25 de abril de 2023

Nota com pássaro e frutos vermelhos

25.Abril.2019
 
Cuidado com o canto do melro.
O pássaro bicou os frutos vermelhos
– O sol amarelo mudou
de cor.

Desde algum tempo que os meus pensamentos são muitos, mas as minhas letras são poucas. Sobre um papel junto só as palavras essenciais como costumam fazer as crianças quando ainda não sabem construir frases e, no meu caso, daí resultam escritos a que dificilmente alguém, além de mim própria, poderá atribuir um sentido. Deixo escrito nestes papéis soltos imagens vergonhosas. Palavras que parecem versos rimados, sem que eu o deseje. Coisa tosca.

Lídia Jorge, Misericórdia 
[Lisboa: D. Quixote, 2022 (7: 59; 8: 60)]

18 de abril de 2023

Marcel Proust, terceira busca do tempo perdido pelo caminho de Guermantes

« Dans la maison que nous étions venus habiter, la grande dame du fond de la cour était une duchesse, élégante et encore jeune. C'était Mme de Guermantes, et grâce à Françoise, je possédai assez vite des renseignements sur l'hôtel. Car les Guermantes (que Françoise désignait souvent par les mots de  en des-sous ,  en bas ) étaient sa constante préoccupation depuis le matin où, jetant, pendant qu'elle coiffait Maman, un coup d'œil défendu, irrésistible et furtif dans la cour, elle disait :  Tiens, deux bonnes sœurs ; cela va sûrement en des-sous  ou :  Oh ! les beaux faisans à la fenêtre de la cuisine, il n'y a pas besoin de demander d'où qu'ils deviennent, le duc aura-t-été à la chasse , jusqu'au soir où, si elle entendait, pendant qu'elle me donnait mes affaires de nuit, un bruit de piano, un écho de chansonnette, elle induisait :  Ils ont du monde en bas, c'est à la gaieté  ; dans son visage régulier, sous ses cheveux blancs maintenant, un sourire de sa jeunesse animé et décent mettait alors pour un instant chacun de ses traits à sa place, les accordait dans un ordre apprêté et fin, comme avant une contredanse. »
Marcel Proust, Le côté de Guermantes (1920-1921) 

De vez em quando, ganho coragem e dá-me uma vontade imensa de encetar uma nova busca do tempo perdido e aproximar-me, assim, do almejado tempo reencontrado no final da longa pesquisa efetuada ao longo de muitas centenas/milhares de páginas, idealizada por Marcel Proust entre 1908/1909-1922. Lidas as partes, capítulos, parágrafos e períodos dos livros que compõem a obra, fico satisfeito de o ter feito e tiro uns meses de sabática para recobrar forças até um novo incurso nos tomos ainda em falta. Cabe-me desta feita assentar arraiais no terceiro painel do políptico, dedicado às duas etapas desenhadas d'O lado de Guermantes (1920-1921).

O projeto memorialista tecido em forma de romance autobiográfico aproxima-se a passos largos da mudança de século. Entre 1897 e 1899, o narrador-herói-protagonista anónimo rondaria os 19-21 anos e preparava-se para fruir a derradeira fase da adolescência. Depois de ter passado a idade dos nomes [T. I] e a idade das palavras [T. II], traça-nos o seu deambular minucioso pela idade das coisas [T. III]. Máxime, toda a trama narrativa está focada no fascínio sentido pelo jovem relator desde a mais tenra infância pela Duchesse Oriane de Guermantes. Os encantos aristocráticos dessa figura insigne da Belle Époque parisiense (1871-1914) levam-no a experienciar o advento, evolução e extinção duma paixão idealizada sem futuro à vista. O mundo do sonho alimentado na primeira parte do relato [G. I] lugar na segunda [G. II] à realidade pragmática nua e crua dos factos.

Os caminhos que movem o memorista ao convívio dos Guermantes é também a história da sua ascensão mundana no universo duma boa centena e meia de príncipes e princesas, duques e duquesas, marqueses e marquesas, condes e condessas, barões e baronesas, frequentadores assíduos dos salões de moda do Faubourg-Saint-Honoré. Cerca de duas centenas da velha e nova nobreza gaulesa remanescente do Ancien Régime e da Monarquia Constitucional real e imperial, em plena vigência da Terceira República (1870-1940), minuciosamente apresentada, descrita e comentada pela instância enunciativa de primeira pessoa. Este testemunho poderá também ser entendido como um documento precioso de época, centrado de forma insistente no affaire Dreyfus, um conflito social e político que agitou a sociedade francesa por doze largos anos (1894-1906), dividindo-a em dois campos visceralmente opostos, os dreyfusards e os antidreyfusards, i.e., os defensores da inocência ou da culpa de traição do capitão alsaciano de origem judaica.

Fala-se muito no snobismo diletante de Marcel Proust, ao pintar com palavras escritas cada uma das sete tábuas do retábulo. O emissor externo de La recherche du temps perdu tanto se confunde com o cronista interno sem nome revelado das histórias contadas, como com os intervenientes trazidos à boca de cena, oferecendo ao leitor um quadro social preciso a que os anais de finais de oitocentos deu corpo. A futilidade, a frivolidade, a superficialidade, o pedantismo, a vaidade, o preciosismo e a ociosidade estão todos representados nos diversos episódios escolhidos para dar corpo a este segmento da heptalogia. A mudança e instalação em Paris, o fascínio pela duquesa de Guermantes, o convívio fraterno com Saint-Loup na guarnição de Doncières, as receções de Mme de Villeparisis, a visita ao excêntrico barão de Charlus ou a doença e óbito da avó ‒ entre outros eventos mundanos/familiares de maior ou menor dimensão discursiva ‒ são exemplo da morte inexorável da infância a abrir caminho para as restantes estafetas de vida que a saga nos trará. Mas essa descoberta virá mais tarde. Talvez nas férias de verão, quando os dias são mais extensos e as horas de leitura se alongam no tempo.

