5 de agosto de 2022

Uma tisana com máquina de escrever

Ana Hatherly - Autorretrato

TISANA 29

Quando cheguei a casa o meu porco Rosalina estava a escrever à máquina. Fiquei num grande estado de perplexidade e por isso perguntei o que estás aí a fazer. Sem erguer a cabeça Rosalina apontou com o chispe para o papel convidando-me a ler. A folha estava em branco porque Rosalina tinha retirado a fita da máquina para a enrolar na sua encaracolada cauda que nesse momento agitava com prazer. Rosalina foi sempre o que me impeliu ao mergulho na metafísica. Por isso sem dizer nada dirigi-me para a cozinha. Abri a gaveta dos talheres. Tirei a grande faca do estojo do trinchante. Acendi o lume e pus a grelha a aquecer. Dirigi-me de novo para o escritório onde Rosalina escrevia à máquina. Cortei-lhe algumas febras do lombo. O suficiente para uma bela refeição. Cortei também um pedaço de fita para enfeitar a travessa.

Ana Hatherly, 351 Tisanas. Lisboa: Quimera (1997) 


UMA TISANA METAFÍSICA EM DIA DE ANIVERSÁRIO

(Ana Hatherly: Porto, 8 de maio de 1929 – Lisboa, 5 de agosto de 2015)

2 comentários:

  1. De uma criatividade refrescante! Fez-me lembrar a ficção e o mistério da escrita de Murakami. Bonita homenagem à tua mentora!

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    1. Apresenta algumas semelhanças, muito embora a sua escrita deva remontar a uma data anterior a qualquer tradução para português da obra de Murakami...

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