« On l'appelait le " Mage du Kremlin ", le " nouveau Raspoutine ". À l'époque il n'avait pas un rôle bien défini. Il se manifestait dans le bureau du président quand les affaires courantes avaient été expédiées. Ce n'étaient pas les secrétai-res qui le prévenaient. Peut être que le Tsar en personne le convoquait sur sa ligme directe. »Giuliano da Empoli, Le mage du Kremlin (2022)
«Il mago del Cremlino, lo chiamavano, il nuovo Rasputin. All'epoca, non aveva un ruolo ben definito. Si materializzava nell'ufficio del Presidente quando gli affari correnti erano stati sbrigati. Non erano le segretarie ad avvisarlo. Forse lo Zar in persona lo convocava sulla linea diretta.»Giuliano da Empoli, Il mago del Cremlino (2022)
Os crimes hediondos cometidos por certas figuras sinistras decisoras do nosso destino coletivo atingem por vezes tais níveis de crueldade, que sentimos verdadeiro pudor de dizer ou escrever os seus nomes, tão atrozes se tornaram de articular ou ouvir os sons que os formam. Mudamo-los por alcunhas e perífrases sarcásticas de identificação garantida, ao sabor das normas medievais galaico-portuguesas das cantigas de escárnio e maldizer, tais como Botas, o Dinossauro Excelentíssimo de Santa Comba ou Cerillita, el galán del No-Do, quando nos referimos de modo despectivo ao alegado messias lusitano e ao dito caudilho hispânico. De quando em quando, porém, somos obrigados a alternar o apodo trocista com o ortónimo explícito da figura sinistra central, convocada por um relato situado nos domínios do real ficcionado. É o que ocorre, por exemplo, com o romance de estreia do ítalo-suíço Giuliano da Empoli, Le mage du Kremlin (2022), em que o atual senhor todo poderoso da Federação Russa é nomeado tanto pelo falso epíteto encomiástico Czar como pelo legítimo de Putin.
A trama do relato segue o percurso político traçado por Vadin Baranov, eminência parda da nomenclatura moscovita atual, o dito Mago do Kremlin ou Novo Rasputine. Ao que parece, o perfil fictício dessa figura enigmática ter-se-á erigido à sombra oligárquica de Vladislav Surkov, o principal ideólogo do regime despótico russo pós-soviético do mandarim supremo que a chefia desde os alvores do terceiro milénio. A personagem criada pela ficção toma rapidamente conta do fio condutor do discurso, revelando ao emissor inicial do romance os eventos mais significativos do seu roteiro pessoal de vida, aquele que o conduziu do ambiente aristocrático do avô e aburguesado do pai aos bastidores do poder absoluto exercido pelo antigo dirigente máximo do KGB e FSB, primeiro-ministro, presidente e autocrata absoluto do maior país medido à escala global.
Dispenso-me de falar do rasto tóxico colossal deixado atrás de si pelo candidato nostálgico ao estatuto autocrático e ilimitado de novíssimo Czar de Todas as Rússias, as passadas e as futuras. Sinto-me pouco motivado para dar uma visibilidade suplementar a esse sonho imperial insano do mais destacado tiranete vivo dos nossos dias. Ouvir a toda a hora as notícias sobre a guerra na Ucrânia torna particularmente perturbador tomar contacto com um texto centrado no ponto de vista dum dos mentores do invasor externo desse país. Em circunstâncias normais, teria alguma relutância acrescida de encetar a leitura dum livro que viesse acompanhado dum slogan promocional da editora, tal como o da Gallimard registado na tira anexa envolvente: Les hommes de Poutine. Digamos que talvez sentisse alguma curiosidade ligeira de folhear o exemplar numa qualquer banca exposta ao público. A verdade é que a obra ainda a cheirar a tinta acabada de imprimir me foi dada por uma amiga de longa data no início destas férias de verão. Impossível recusar a viagem completa pelo seu interior.
Vencidos os pruridos iniciais de leitura e entrado no espírito descritivo do escrito, fica a sensação de se sair do domínio estrito da imaginação pura e de se entrar no âmbito do ensaio de ciência política disfarçado de romance de cariz biográfico autorrevelado duma personalidade fictícia verosímil. A entidade emissora externa, enquanto conselheiro jurídico da intelligentsia italiana e prática jornalística geoestratégica, transfere para o narrador de primeira instância a tarefa de entrevistar o ex-mentor privilegiado do pretenso sucessor de Ivan-o-Terrível, Pedro-o-Grande, Lenine ou Staline. Por vezes é crucial pronunciar os nomes dos autocratas sanguinários que trocaram o modelo horizontal do poder de estado pelo vertical, i.e., o prepotente, o ditatorial, o totalitário. A megalomania doentia de Vladimir Putine, ao tentar impor aos seus súbditos submissos uma nova realidade, uma nova era, um novo mundo, com novas ideias, com novos heróis, com novos ricos, acaba por transformar a Nova Rússia dum futuro risonho, glorioso, temido, na Velha Rússia dum passado macabro, sombrio, acabado. O apocalipse referido pelo Mago do Kremlin ou Novo Rasputine sai das páginas das histórias fingidas e entra no dia a dia das histórias verdadeiras que regem estes nossos tempos conturbados atuais.
Admirei-me ao ler o título do livro... Ao menos, a leitura serviu para esta viva manifestação de repúdio por tal figura e seus semelhantes, que ignoram ostensivamente o valor da vida e dos direitos humanos e tudo desestabilizam em nome de falsas profecias. A mim vão-me bastando as repetições da SIC e da CNN sobre a vida de tal filho bastardo da humanidade, das quais já fujo crispada e enojada...
ResponderEliminarTal como a frase registada no anexo publicitário avança, o relato autorreferencial está mais centrado no perfil dos cortesãos oligarcas do ditador, do que ao próprio Czar do Kremlin. Este surge-nos sempre na sombra dos seus seguidores voluntários/forçados, sobretudo daquele que surge no título da obra e assume as coordenadas narrativas do ensaio disfarçado de romance...
EliminarÉ preciso respirar fundo para avançar nessa leitura, como bem relatou!
ResponderEliminarSem dúvida, mas provavelmente menos penosa do que a do Giuliano da Empoli que teve de assumir o papel fingido/verosímil de Mago do Ksar do Kremlin. Louvores a essa coragem...
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