11 de abril de 2023

O caderno de notas do Arthur

Deiz-ha-bloaz laouen, Arzhur
Nada como pôr os pés na Bretanha para me sentir uma pessoa importante. Encontro o nome Arthur um pouco por toda a parte: bols, coussins, jouets. Depois, pus os pés na terra e assenti que, de A a Z, todos os nomes têm direito a um minuto de fama fugidia nos domínios do rei Arthur. Todos os nomes podem ser registados a pedido do freguês. 

Na estante duma livraria, encontrei um carnet de notes ainda sem notas de um qualquer Arthur que o visse. Achei que me podia servir para registar as notas ainda por decidir dum tempo já do agora ou ainda do porvir. Anotar que mais um ano se cumpriu e outros se perfilem no além. Que me dê os parabéns então e que outros mos deem também aqui.

5 de abril de 2023

Da velhilíngua à novilíngua

Pupet 2 by Oleg Dou on Artnet (2006-2009)
«O vocabulário da novilíngua era construído de modo a exprimir com exatidão, e muitas vezes com grande subtileza, qualquer sentido que um membro do Parti-do pudesse legitimamente querer exprimir, excluindo, ao mesmo tempo, todos os outros sentidos, e também a possibilidade de chegar a eles por meios indire-tos. Conseguia-se isto em parte através da invenção de novas palavras, mas prin-cipalmente eliminando as palavras indesejáveis e despojando as que restavam dos seus sentidos não ortodoxos, e tanto quanto possível de todos e quaisquer sentidos secundários. [...] Mesmo quando não se tratava de suprimir palavras manifestamente heréticas, encarava-se a redução do vocabulário como um fim em si, e não se permitia a sobrevivência de qualquer palavra dispensável. A no-vilíngua foi concebida não para aumentar, mas para restringir o campo do pen-samento, propósito indiretamente servido pela redução ao mínimo da gama das palavras.»
George Orwell, «Os princípios da novilíngua», in 1984 (1949)
PALAVRAS PROIBIDAS, ABOLIDAS & DESCARTADAS
As distopias estão na moda. Os tempos que correm não estão para menos. As produzidas no passado perderam há muito o seu caráter premonitório e tornaram-se perfeitamente visíveis no presente. Em todo esse processo literário de antecipação dos paraísos na terra, as palavras desempenharam sempre um papel de primeiríssima ordem. As inventadas, as banidas, as alteradas.

Aldous Huxley diz-nos no Admirável mundo novo (1932) terem as palavras «mãe» e «pai» sido ostracizadas, por serem tidas como pornográficas. George Orwell incluiu um Apêndice ao 1984 (1949) com os princípios oficiais da «novilíngua», que devia substituir a «velhilíngua». Ray Bradbury queima os livros e as palavras neles contidas no Fahrenheit 451 (1953). Nem mais...

A impoluta Albion resolveu desterrar para os confins inacessíveis das bibliotecas as edições originais d'Os Cinco da Enid Blyton, por terem linguagem ofensiva. Na malha da censura caiu também a obra de Agatha Christie, cuja redação deverá ser adaptada às sensibilidades modernas. É um fartar vilanagem sem fim à vista. O universo totalitário do Big Brother já esteve mais longe.

Entre nós, a ditadura do politicamente correto não chegou tão longe. Valha-nos isso. A moral e os bons costumes da imprensa cor-de-rosa limitou-se a declarar a solteirice dos famosos do momento como um estado civil universal. Nada de divorciados e viúvos. Os descasados regressam sempre à condição de eternos namorados. E cá vamos cantando e rindo neste oásis à beira-mar plantado. Até ver...

1 de abril de 2023

As pedras que ardem de Marco Polo

Caravana de Marco Polo
[Atlas catalão, c. 1375]

TRÊS VERSÕES DUM RELATO INSOLITO DE MARCO POLO
No dia das mentiras uma verdade que parece mentira...

Das pedras que ardem
É verdade que em toda a província do Catai há uma espécie de pedras negras que se tiram das montanhas com abundância e que ardem como cascas e mantêm mais o fogo que a própria lenha. E colocando-se à noite no fogo, se elas se acendem bem. Mantêm o fogo durante toda a noite; e em uma região do Catai não utilizam outra coisa para arder. Embora tenham lenha, estas pedras custam menos e são uma grande economia de lenha. 

De le pietre ch’ardono
Egli è vero che per tutta la provincia del Catai àe una maniera di pietre nere, che si cavano de le montagnecome vena, che ardono come bucce, e tegnono piú lo fuoco che no fanno le legna. E mettendole la sera nel fuoco, se elles’aprendono bene, tutta notte mantengono lo fuoco. E per tutta la contrada del Catai no ardono altro; bene ànno legne, ma queste pietre costan meno, e sono grande risparmio di legna.

Des pierres qui brûlent comme le bois
Par toute la province de Cathay, on tire des pierres noires des montagnes, qui, étant mises au feu, brûlent comme du bois ; et lorsqu’elles sont une fois allumées, elles gardent le feu pendant quelque temps, comme si, par exemple, on les allume le soir, elles durent jusqu’au lendemain. On use beaucoup de ces pierres, surtout dans les endroits où le bois est rare [1].
NOTA
[1] Les pierres noires dont il est ici question ne sont autre chose que la houille, dont il est fait men-tion dans des livres chinois datant d’au moins vingt siècles. La houille est très abondante surtout dans les provinces septentrionales de la Chine, où l’on en fait une grande consommation ménagère.