31 de agosto de 2022

O ver para crer de São Tomé

Fantasias caídas das ilhas voadoras

Aos 10 anos, deixei de acreditar no Menino Jesus e no Pai Natal. A culpa terá sido do processo natural de crescimento que me fez transitar ante da idade das fadas e das varinhas de condão para a dos índios e cowboys do Far West norte-americano. De permeio pulularam muitas outras histórias de aventuras dos livros aos quadradinhos partilhados com os colegas de brincadeira da rua. Entre os recreios da primária e da catequese as quimeras de ilhas voadoras e de castelos de areia começaram a ruir.

Aos 20 anos, deixei de acreditar no transcendente total revelado pela religião ainda reinante no país das mil maravilhas à beira-mar plantado que sempre fora o meu. A mudança da pequena cidade de província para a grande cidade metropolitana abriram-me as portas para a realidade palpável vivida no dia a dia. As leituras que então me começaram insistentemente a visitar ajudaram no percurso imparável de fuga total à fantasia infantil das histórias da carochinha para o universo tangível que nos rodeia e abriga. 

Aos 30 anos deixei de acreditar na política militante dos partidos do poder ou a ele apegado. Depois de perder a fé nos paraísos celestes de origem divina, perdi a fé nos paraísos terrestres de natureza humana. À medida que as eutopias se diluíram no horizonte de eventos a perder de vista, as distopias abeiraram-se cada vez mais a toque de caixa. A utopia desfez-se e a miragem utópica dum oásis de perfeição dos sonhos cor-de-rosa abrigou-se nas páginas da ficção científica ou dos contos maravilhosos.

Aos 40 anos deixei de acreditar na amizade genuína dos colegas de profissão. As disputas insanas travadas durante os concursos anuais de colocação, as rivalidades alimentadas no decorrer do estágio pedagógico, as guerrilhas insanas para obter os melhores horários fizeram-me arrepiar caminho e pôr de lado o mito da solidariedade interpares. A ingenuidade também tem prazo de validade. Dura o tempo dum já era. A maré alta chega à praia e leva à sua frente as mais belas esculturas à beira-mar levantadas.

Aos 50 anos deixei de acreditar nos atalhos formativos seguidos pela pequenez das medidas educativas do novo milénio. O copo 1/2  cheio transformou-se pouco a pouco num copo 1/2 vazio a ameaçar o vazio total dum copo esvaziado de tudo no seu interior. Nem sequer um mero castelo feito de nuvens efémeras sem gota de água no seu interior. Uma seca total a converter-se numa descrença global ou numa crença em coisa nenhuma. Uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma, como alguém em tempos disse.  

Aos 60 anos deixei de acreditar nos malabarismos de faz-de-conta duma carreira académica sem fim à vista. Cansei-me de perder os dias a escrever papers sem ter tempo de ler os alheios. Cartas fora do baralho. DefinitivamenteA sineta tocou forte e a hora de virar a página chegouImparável. A corrida em contrarrelógio entrou na rampa descendente. A aposentação, a reforma ou a jubilação perfiladas no horizonte de eventos. Indiferentes aos sentidos ocultos nas etiquetas seguidas. Encantos caídos, encantos criados.   

Aos 70 anos deixei de acreditar em castelos nos Pirenéus, feitos de areia ou neblina a fugirem entre dedos, alçados em ilhas voadoras dum qualquer reino ideal das histórias da carochinhaIgnoro qual será o meu descrer nesta nova década agora iniciada. Talvez chegue aos 81,06 anos de idade, os tais que as estatísticas de esperança média de vida global calculadas pelo INE me dizem poder atingir com a segurança matemática.  para afirmar que o crer e o descrer se confundem, como o ver para crer de São Tomé.

