«...Terá sido então por essa razão que este livro mudou de nome e passou a chamar-se As pequenas memórias. Sim, as memórias pequenas, de quando fui pequeno, simplesmente.»José Saramago, As pequenas memórias (2006)
Todos os dias nasce e morre um número indeterminado de pessoas. Todos os dias se comemora um número ilimitado de aniversários. Nem todos atingem, todavia, a importância mediática do centenário. Sobretudo quando está associada a um nome marcante ou a um facto singular que tenha persistido na lembrança coletiva das gentes. Os escritores e as obras literárias estão nesta categoria restrita. José Saramago não escapa à regra. Celebra-se no dia de hoje a data do seu nascimento real na vila ribatejana da Azinheira. Aquele 16 de novembro de 1922 em que a mãe o deu à luz, há precisamente 100 anos, e não a 18 desse mesmo mês e ano, em que o pai se vira obrigado a arrolá-lo na Conservatória do Registo Civil, para assim fugir a uma multa certa e segura. Esta e muitas outras histórias refere-as o mestre da palavra escrita já então laureado com os prémios Camões (1995) e Nobel (1998) n'As pequenas memórias (2006). Boa ocasião esta de festejo tão especial para as evocar.
À distância de oito décadas e picos dos eventos recordados neste repositório de histórias de infância, o memorialista não refere os vultos das letras nascidos/falecidos nesse ano comum do século passado. Pouco sentido teria então à data da escrita referir os centenários da vinda ao mundo de Agustina Bessa-Luís cerca de um mês antes ou da ida desta para melhor de Marcel Proust dois dias depois. Curioso seria referir o acaso deste último ter falecido no mesmo dia em que Saramago teria nascido. Descabido seria também referir o facto de James Joyce ter publicado por essas datas o Ulisses, uma obra-charneira destacada das letras irlandesas modernas à escala global. Efemérides que terão escapado aos verdes anos do criador português de heróis da imaginação que agora festejamos, herdeiros que sua doação a tantas gerações de leitores.
O livro das tentações, conselhos e pequenas memórias resgatadas dum tempo distante não foi feito para ser resumido ou parafraseado. Os episódios impressos nas suas páginas em letra de forma a cheirar a tinta foram trazidos à luz do dia como confidências pessoais proferidas ao nosso ouvido pela voz do relator que os protagonizou. Degustemo-los devagar enquanto os lemos em silêncio. Trata-se de ecos antigos, talvez falsos, por falhas involuntárias de memória, que nos transportam para as paisagens rurais em que se criou e urbanos em que depois cresceu, do terror sentido pelos cães e do fascínio pelos cavalos, do nome-alcunha que lhe puseram na cédula e bilhete de identidade, das aventuras/desventuras de pesca e caça, das aprendizagens escolares e experiências de vida, dos ambientes familiares e de vizinhanças mais ou menos próximas à sua. A lista seria longa de elencar e difícil de selecionar. Que se fique por aqui com a alusão muito breve à história dum lagarto verde com que preenche o último parágrafo do manuscrito feito livro para prazer de todos nós.
Arquimedes falava da magia dos números, aqui falas da coincidência de efemérides, quiçá magia dos astros... A modéstia de Saramago não lhe permitiria associar o seu nascimento a qualquer vulto que se destacasse na Literatura, uma das virtudes que me agradam neste autor autodidata. Ontem, o programa 'As Horas Extraordinárias' apresentava o livro "As 7 vidas de Saramago", que parece resumir notavelmente a vida dele, começando pela sua infância e salientando a luta contra o destino que se lhe anunciava tão diferente. É bom ler "As Pequenas Memórias" e mergulhar na simplicidade dos verdes anos deste centenário que se tornou tão conhecido devido à luta persistente contra as adversidades que se apresentaram no seu caminho.
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