Fantasias caídas das ilhas voadoras
Aos 10 anos, deixei de acreditar no Menino Jesus e no Pai Natal. A culpa terá sido do processo natural de crescimento que me fez transitar pé ante pé da idade das fadas e das varinhas de condão para a dos índios e cowboys do Far West norte-americano. De permeio pulularam muitas outras histórias de aventuras dos livros aos quadradinhos partilhados com os colegas de brincadeira da rua. Entre os recreios da primária e da catequese as quimeras de ilhas voadoras e de castelos de areia começaram a ruir.
Aos 20 anos, deixei de acreditar no transcendente total revelado pela religião ainda reinante no país das mil maravilhas à beira-mar plantado que sempre fora o meu. A mudança da pequena cidade de província para a grande cidade metropolitana abriram-me as portas para a realidade palpável vivida no dia a dia. As leituras que então me começaram insistentemente a visitar ajudaram no percurso imparável de fuga total à fantasia infantil das histórias da carochinha para o universo tangível que nos rodeia e abriga.
Aos 30 anos deixei de acreditar na política militante dos partidos do poder ou a ele apegado. Depois de perder a fé nos paraísos celestes de origem divina, perdi a fé nos paraísos terrestres de natureza humana. À medida que as eutopias se diluíram no horizonte de eventos a perder de vista, as distopias abeiraram-se cada vez mais a toque de caixa. A utopia desfez-se e a miragem utópica dum oásis de perfeição dos sonhos cor-de-rosa abrigou-se nas páginas da ficção científica ou dos contos maravilhosos.
Aos 40 anos deixei de acreditar na amizade genuína dos colegas de profissão. As disputas insanas travadas durante os concursos anuais de colocação, as rivalidades alimentadas no decorrer do estágio pedagógico, as guerrilhas insanas para obter os melhores horários fizeram-me arrepiar caminho e pôr de lado o mito da solidariedade interpares. A ingenuidade também tem prazo de validade. Dura o tempo dum já era. A maré alta chega à praia e leva à sua frente as mais belas esculturas à beira-mar levantadas.
Aos 50 anos deixei de acreditar nos atalhos formativos seguidos pela pequenez das medidas educativas do novo milénio. O copo 1/2 cheio transformou-se pouco a pouco num copo 1/2 vazio a ameaçar o vazio total dum copo esvaziado de tudo no seu interior. Nem sequer um mero castelo feito de nuvens efémeras sem gota de água no seu interior. Uma seca total a converter-se numa descrença global ou numa crença em coisa nenhuma. Uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma, como alguém em tempos disse.
Aos 60 anos deixei de acreditar nos malabarismos de faz-de-conta duma carreira académica sem fim à vista. Cansei-me de perder os dias a escrever papers sem ter tempo de ler os alheios. Cartas fora do baralho. Definitivamente. A sineta tocou forte e a hora de virar a página chegou. Imparável. A corrida em contrarrelógio entrou na rampa descendente. A aposentação, a reforma ou a jubilação perfiladas no horizonte de eventos. Indiferentes aos sentidos ocultos nas etiquetas seguidas. Encantos caídos, encantos criados.
Prof, grande texto lúcido! As ilusões e desilusões que vivemos neste mundo levam-nos, na realidade, a descrer das utopias tecidas pelos humanos... No tempo que me resta viver, pelo menos mantenho a crença de poder criar bons e felizes momentos, sem acreditar na bondade que tantos querem vender com promessas vazias. Já nem espero para ver...
ResponderEliminarO ver para crer é uma mera figura de retórica pura. Todos os dias paro, escuto e olho como dizia a canção e lá vou vendo o que gosto e não gosto. Processo natural de quem já viu muitas coisas e ainda espera ver algumas mais que mereça a pena enxergar...
EliminarApesar de a vista estar cada dia mais turva, ainda vale a pena espreitar a realidade que os nossos olhos miram e não aquela que nos pretendem impingir.
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