30 de junho de 2023

Duplicidades contraditórias

«O sentimento chamado saudade carateriza-se pela sua duplicidade contraditó-ria: é uma dor da ausência e um comprazimento da presença, pela memória. É um estar em dois tempos e em dois sítios ao mesmo tempo, que também pode ser interpretado como uma recusa a escolher; é um não querer assumir plena-mente o presente e o não querer reconhecer om passado como pretérito.»
António José Saraiva,  A cultura em Portugal (1981)

Há uma quinzena de anos, descobri por mero acaso o blogue da confraria dos antigos alunos da escola onde fizera o secundário. Revi-me à distância de quatro décadas inserido numa foto de grupo tirada numa visita a Guimarães, integrada na já longínqua viagem de finalistas ao norte do país. Passei a seguir com caráter quase diário a página do grupo e a comentar com frequência uma ou outra postagem em que a minha lembrança conservara sem grande esforço alguma ideia ou imagem. E os dias, semanas e meses foram-se sucedendo e as minhas visitas fiéis foram-se espaçando gradualmente até se tornarem pontuais, esporádicas ou residuais.

Numa fase inicial, ainda pensei participar num desses encontros primaveris de inícios de maio. Depois, fui observando atentamente as reportagens digitais divulgadas na altura e apercebi-me que cada um desses instantâneos estampados para a posteridade retratavam um conjunto infindo de ilustres desconhecidos. Por mais que tentasse, raramente consegui juntar um nome a um rosto. As memórias fugazes guardadas do passado não coincidiam com as fisionomias do presente daqueles ex-colegas, com quem nunca mais voltara a conviver, fixados meio século mais tarde pela objetiva duma câmara fotográfica. Senti-me um estranho entre estranhos e desisti da ideia.

Contas feitas e aferidas, o saldo obtido entre o deve e o haver leva-me sempre à conclusão de manter uma relação muito especial entre o então e o agora. Não nutro qualquer desejo íntimo especial de acolitar a ancestral duplicidade contraditória lusitana de estar com quem não estou ou de estar onde não estou. As únicas soedades, suidades ou saudades que sinto em mim ‒ vindas de distantes solitátis, soledades ou solidões ‒ não vêm dum ontem longínquo que não posso recuperar ou dum hoje fugidio que não posso reter, mas dum amanhã que há de vir. Quando estiver não sei onde nem sei com quem. Tanto faz. O que importa é que chegue ou chegando.

4 comentários:

  1. Os convites de colegas de antanho não me seduzem minimamente, quando o tempo, inexorável, me afastou da sua convivência. Memórias difusas de momentos passados (sempre felizes no seu entender...) não me convencem a ser parte de um todo que há muito não é integrante, pois tudo se transforma... Não há nada como a tranquilidade do presente, como os momentos felizes que se se constroem no presente, sem grandes angústias com o futuro sequer...

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    1. Já somos dois a sentirmos esse desapego a essas memórias difusas em ambiente escolar que, bem vistas as coisas, nem sempre terão sido os mais felizes da nossa vida...

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  2. Também a mim, me basta pousar o olhar nas fotografias de outros tempos vividos, recordações boas e menos boas.
    Viver o presente, sonhar o futuro enquanto cá andar…

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    1. Histórias d'Arthur d'Algarbe4 de julho de 2023 às 08:09

      As tais saudades do futuro, como diria o Padre António Vieira...

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