31 de janeiro de 2023

Apolo da beleza, perfeição, harmonia, equilíbrio e razão, deus da divina distância, sol e luz de verdade...

Ἀπόλλων - Apolo

Παιάν - Peã
Como te cantarei, celebrado que és em todos os hinos?
Que por todas partes, Febo, há pasto para o canto em tua honra,
tanto no continente que nutre os bezerros como nas ilhas.
Todas as atalaias te trazem prazer, assim como os promontórios eminentes,

os rios que desaguam no mar, as praias à beira-mar e os portos marítimo.

 
Cantarei talvez como no princípio Leto te pariu,
gozo para os mortais, apoiada sobre o monte Cinto,
na ilha rochosa, em Delos, cercada pelas correntes?
De um e outro lado, a sombria ondulação se abatia sobre a costa,
a impulso do assobio dos ventos de estridente sonoridade,
Lá onde tu, ao ergueres-te, te apoderas de todos os homens...
Hino Homérico III - A Apolo (19-29)

25 de janeiro de 2023

O olhar expressionista do Grito olhado à distância por Edvard Munch

Edvard Munch, Skrik (1893)
«En kveld jeg gikk langs en sti, var byen på den ene siden og fjorden nedenfor. Jeg følte meg sliten og syk. Jeg stoppet og så utover fjorden - solen gikk ned, og skyene ble blodrøde. Jeg kjente et skrik som gikk gjennom naturen; det virket for meg som jeg hørte skriket. Jeg malte dette bildet, malte skyene som faktisk blod. Fargen skrek. Dette ble til The Scream.»

O grito gritado no silêncio da tela pintada

Os olhares das obras de arte também se olham nas mais diversas cópias que delas se fazem. Livros, cartazes, postais, fotos, vídeos, cromos, litografias. O Skrik (= grito) de Edvard Munch, com o seu olhar esbugalhado, a boca aberta de espanto, as mãos coladas ao rosto, o corpo fremente de terror, a figura tresloucada representada num por do sol vermelho fantasmagórico olha e é olhado em quatro salas distintas que eu nunca olhei em nenhum dos seus habitats atuais, três em Oslo e uma não se sabe muito bem onde. Talvez um dia ainda consiga olhar face a face esse olhar expressionista no Munchmuseet ou na Nasjonalmuseet da capital norueguesa.

Lanço um olhar real aos quatro gritos virtuais exibidos dezenas de páginas públicas da Net. Nenhum deles se arrisca a ser roubado ou leiloado como os originais. Todos os podem olhar no mero ecrã dum PC. Ouvir onde e quando se queira o grito silencioso que os olhos de quem olha ouve. Grito contido que provoca o vómito, a náusea, a repulsa, o nojo, o enjoo, a agonia que o panorama televisivo, político, religioso, social, educativo, hospitalar hoje nos brinda dia após dia. Vantagem de não se expor num museu aos olhares anónimos dos visitantes, de se ser solidário com o ser solitário pintado no quadro, olhá-lo com os olhos nos olhos e poder gritar a plenos pulmões.


QUATRO GRITOS
1.
 
Museu Munch, 18932. Galeria Nacional, 1893; 3. Coleção particular, 1895; 4. Museu Munch, 1910

EPÍGRAFE
«Certa noite, caminhava por uma trilha, a cidade estava de um lado e o fiorde abaixo. Senti-me cansado e doente. Parei e olhei para o fiorde - o sol estava a por-se e as nuvens estavam a ficar vermelhas como sangue. Senti um grito que atravessou a natureza; pareceu-me ter ouvido o grito. Pintei esta imagem, pintei as nuvens como sangue real. A cor gritou. Isso se tornou O Grito.»
Edvard Munch, Diário (Nice, 1892)

19 de janeiro de 2023

O país sabe a amoras bravas no verão

AMÁLIA SOARES
26 Poemas 26 pinturas
(2015)

As amoras
O meu país sabe a amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.