25 de agosto de 2022

Giuliano da Empoli, o mago do Kremlin e os homens de Putin

« On l'appelait le " Mage du Kremlin ", le " nouveau Raspoutine ". À  l'époque il n'avait pas un rôle bien défini. Il se manifestait dans le bureau du président quand les affaires courantes avaient été expédiées. Ce n'étaient pas les secrétai-res qui le prévenaient. Peut être que le Tsar en personne le convoquait sur sa ligme directe. »
Giuliano da Empoli, Le mage du Kremlin (2022)
«Il mago del Cremlino, lo chiamavano, il nuovo Rasputin. All'epoca, non aveva un ruolo ben definito. Si materializzava nell'ufficio del Presidente quando gli affari correnti erano stati sbrigati. Non erano le segretarie ad avvisarlo. Forse lo Zar in persona lo convocava sulla linea diretta.»
Giuliano da Empoli, Il mago del Cremlino (2022)

Os crimes hediondos cometidos por certas figuras sinistras decisoras do nosso destino coletivo atingem por vezes tais níveis de crueldade, que sentimos verdadeiro pudor de dizer ou escrever os seus nomes, tão atrozes se tornaram de articular ou ouvir os sons que os formam. Mudamo-los por alcunhas perífrases sarcásticas de identificação garantida, ao sabor das normas medievais galaico-portuguesas das cantigas de escárnio e maldizer, tais como Botas, o Dinossauro Excelentíssimo de Santa Comba ou Cerillita, el galán del No-Do, quando nos referimos de modo despectivo ao alegado messias lusitano e ao dito caudilho hispânico. De quando em quando, porém, somos obrigados a alternar o apodo trocista com o ortónimo explícito da figura sinistra central, convocada por um relato situado nos domínios do real ficcionado. É o que ocorre, por exemplo, com o romance de estreia do ítalo-suíço Giuliano da Empoli, Le mage du Kremlin (2022), em que o atual senhor todo poderoso da Federação Russa é nomeado tanto pelo falso epíteto encomiástico Czar como pelo legítimo de Putin.

A trama do relato segue o percurso político traçado por Vadin Baranov, eminência parda da nomenclatura moscovita atual, o dito Mago do Kremlin ou Novo Rasputine. Ao que parece, o perfil fictício dessa figura enigmática ter-se-á erigido à sombra oligárquica de Vladislav Surkov, o principal ideólogo do regime despótico russo pós-soviético do mandarim supremo que a chefia desde os alvores do terceiro milénio. A personagem criada pela ficção toma rapidamente conta do fio condutor do discurso, revelando ao emissor inicial do romance os eventos mais significativos do seu roteiro pessoal de vida, aquele que o conduziu do ambiente aristocrático do avô e aburguesado do pai aos bastidores do poder absoluto exercido pelo antigo dirigente máximo do KGB e FSB, primeiro-ministro, presidente e autocrata absoluto do maior país medido à escala global.

Dispenso-me de falar do rasto tóxico colossal deixado atrás de si pelo candidato nostálgico ao estatuto autocrático e ilimitado de novíssimo Czar de Todas as Rússias, as passadas e as futurasSinto-me pouco motivado para dar uma visibilidade suplementar a esse sonho imperial insano do mais destacado tiranete vivo dos nossos dias. Ouvir a toda a hora as notícias sobre a guerra na Ucrânia torna particularmente perturbador tomar contacto com um texto centrado no ponto de vista dum dos mentores do invasor externo desse país. Em circunstâncias normais, teria alguma relutância acrescida de encetar a leitura dum livro que viesse acompanhado dum slogan promocional da editora, tal como o da Gallimard registado na tira anexa envolvente: Les hommes de Poutine. Digamos que talvez sentisse alguma curiosidade ligeira de folhear o exemplar numa qualquer banca exposta ao público. A verdade é que a obra ainda a cheirar a tinta acabada de imprimir me foi dada por uma amiga de longa data no início destas férias de verão. Impossível recusar a viagem completa pelo seu interior.

Vencidos os pruridos iniciais de leitura e entrado no espírito descritivo do escrito, fica a sensação de se sair do domínio estrito da imaginação pura e de se entrar no âmbito do ensaio de ciência política disfarçado de romance de cariz biográfico autorrevelado duma personalidade fictícia verosímil. A entidade emissora externa, enquanto conselheiro jurídico da intelligentsia italiana e prática jornalística geoestratégica, transfere para o narrador de primeira instância a tarefa de entrevistar o ex-mentor privilegiado do pretenso sucessor de Ivan-o-Terrível, Pedro-o-Grande, Lenine ou Staline. Por vezes é crucial pronunciar os nomes dos autocratas sanguinários que trocaram o modelo horizontal do poder de estado pelo vertical, i.e., o prepotente, o ditatorial, o totalitário. A megalomania doentia de Vladimir Putine, ao tentar impor aos seus súbditos submissos uma nova realidade, uma nova era, um novo mundo, com novas ideias, com novos heróis, com novos ricos, acaba por transformar a Nova Rússia dum futuro risonho, glorioso, temido, na Velha Rússia dum passado macabro, sombrio, acabado. O apocalipse referido pelo Mago do Kremlin ou Novo Rasputine sai das páginas das histórias fingidas e entra no dia a dia das histórias verdadeiras que regem estes nossos tempos conturbados atuais.

