25 de novembro de 2022

Evguéni Zamiátin: o nós coletivo em nome do Benfeitor do Estado Único

“Через 120 дней заканчивается постройка ИНТЕГРАЛА. Близок великий, исторический час, когда первый ИНТЕГРАЛ взовьется в мировое пространство. Тысячу лет тому назад ваши героические предки покорили власти Единого Государства весь земной шар. Вам предстоит еще более славный подвиг: стеклянным, электрическим, огнедышащим ИНТЕГРАЛОМ проинтегрировать бесконечное уравнение Вселенной. Вам предстоит благодетельному игу разума подчинить неведомые существа, обитающие на иных планетах -- быть может, еще в диком состоянии свободы. Если они не поймут, что мы несем им математически безошибочное счастье, наш долг заставить их быть счастливыми. Но прежде оружия мы испытаем слово.”
Евгений Иванович Замятин, Мы (1921)

Os livros são como as cerejas, atrás dum deles vem sempre outro ou até um cento. Giuliano da Empoli ocupa grande parte dos dois capítulos iniciais do Le mage du Kremlin (2022) com uma exaustiva referência-paráfrase-comentário a um romance russo composto  mais de cem anos, dado à estampa no estrangeiro em inglês (1925), checo (1927) e francês (1929), à revelia das autoridades bolcheviques então instaladas em Moscovo. O texto maior de Evguéni Ivanovich Zamiátin, Nós (1921), só seria publicado na língua original em que fora escrito em 1952, a título póstumo e em Nova Iorque, tendo tido ainda de esperar por 1988 para sair dos prelos na moribunda URSS, nos tempos reformistas da perestroika e da glasnost de Mikhail Gorbachev. Uma verdadeira travessia épica do deserto para ser dada a conhecer à realidade soviética que a inspirara o embrião das distopias políticas futuras, as tais que marcariam a idade de ouro do género em meados do século passado. Encontram-se nesse grupo o Admirável mundo novo (1932) de Aldous Huxley, o Mil novecentos e oitenta e quatro (1949) de George Orwell, o Fahrenheit 451 (1953) de Ray Bradbury, entre outros, apesar dos autores não terem por hábito reconhecê-lo ou confessá-lo abertamente.

Lidos os livros que falam de livros e os livros de que se fala, muitos pontos de contacto entre uns e outros se vão estabelecendo num cruzamento de histórias feitas com palavras metodicamente tecidas. Um género literário surge quando um ou outro tópico central presente num texto fundador é replicado, ampliado e canonizado por todos aqueles que lhe seguiram as pistas iniciais. Na edificação duma nova série poética, as condutas outrora facultativas acabam por ganhar um caráter doravante obrigatório. À distância de um século, o ensaísta ítalo-suíço rendido à magia do discurso romanesco considera ‒ na abordagem que dedica ao atual universo totalitário de Putin e ao círculo de cortesãos que o envolvem ‒ ser esta obra malquista do Kremlin pós-czarista uma verdadeira máquina do tempo, capaz de prever mutatis mutandis o destino do país dos sovietes desde as suas origens até aos nossos dias. Uma ditadura execrável submetida à tirania dos números e ao carisma sinistro dum Benfeitor implacável, depois crismado por outros fabulistas de Our Ford  [Huxley] ou Big Brother [Orwell]Fora da ficção, fácil seria identificá-los tanto com Lenine como Stalin, podendo ainda incorporar os oligarcas da Silicon Valley, os mandarins do partido único chinês e os fabricantes de fake news das redes sociais.

O relato veiculado por D-503 o construtor da Integral, matemático do Estado Único e redator dos 40 Apontamentos que compõem o Nós ‒ escapa às normas teóricas definidoras dum mundo paralelo utópico. Tudo se passa numa fase futura do mundo real atual, a que não temos acesso espaçotemporal, por nos remeter de imediato para um mundo antecipado. O caráter metatópico e metacrónico presente nas tradicionais versões da Ficção Científica impõe-se ao longo de todo o diário que até nós chegou, convertido numa distopia formal clássica inspiradora de muitas outras. Os escritos do criador da enorme máquina de vidro, elétrica e ignívoma, capaz de desbravar o espaço planetário e integrar a infinita equação do universo, dizem-nos que a missão do engenho será a de subjugar as criaturas ignotas doutros planetas à razão benfazeja dos visitantes, aqueles que surgiram um milénio após a Grande Guerra dos Duzentos Anos. Os alicerces duma sociedade totalitária tinham sido então estabelecidos, onde todos os seus membros numerados eram obrigados a ser felizes, protegidos da barbárie exterior por um providencial Muro Verde, cuja eficiência o desenrolar dos eventos narrados revelarão, expondo a debilidade dessa fronteira erigida entre o paraíso da felicidade sem liberdade dos novos terratenentes e o inferno da liberdade sem felicidade do estado caótico e selvagem primitivo que o precedeu.

Retomando a ideia inicial, os livros não nos remetem para a leitura doutros livros, como por vezes trazem alguns outros à arreata, com os quais partilham o espaço comum duma compilação de vários títulos de diferente tamanho num único tomo. A recente tradução da Relógio d'Água perfilou esta prática editorial, fazendo seguir o Nós de duas «novelas inglesas» satíricas  Os ilhéus (1917) e O pescador de homens (1918) e dum romance histórico inacabado O Flagelo de Deus (1928-1937). Nos textos mais curtos, critica em tom jocoso a ordem mecânica da sociedade britânica novecentista e a hipocrisia dum pretenso defensor dos bons costumes e da luta contra o vício. Os primeiros anos de Átila, o Huno, são tratados nos sete capítulos iniciais da obra póstuma pelo dissidente da revolução russa e acossado pelos artífices do império soviético. A partida prematura do ficcionista moscovita no exílio parisiense deixou fatalmente em aberto o desfecho dum relato de capital interesse para a definição futura do destino europeu nesses tempos agitados pautados pelo advento das invasões bárbaras e inevitável queda do império romano. A nós leitores caberá a missão de imaginar a atualidade dum escrito gizado numa época de grandes mutações históricas cujos ecos distantes ainda esperam um final ideal para todos nós. 

Островитяне (1917) - Ловец человеков (1918) - Бич Божий (1935)

«Dentro de 120 dias, a construção da INTEGRAL estará concluída. A grande hora histórica em que a primeira INTEGRAL voará para o espaço planetário aproxima‑se. Há mil anos, os vossos antepassados heroicos dominaram todo o globo terrestre, estabelecendo nele o poder do Estado Único. Agora têm pela frente uma façanha ainda mais gloriosa: integrar a infinita equação do Universo por meio desta integral de vidro, elétrica e ignívoma. Têm pela frente a missão de sujeitar ao jugo benfazejo da razão as criaturas ignotas que habitam outros planetas — talvez ainda no estado selvagem de liberdade. Se elas não compreenderem que lhes oferecemos uma liberdade, matematicamente correta, será nosso dever obrigá‑las a serem felizes. Antes das armas, experimentaremos contudo a palavra.
Evgeny Ivanovich Zamiatin, Nós (1921)

1 comentário:

  1. Magnifico ensaio pedagógico a partir deste grande mergulho em livros, Prof! Não conheço os livros de Zamiátin, mas vi um filme inspirado no enredo do Benfeitor do Estado Único, que me impressionou sobremaneira. Esta característica humana de querer subjugar o próximo em nome de pretensos interesses elevados é atroz... E continuamos a assistir s isso nos nossos dias, sentados na primeira fila de um teatro real, frente a um palco onde se desenrolam ações surreais. Hajam outros livros que nos permitam sonhar com finais felizes!

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