Eugénio de Andrade, O outro nome da terra – 1988


NOTA
A celebrar o centenário do poeta...
(Fundão, 19.01.1923 — Porto, 13.06. 2005)

16 de janeiro de 2023

Paulo Rezzutti e a história não contada de Dom Pedro de Bragança e Bourbon

«"O PEDRÃO é nosso!", exclamou certo funcionário da cripta imperial, localizada abaixo do Monumento à Independência, no bairro paulistano do Ipiranga, ao ter a certeza de que o sarcófago de granito verde que protegera durante anos não estava vazio. Havia realmente algo lá dentro, ao contrário da descrença exteriorizada por um taxista que conduzira um fotógrafo até lá: "Você vai fazer o quê lá em baixo? Não tem nada lá, não!"»

Dom Pedro de Alcântara (1798-1834) nasceu e faleceu no Palácio de Queluz, no seio dos Bragança e Bourbon. Na sua curta existência de 34 anos repartida por dois continentes, assumiu sucessivamente os títulos de Infante, Príncipe, Imperador, Rei e Duque, adornados com os estilos de Alteza Sereníssima e Real e de Majestade Imperial e Fidelíssima. No cenário aristocrático que sempre pisou, foi filho e neto de reis e imperadores, e pai dum imperador e duma rainha. Deteve a coroa imperial brasileira e a real portuguesa até ter abdicado das duas. Casou-se com uma arquiduquesa austríaca e uma princesa francesa, tendo mantido um número incerto de amantes, com quem gerou um número impreciso de filhos naturais e bastardos. Todos estes dados são referidos nos anais históricos que até nós chegaram, com maior ou menor precisão factual. O investigador brasileiro Paulo Rezzutti reune-os numa obra de divulgação biográfica do monarca, intitulada D. Pedro [IV]. A história não contada. O homem revelado por cartas e documentos inéditos (2015).

Publicado no segundo centenário da elevação do Brasil à categoria de Reino Unido de Portugal e Algarves, a meia dúzia de anos do Dia do Fico, o registo analítico do percurso de vida do rei-imperador das duas coroas brigantinas reparte-se por três sequências centradas nos espaços cénicos em que os eventos evocados ocorreram: Portugal (P.I: 1798-1808), Brasil (P.II: 1808-1831) e Europa (P.III: 1831-1834). A completar a informação dada, este núcleo medial está limitado por um Prólogo e um Epílogo tradicionais, seguidos duma Cronologia, Notas, Bibliografia, Crédito de Imagens e Agradecimentos. O estilo do relato apresenta uma fluidez discursiva assinalável, destinado a um público leitor alargado, menos propenso à linguagem hermética que alguns textos académicos por vezes enfermam.

É um lugar comum considerar o reinado de Dom Pedro IV como o mais breve do regime monárquico, vigente de 10 de março a 2 de maio de 1826, o que perfaz uns meros 51 dias. Esta contagem tão exígua não é perfilhada por todas as fontes, levando algumas delas como será o caso da página em linha do Parlamento  a dilatá-la de 1826 a 1834, i.e., desde a morte de Dom João VI até à aclamação de Dona Maria II, excluindo assim liminarmente Dom Miguel da lista real aceite como tal. A discrepância significativa no cômputo das cabeças coroadas ou simplesmente aclamadas não merece a atenção explícita do ensaísta em apreço, muito embora estas minudências históricas acabem por marcar uma presença naturalmente implícita. O seu interesse recai mais no trajeto vitorioso de Dom Pedro I, enquanto primeiro Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil, do que na de efémero trigésimo primeiro Rei de Portugal e Algarves e dos demais senhorios acumulados e ampliados pelos seus avoengos ao longo dos séculos.