19 de agosto de 2022

Portas de entrada & Portas de saída

René Magritte, La victoire (1939)

Laberinto de historias

Una historia no tiene principio ni fin, tan solo puerta de entrada.

Una historia es un laberinto infinito de palabras, imágenes y espíritus conjurados para desvelarnos la verdad invisible sobre nosotros mismos. Una historia es, en definitiva, una conversación entre quien la narra y quien la escucha, y un narrador solo puede contar hasta donde le llega el oficio y un lector solo puede leer hasta donde lleva escrito en el alma.

Esa es la regla maestra que sostiene todo artificio de papel y tinta, porque cuando se apagan las luces, se silencia la música y se vacía el patio de butacas, lo único que importa es el espejismo que ha quedado grabado en el teatro de la imaginación que alberga todo lector en su mente. Eso y la esperanza que todo hacedor de cuentos lleva dentro: que el lector haya abierto su corazón a alguna de sus criaturas de papel y le haya entregado algo de sí mismo para hacerla inmortal, aunque solo sea por unos minutos.

Y dicho esto con más solemnidad de la que probablemente merece la ocasión, más vale aterrizar a ras de página y pedirle al amigo lector que nos acompañe al cierre de esta historia y nos ayude a encontrar lo más difícil para un pobre narrador atrapado en su propio laberinto: la puerta de salida.

Carlos Ruiz Zafón, El laberinto de los espíritus
Barcelona: Planeta, 2016; 864

11 de agosto de 2022

Os olhares paleolíticos dos auroques da gruta de Lascaux no Périgord Noir

Aurochs, Chevaux et Cerfs

A Capela Sistina da arte parietal 

Os dois auroques imponentes estão a olhar-se fixamente cerca de 17 000 anos (milénio a mais ou a menos), indiferentes a quem os olha intensamente de perfil. Primeiro, pelos artistas pré-históricos sem nome que os registaram há uma infinidade de tempo que ninguém pode precisar com segurança. Depois, pelos cavalos e veados que os olham com olhar firme em pano de fundo do painel. Finalmente, por mais de 1 000 000 de observadores atuais que os olharam ao vivo e a cores desde que se deram a ver aos visitantes entre 1948 e 1963. Os escassos 15 anos em que estiveram expostos aos olhares curiosos que os quiseram olhar nas profundezas obscuras da gruta de Lascaux no Périgord Noir, departamento francês da Dordogne, nos antigos ducados da Aquitaine e da Gascogne.    

Quando olhei para o olhar retido no tempo dos dois auroques, o fiz em segundos olhares. A respiração dos sapiens sapiens modernos e a humidade oriunda do exterior começaram a deteriorar a herança dos seus ancestrais paleolíticos solutreanos ou madalenenses do vale do Vézère, que andariam por ali nas proximidades do sítio de Cro-Magnon. Para eliminar a maladie verte dos fungos e a maladie blanche do calcite levaram as autoridades oficiais gaulesas a encerrar de vez as grutas originais descobertas em 1940 do olhar comum de todos nós e a devolver-nos parte dos seus tesouros multimilenares em forma de fac-símile em 1983, a designada Lascaux II. Foi a meio de agosto de 1999 que olhei com olhar de quem quer olhar sem deixar escapar nada essa réplica realizada ao longo de duas longas décadas, já lá vai quase um quarto de século.

Os mais de 1500 desenhos e gravuras de auroques, cavalos, veados, bisontes, camurças, ursos e rinocerontes distribuídos ao longo de 150m por quatro galerias que, em tempos, terão funcionado como um santuário com fins religiosos desconhecidos, continuam a olhar-se sem se deixar olhar por olhares profanos de quem quer olhar sem olhar a meios. Protegidos da luz natural vinda do exterior ao abrigo das trevas do interior, continuarão a guardar os seus segredos nas profundezas da terra até ao final dos tempos. Os seus e os nossos, em separado ou em uníssono. Impassíveis, imutáveis, insonoros. Tal como o fizeram nos últimos 17 000 anos (talvez alguns mais, talvez alguns menos). Nos alvores do terceiro milénio contado pelos homens, muitos outros se poderão perfilar no horizonte. Assim os saibamos preservar de olhares indiscretos.


