11 de agosto de 2022

Os olhares paleolíticos dos auroques da gruta de Lascaux no Périgord Noir

Aurochs, Chevaux et Cerfs

A Capela Sistina da arte parietal 

Os dois auroques imponentes estão a olhar-se fixamente cerca de 17 000 anos (milénio a mais ou a menos), indiferentes a quem os olha intensamente de perfil. Primeiro, pelos artistas pré-históricos sem nome que os registaram há uma infinidade de tempo que ninguém pode precisar com segurança. Depois, pelos cavalos e veados que os olham com olhar firme em pano de fundo do painel. Finalmente, por mais de 1 000 000 de observadores atuais que os olharam ao vivo e a cores desde que se deram a ver aos visitantes entre 1948 e 1963. Os escassos 15 anos em que estiveram expostos aos olhares curiosos que os quiseram olhar nas profundezas obscuras da gruta de Lascaux no Périgord Noir, departamento francês da Dordogne, nos antigos ducados da Aquitaine e da Gascogne.    

Quando olhei para o olhar retido no tempo dos dois auroques, o fiz em segundos olhares. A respiração dos sapiens sapiens modernos e a humidade oriunda do exterior começaram a deteriorar a herança dos seus ancestrais paleolíticos solutreanos ou madalenenses do vale do Vézère, que andariam por ali nas proximidades do sítio de Cro-Magnon. Para eliminar a maladie verte dos fungos e a maladie blanche do calcite levaram as autoridades oficiais gaulesas a encerrar de vez as grutas originais descobertas em 1940 do olhar comum de todos nós e a devolver-nos parte dos seus tesouros multimilenares em forma de fac-símile em 1983, a designada Lascaux II. Foi a meio de agosto de 1999 que olhei com olhar de quem quer olhar sem deixar escapar nada essa réplica realizada ao longo de duas longas décadas, já lá vai quase um quarto de século.

Os mais de 1500 desenhos e gravuras de auroques, cavalos, veados, bisontes, camurças, ursos e rinocerontes distribuídos ao longo de 150m por quatro galerias que, em tempos, terão funcionado como um santuário com fins religiosos desconhecidos, continuam a olhar-se sem se deixar olhar por olhares profanos de quem quer olhar sem olhar a meios. Protegidos da luz natural vinda do exterior ao abrigo das trevas do interior, continuarão a guardar os seus segredos nas profundezas da terra até ao final dos tempos. Os seus e os nossos, em separado ou em uníssono. Impassíveis, imutáveis, insonoros. Tal como o fizeram nos últimos 17 000 anos (talvez alguns mais, talvez alguns menos). Nos alvores do terceiro milénio contado pelos homens, muitos outros se poderão perfilar no horizonte. Assim os saibamos preservar de olhares indiscretos.


2 comentários:

  1. Belo texto, Prof! É uma pena que não tenham descoberto (ainda, quero crer) a tecnologia que permita visitar as grutas e as gravuras milenares sem as danificar. Contudo, bem que gostaria de ver in loco a réplica de tal criatividade humana, que a reprodução virtual tem tornado tão atrativa.

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  2. Um sítio ímpar. Grutas pintadas com fins místicos e até comerciais e políticos. Aqui selavam-se tratados com sons e manadas a correr à luz trémula dos archotes. A arte de pintar é o pensamento abstrato aqui, no seu estado mais primitivo em que esse mesmo homem primitivo mostra ao mundo que já domina a perspectiva, a cor e a sombra. Seremos assim tão diferentes no que diz respeito a emoções, ambições, pulsões? Obrigada por nos lembrares esse lugar mágico que para nós também sela amizades das famílias tribos que temos espalhadas no mundo e nos levaram a visitar essa maravilha de arte que nos transcende.

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