Avestruz com a cabeça na areia |
– Alguma coisa de ruim vai acontecer na terra. A televisão é um espelho dela e está em guerra [...] Alguém retira o som ao rio de violências que escorre do te-levisor, e sem som a violência assemelha-se a uma banda desenhada de mau gosto. A qualquer hora do dia, escorrem do televisor raparigas nuas, polícias, facadas [...] Esta manhã, achou que se eu não ligo a televisão, então o trambo-lho não tem nada que ficar a ocupar a mesa dificultando o acesso à janela e in-terferindo com o gravador. Melhor seria guardá-la. Salomé perguntou - «O que lhe parece, dona Alberti?» Eu precisava de pensar sobre se desejaria ainda vol-tar a ligá-la ou se, pelo contrário, a dispensaria de uma vez por todas. Salomé decidiu, pegou no aparelho ao colo e enfiou-o no armário da roupa. Fechou a porta, satisfeita, como se tivesse eliminado uma peça de entulho do seu cami-nho. Quando pude dizer que sim, que seria melhor desembaraçar-me daquele óculo que me falava do destino do mundo como um aterro sanitário, já ela tinha decidido por mim. Obrigada, Bosch, aprecio as pessoas assim. As fraquinhas podem chamar-se Indesit.Lídia Jorge, Misericórdia (2022)[60; 14, 6.º: 93-94; 15: 98-99]
A leitura do mais recente romance de Lídia Jorge trouxe-me à memória os dias, semanas e meses que em 2020 e 2021 passei no CHUA de Faro. Desde as primeiras páginas do Misericórdia, revi-me no ambiente ali vivido, muito embora as dependências duma residência de terceira idade se tivessem transformado nas diversas dependências hospitalares que me foram dadas a conhecer.
Nesses tempos de amanhãs incertos, de pandemia desconhecida e de isolamento forçado, revi-me na sucessão interminável dos dias e das noites, na ausência obstinada dum sono sem sonhos, na solidão vivenciada entre quatro paredes, na dependência obsessiva das campainhas e dos telemóveis, na presença compulsiva da televisão, a tal caixinha mágica que alguns dizem ter mudado o mundo.
Numa primeira fase do internamente, usufrui do silêncio do televisor avariado da minha enfermaria. Foi uma paz dos anjos efémera. Tudo mudou quando uma alma caridosa se lembrou de lhe dar um fôlego renovado para voltar a vomitar do nascer ao pôr-do-sol os incêndios de verão e as inundações de inverno nos telejornais, as telenovelas dos canais privados e os concursos no canal público.
Mais sorte teve dona Alberti, a relatora do diário monologado no hotel Paraíso. Retirou o som ao rio de violências duma terra em guerra a escorrer do televisor a qualquer hora do dia. Desembaraçou-se do óculo que lhe falava do destino do mundo como um aterro sanitário. Enfiou a cabeça na areia como uma avestruz e livrou-se de vez daquele entulho no seu caminho. Solução radical mas eficiente.
Mas mesmo escondendo a TV não evitas o desassossego. A própria Lídia, em conversa, me confessou a estranha vontade de chorar que a tem assolado. Afirmou até que pensava ser devido à idade. Disse-lhe que também tinha um choro interior contido, mas atribuía isso às desilusões que a nossa geração estava a viver relativamente ao 25 de abril e à crença na Europa. Respondeu-me: "já viste o que a vida nos reservou?"
ResponderEliminarRetorqui: "não me posso queixar! Apesar de tudo, considero-me afortunada."
Afortunados somos todos um pouco, mas não tanto como poderíamos ser e chegámos a acreditar que seria possível ir um pouco mais além. A televisão continua a ser um espelho do mundo, mas virado sempre para o tal aterro sanitário referido na ficção. Lamentável...
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