953), um roman série noire de Albert Simonin, oferecido ao jovem memorialista por um dos memoráveis destacado. Os dados familiares dispersos do relator-relatado, o interno e o externo, bem como as relações duns e doutros com os demais residentes-visitas daquela casa térrea das proximidades de Paris onde só viviam mulheres e os pais primavam pela ausência, a coincidência de nomes, atividades e relacionamentos de todos eles, ajudam a traçar o décor cénico evocado e a encaixar todas as peças soltas dum puzzle habilmente concebido.

O poder exercido pelo imaginário infantil é ilimitado. A capacidade de criar mundos alternativos é imutável. Os mecanismos postos à sua disposição para explicar o mundo envolvente são imediatos. O narrador Patrick não se cansa de recordar as confabulações tecidas por Pastoche de reduzir o cabaret Le Carroll's da sensual Frede a um idílico circo de lona branca listada de vermelho, de fantasiar as mais mirabolantes aventuras noturnas no castelo abandonado do Marquis de Caussade e Roi de l'Armagnac ou de avistar no jardim da casa com fachada de hera onde então vivia o fantasma do docteur Guillotin a surgir por entre as clematites do túmulo ali existente. No espírito do narrador-autor adulto ficaram gravadas algumas frases ouvidas em criança. Consigo quedaram certos objetos de ilusória vulgaridade mas de crucial valor para içar parte do véu envolvente dos eventos revividos sem todavia os revelar na sua totalidade. Assim funciona a literatura na sua busca dos tempos perdidos/recuperados, feita à maneira de Proust mas com um número incomensurável menor de palavrasCom uma mão revela, com a outra esconde e com as duas sugere. Sem nunca se comprometer. Essa tarefa que fique ao cuidado do livre arbítrio dos leitores se para aí estiverem voltados.

18 de maio de 2022

Construções emblemáticas

[Bruxelles, KBR, Ms. 10308, fol. 1]

         Autre Nauray –  Tant Que Je Vive           

Rezam as divisas registadas em francês na emblemática ducal de Dijon que Philippe le Bon (1396-1467) teria como lema pessoal Aultre naray (port. «não terei outra»), ao que Isabel de Portugal (1397-1471) lhe respondia com Tant que je vive (port. «enquanto eu viver»). Ela é nem mais nem menos do que o único membro feminino da Ínclita Geração de Altos Infantes, ele é o todo poderoso representante do ramo borguinhão da Casa Capetíngia de Valois.

Esta declaração de amor eterno e originalidade duvidosa terá sido dita noutras ocasiões por outras entidades de sangue azulado, o que não impediu o autoproclamado Grand duc d'Occident de a dedicar à sua terceira e derradeira consorte, a única filha de Dom João I de Avis e Dona Filipa de Lencastre, que terá correspondido como era espectável. A aliança resumida no monograma PY ficava assim garantida para a eternidade, a provar que a noblesse oblige.

A Duquesa Portuguesa sobreviveu ao Duque Borgonhês quatro anos. Protegida pela paliçada do corpo da divisa, ignorou os devaneios extraconjugais sofridos e os diz-que-diz das más-línguas que a cercavam. Desdenhou o facto do Tosão de Ouro criado em sua honra que trazia ao pescoço moreno fizesse lembrar ao marido os caracóis louros da amante flamenga. Deitou tudo às ortigas e seguiu em frente como uma Avis-Lencastre de gema que era e se gabava de ser.

[Bibliothèque royale de Belgique, ms. 9242]

13 de maio de 2022

Cantigas profanas da Carmina Burana

Macacaria, o casamento da galinha
Manuel Francisco (?) - Frag. 1660/1667 
[Lisboa, Museu Nacional do Azulejo]

FORTUNA IMPERATRIX MUNDI
O Fortuna | velut luna | statu variabilis, | semper crescis | aut decrescis; | vita detestabilis | nunc obdurat | et tunc curat | ludo mentis aciem, | egestatem, | potestatem | dissolvit ut glaciem. || Sors immanis | et inanis, | rota tu volubilis, | status malus, | vana salus | semper dissolubilis, | obumbrata et velata | mihi quoque niteris; | nunc per ludum | dorsum nudum | fero tui sceleris. || Sors salutis | et virtutis | mihi nunc contraria, | est affectus | et defectus | semper in angaria. | Hac in horasine mora | corde pulsum tangite; | quod per sortem | sternit fortem, | mecum omnes plangite!
Carmina Burana: 
Cantiones profanæ, cantoribus et choris cantandæ, comitantibus instrumentis atque imaginibus magicis (c. 1100-1200)

Na viragem do Ⅱ.º para o milénios, os monges eruditos e errantes conhecidos por goliardos terão compilado a Carmina Burana, um conjunto de 254 cantos dramáticos de natureza mordaz e malicioso, deixados manuscritos num códice encontrado em Benediktbeuern na Baviera e publicados em 1847. Compostos em latim macarrónico, com incursões rápidas ao alto-médio alemão vernáculo e vestígios do frâncico e do provençal, datam dos sécs. -ⅩⅢ e revelam fortes influência duma cultura medieval plena que já se preparava para abrir as portas ao renascimento italiano.