5 de agosto de 2022

Uma tisana com máquina de escrever

Ana Hatherly - Autorretrato

TISANA 29

Quando cheguei a casa o meu porco Rosalina estava a escrever à máquina. Fiquei num grande estado de perplexidade e por isso perguntei o que estás aí a fazer. Sem erguer a cabeça Rosalina apontou com o chispe para o papel convidando-me a ler. A folha estava em branco porque Rosalina tinha retirado a fita da máquina para a enrolar na sua encaracolada cauda que nesse momento agitava com prazer. Rosalina foi sempre o que me impeliu ao mergulho na metafísica. Por isso sem dizer nada dirigi-me para a cozinha. Abri a gaveta dos talheres. Tirei a grande faca do estojo do trinchante. Acendi o lume e pus a grelha a aquecer. Dirigi-me de novo para o escritório onde Rosalina escrevia à máquina. Cortei-lhe algumas febras do lombo. O suficiente para uma bela refeição. Cortei também um pedaço de fita para enfeitar a travessa.

Ana Hatherly, 351 Tisanas. Lisboa: Quimera (1997) 


UMA TISANA METAFÍSICA EM DIA DE ANIVERSÁRIO

(Ana Hatherly: Porto, 8 de maio de 1929 – Lisboa, 5 de agosto de 2015)

1 de agosto de 2022

Agosto dos feitos do divino Augusto

MENSIS AVGVSTVS
[Alegoria dos meses - Anónimo, c. 1650]
Augusto, m. Do lat. Augustus, epíteto atribuído em 27 a.C. pelo Senado Romano a Octávio (63 a.C-14 d.C.); do adj. augustus, «santo, consagrado; majestoso, venerável; depois título dos imperadores».
J. P. Machado, Dicionário etimológico da língua portuguesa
(Lisboa: Horizonte, 1977; Ⅰ, 186b.)
[Augusto] (R)estabeleceu, no calendário, a ordem que o divino Júlio nele introduzira, e que se achava subvertida graças à negligência dos pontífices; aproveitou a ocasião para dar o seu próprio nome ao mês de Sextilis, e não ao de Setembro, mês em que nascera, porque em Sextilis obtivera o seu primeiro consulado e as suas grandes vitórias.*
Suetónio, Os doze Césares (121EC, Ⅱ, ⅹⅹⅹⅰ)
(Lisboa: Presença, 1979; 70-71)

Agosto deve o seu nome ao divino Caio Otávio Augusto, fundador do Império Romano e Primeiro Cidadão do Estado, o Princeps Civitates ou Imperator Caesar Divi Filius. Dizem as más línguas que quando em 8 AEC o Senado confirmou essa distinção para solenizar os feitos vitoriosos que obtivera nesse mês, terá garantido que o mensis Augustus tivesse os mesmos 31 dias do Iulius mensis do seu tio-avó e pai adotivo Júlio César. Diz que diz infundado, dado que à data da mudança o até então designado mensis Sextilis já dispunha desse número de dias desde a reforma do calendário juliano.

Após a morte dos dois primeiros Césares, nenhum dos seus herdeiros dinásticos mereceu a honra de nomear os restantes meses do ano. Os oito iniciais mantiveram as suas designações olímpicas ou divinizadas. Os quatro restantes limitaram-se a indicar a sua ordem numérica arcaica no já desfasado sistema de divisão do tempo romano. Dá para perguntar que feitos teriam sido exigidos a Tibério, Calígula, Cláudio, Nero, Galba, Otão, Vitélio, Vespasiano, Tito e Domiciano para igualarem os seus antepassados imperiais. A resposta é fácil de dar, muito embora fique por concretizar.

DIVUS AUGUSTUS PATER
[Curia del foro de Ituci - Baena]
NOTA
* Annum a Divo Iulio ordinatum, sed postea neglegentia conturbatum atque confusum, rursus ad pristinam ra-tionem redegit; in cuius ordinatione Sextilem mensem e suo cognomine nuncupavit magis quam Septembrem quo erat natus, quod hoc sibi et primus consulatus et insignes victoriae optigissent.
Suetonius, De Vita Cæsarum, 121; II, xxxi