Para um leitor português, é justamente essa faceta exótica brasílica menos conhecida entre nós que desperta mais atenção. A resenha bibliográfica em boa hora encetada pelo popular youtuber paulista transforma-se, a breve trecho, quase no guião dum acabado romance histórico oitocentista ou numa genuína novela televisiva de grande sucesso mediático. Os amores/desamores do Libertador da Terra de Vera Cruz e Rei-Soldado da Pátria Lusitana, as intrigas de bastidor, as tricas de alcova e as polémicas de palácio tecidas aquém-e-além Atlântico, as rivalidades familiares entre várias gerações e ramos dos Braganças luso-brasileiros, os mitos e contramitos que a tradição romântica coeva e tardia foi tecendo à sua volta contêm, todos eles, itens vitais para perpetuar a sua presença na memória coletiva dos povos de duas nações. Os dados estão lançados, a leitura integral do texto aconselha-se, útil todo ele para nos dar uma imagem mais nítida da personalidade controversa do filho rebelde criado no mais ultramontano e ancilosado Absolutismo régio e lhe deu a roupagem triunfante e renovadora do Liberalismo.

Edição brasileira da Leya

10 de janeiro de 2023

Visita ao senhor diretor numa entrada por saída com duas latadas pelo meio


HISTÓRIA EXEMPLAR

Entrei.
– Tire o chapéu – disse o Senhor Diretor.
Tirei o chapéu.
– Sente-se – determinou o Senhor Diretor.
Sentei-me.
– O que deseja? – investigou o Senhor Diretor.
Levantei-me, pus o chapéu e dei duas latadas no Senhor Diretor.
Saí. 

 Mário-Henrique Leiria, Contos do Gin-Tonic (1973)

Obs.:
No centenário de Mário-Henrique Lisboa (2.01.1923 - 9.01.1980)

6 de janeiro de 2023

A cavalgada dos Reis Magos

Carta de Juan de la Cosa
«Juan de la cosa la hizo en el puerto de S: mã en año de 1500»

Unida na diversidade, assim reza a divisa da UE, registada nas línguas oficiais dos países que lhe dão corpo. Em todo o espaço comunitário se festejam as principais datas do calendário cristão, mas cada um dos seus membros guarda a prerrogativa de o celebrar de modo especial. Atravessamos a raia portuguesa, e a multiplicidade de práticas ancestrais diferentes das nossas invadem-nos a cada momento. Testemunhei algumas dessas singularidades hispânicas, quando passei parte da quadra natalícia de 73/74 nos antigos reinos de Castela e Leão, com um especial realce para a importância ali dada à visita dos três Magos do Oriente ao recém nascido Menino Jesus em Belém da Nazaré.

Para a criançada, o momento crucial do Natal espanhol coincide com a chegada de Gaspar, Baltazar e Belchior carregados de presentes a distribuir por cada um dos membros da família. Tudo começa a 5 de janeiro à tarde, quando as principais vias das cidades se enchem com um grande desfile de boas vindas aos reais visitantes. Depois todos regressam a casa para uma ceia especial, no final da qual sucederá a noite mais longa do ano. Na manhã seguinte, a correria faz-se em direção ao local onde na véspera deixaram os sapatinhos à espera das ofertas que Suas Majestades ali terão deixado. O final das fiestas navideñas é então vivido com toda a pompa e circunstância devida.

Não cheguei a assistir à Cabalgata de Reys. A essa hora andava a cabalgar num Seat azul claro de não sei quantos cavalos e nenhum camelo entre Burgos e Salamanca. Participei todavia nesta cidade numa merienda familiar em Dia de Reis. Vi uma mesa cheia de turrones, hojaldres, mazapanes, mantecados y polvorones. Todos aqueles doces que dificilmente exibiríamos entre nós num 6 de janeiro, sem direito a feriado ou distribuição de prendas Fica-nos a tradição do bolo-rei ou rainha acompanhado dum cálice de vinho do porto. Ficou-me a memória o globo de navidad que um dos niños presentes me ofereceu a troco de lhe ter improvisado um cântico de natal português. Memória longínqua, memória presente. Só me esqueci do que terei cantado então.

TURRONES, HOJALDRES, MAZAPANES, MANTECADOS Y POLVORONES