Nas antevésperas da Segunda Guerra MundialCarl Orff musicou 24 desses poemas satíricos oriundos dum passado europeu remoto, deu-lhe a forma duma cantata cénica intitulada Carmina Burana: Cantiones profanæ, cantoribus et choris cantandæ, comitantibus instrumentis atque imaginibus magicis (1935-1936). Estreou-a na Alte Opera de Frankfurt a 8 de junho de 1937, já a Guerra Civil Espanhola tinha dado os seus primeiros passos. A Rota Fortunæ, no seu fluxo cíclico de altos e baixos, não se cansava de revezar os vencedores dum dia com os perdedores do seguinte.

No dia 13 de maio de 2018 o Teatro das Figuras de Faro abriu as portas a todos os que quiseram assistir a uma versão original da Carmina Burana, interpretada pelo Coral Ossónoba e solistas. Vestido de mero espetador, trauteei em silêncio a Fortuna Imperatrix Mundi que abre e encerra a cantata. Uma voz interior disse-me que integrasse o grupo. Segui o conselho. A roda da fortuna estaria do meu lado quando pedisse uma audição. Assim foi. Em junho desse mesmo ano fui aceite. Até hoje e com muitos amanhãs pela frente. Assim se me mantenha a voz afinada e o ouvido apurado.

Rota Fortunae: Extant/Extinction
[ArtXchange Gallery, 2019]

FORTUNA IMPERATRIZ DO MUNDO
Ó Fortuna | és como a Lua | variável de estado, | sempre aumentas e diminuis; | vida detestável | ora oprime | e ora cura | brinca com a mente; | a miséria, | o poder, | ela os funde como gelo. || Destino monstruoso | e vazio, | tu – roda volúvel – | és má, | vã é a felicidade | sempre dissolúvel, | sombria | e velada | também a mim contagias; | agora por brincadeira | o dorso nu | entrego à tua perversidade. || A fortuna na saúde | e virtude | agora está contra mim. | Dá | e tira | mantendo sempre escravizado. | Nesta hora | sem demora | tange a corda | vibrante; | porque a sorte | abate o forte, | chorais todos comigo!

9 de maio de 2022

Dia da Europa e de outros eventos cíclicos dignos de memória

Abraham Ortelius, Theatrum Orbis Terrarum, Antuérpia, 1570

Dizem os almanaques ser o dia 9 de maio o 129.º do calendário gregoriano e 130.º nos anos bissextos, faltando, portanto, 266 dias para o final do ano. Informações de pouca monta se logo de seguida se não elencasse um conjunto considerável de eventos cíclicos de caráter global dignos de memória e de celebração especial.

Neste mesmo dia de anos diferentes nasceu e morreu muita gente como aliás nos restantes dias do ano. Só os nomes das estrelas de primeira grandeza figuram nestas listagens de almanaque. Destaco Schiller ‒ falecido em 1805 ‒, por ter versificado a Ode da Alegria, o hino oficial da União Europeia musicado por Beethoven.

Todos os anos se festeja nesta data o Dia da Europa. Esquecemo-nos das terras e usos, rocas e fusos que nos caraterizam e abraçamos uma comunidade de 27 países unidos na diversidade. Deixámos de ocupar o centro do mundo ‒ como durante muito tempo se pensou ‒ e passámos a meros cidadãos do Theatrum Orbis Terrarum.

Fossem eles números redondos, assinalar-se-ia hoje o desembarque da Nona Cruzada em Acre (1271), a assinatura do Tratado de Windsor (1386) ou a adesão da Alemanha Ocidental à NATO (1955). Com toda a pompa e circunstância habituais, a Federação da Rússia comemora cada 9 de maio o Dia da Vitória na Guerra Patriótica (1945).

O regime do Kremlin não fugirá este ano aos desfiles bélicos tão ao agrado da defunta URSS no final da Segunda Guerra Mundial. se desconhece as surpresas que o atual senhor de Moscovo terá em mente para solenizar a efeméride vivida nesta data: gritar as vitórias sublimes do passado ou calar as derrotas clamorosas do presente.

4 de maio de 2022

Tiago Feijó, doze dias e doze noites entre o sonho e a realidade

«Sim, pode, é claro que António pode fazer isso pelo pai. Pode, mas não quer. Aliás, neste instante, ele cogita que não queria sequer ter atendido àquele telefo-nema, não queria ter ouvido à distância a voz de Silvio Rodríguez chamando, não queria nem mesmo ter acordado para este dia que se alargará em muitos, um dia encavalado numa dúzia de dias, doze noites transcorridas como que dentro de um único e enormíssimo dia.»

Nasce-se e morre-se hoje em dia num hospital. Entre o alfa e o ómega da nossa realidade existencial, por ali transitamos repetidas vezes ao longo da nossa viagem pela vida. Raras são as exceções arroladas. Ficamos horas, semanas, meses, anos a fio. Voltamos sempre que necessário. Quer queiramos quer não. Depois as entradas sem saída. As definitivas. Assim o relato confiado por Tiago Feijó às duas centenas e picos de páginas virtuais-físicas dos Doze dias (2021), o último romance inédito a receber o Prémio Literário Manuel Teixeira Gomes, atribuído pela Câmara Municipal de Portimão a autores da lusofonia. Li-o dum fôlego num período de calma absoluta e deixei-o respirar um pouco para um repouso merecido. Comecei a delinear estas notas numa enfermaria de hospital. Passagem rápida de quem não se quer demorar muito num local indesejado e que já começa a conhecer muito bem. Muito mais do que desejaria. Até ao momento, tenho-o deixado sempre pelos meus próprios pés, o que não é nada mau. Prossegui e conclui a reflexão de novo em liberdade e resolvido a mantê-la inviolável num futuro a perder de vista no horizonte. Esta curta estada serviu-me para conferir alguns dos tópicos referidos no texto recentemente distinguido pela edilidade algarvia.

O júri que a premiou assinala no prefácio por si assinado tratar-se duma estrutura narrativa complexa e original, exigindo a atenção redobrada a quem a lê, permitindo-lhe assim usufruir cabalmente da profundidade e beleza nela contida. Palavras avisadas de quem acedeu às histórias de vida ali contadas em primeiríssima mão. A formação clássica do autor podê-lo-á ter levado a trilhar percursos previamente traçados pelo mundo grego, o grande fundador da literatura ocidental que hoje nos rege. Nada de condenável, por conseguinte, o ter iniciado o relado in medias res, à boa maneira das epopeias antigas de Homero e Virgílio ou das mais recentes de Dante e Camões. É verdade que este modo versificado de efabular eventos acontecidos ou fantasiados tenha caído entretanto em desuso, não impedindo, todavia, os criadores dos heróis da imaginação de os ter transferido para a prosa poética dos romances atuais, o género por excelência de desenhar imagens com palavras, onde a faculdade de começar pelo meio-princípio/fim diegético é total, a ponto de ter tomado de assalto as estantes das livrarias e de ter ganho a pulso a preferência dos leitores de todas as idades.

Mais do que a descrição exaustiva dos feitos heroicos duma figura insigne conhecida de todos, assistimos, nesta rapsódia memorialista de avanços/recuos constantes, ao drama representado por dois seres anónimos ligados pelos laços familiares. Um filho que acompanha o pai nos derradeiros doze dias dos seu percurso existencial. Tantos quantos os meses do ano, tantos quanto as horas solares do dia. Cabalas numéricas ocasionais/intencionais para assim destacar a unidade/diversidade dum ciclo vital preciso. O narrador-plateia, qual corifeu das tragédias-comédias áticas, toma conta do discurso e desnuda o ser mais íntimo dos atores em cena naquele cenário de hospital duma cidadezinha interiorana do estado brasileiro de São Paulo. Fá-lo num nós majestático e com grande economia de meios espácio-temporais e de ação. A tal unidade aristotélica propícia à catarse purificadora final, ao apaziguamento total dos protagonistas, ao apagamento de recordações recalcadas, trazidas do passado, a assombrar o presente e a comprometer o porvir.

A crónica diarística lembrada/falada-revelada ao sabor da corrente do pensamento inicia-se numa terça-feira (dia de Marte, o deus romano da guerra) e termina num sábado (dia do repouso de Jeová, o deus hebraico da criação). De 15 a 27 de dezembro de 2015, são resumidos os instantes mais marcantes da caminhada acidentada dum grupo familiar restrito. Desavinda no início da resenha, reconciliada no final. O poder libertador da palavra a obter o desidério maior que a encerra e lhe sentido. O avô terá findado o seu ciclo existencial no dia/noite de Natal. Levou consigo a imagem do neto de colo, o olhar pacificado das mulheres da sua vida, a presença dos filhos irmanados entre si. O nascer-viver-morrer-renascer simbólico cumprira-se totalmente. O sonho-realidade fundidos num todo único e indivisível que constitui a própria essência humana. Os doze dias postos a nu no relato começam a ser revelados já os atos evocados iam a meio, talvez por ter sido aquele em que o filho chorou pela primeira vez o estado debilitado do pai. Conclui vinte e quatro capítulos depois, tantos quantos os cantos contidos na Ilíada e na Odisseia homéricas, no preciso momento em que o reencontro dos dois protagonistas do drama-romance inicia o sua caminhada imparável de pacificação e começa a projetar-se decididamente até onde a vista alcança. Os extremos tocam-se. O segredo está em saber encontrá-los.