14 de junho de 2023

Patrick Modiano, evocação fugidia dum recontro juvenil numa primavera de cão

« Il nous avait offert un café et nous avait proposé de nous prendre encore comme modèles mais cette fois-ci dans la rue. Une revue américaine l’avait chargé d’illustrer un reportage sur la jeunesse à Paris, et voilà, il nous avait choisis tous les deux: c’était plus simple et ça irait plus vite et même s’ils n’étaient pas contents en Amérique, ça n’avait aucune importance. Il voulait se débarrasser de ce travail alimentaire. A notre sortie du café, nous marchions sous le soleil, et je l’ai entendu dire avec son accent léger:
– Chien de printemps.
Une réflexion qu’il devait souvent répéter, cette saison-là. »
Patrick Modiano, Chien de printemps (1993)

Quando a academia sueca entregou pela enésima vez o Nobel da literatura a um autor de língua francesa, havia numa livraria de Faro uma antologia do mais recente premiado que acabou por me vir parar às mãos. A Quarto Gallimard havia-a publicado com a designação genérica de Romans, referindo-se a um conjunto de dez títulos autónomos reunidos num só volume, por alegadamente formarem uma única obra e serem a espinha dorsal dos demais deixados de fora. Foi assim que pouco a pouco me tenho entretido a lê-los de modo espaçado, tendo agora entrado em cena aquele a que Patrick Modiano designou singularmente de Primavera de cão (1993), talvez a simbolizar o desaparecimento da inocência dos verdes anos pela voracidade canina dos vindouros.

Uma foto antiga encontrada por acaso pelo eu-narrativo desencadeia um turbilhão de memórias, vindas todas elas dum recontro fortuito de juventude numa primavera distante e fugidia. Tinha então 19 anos de idade e fora captada numa manhã de 1964 pela Rolleiflex experiente de Francis Jansen, quando se encontrava num café da place Denfert-Rochereau de Paris com uma amiga não identificada. O achado inesperado do instantâneo não solicitado leva o retratado a recordar em 1993 alguns momentos significativos da sua juventude perdida ou a ela associados, já recordados em anteriores relatos autobiográficos de cariz factual/fictício. A marca testemunhal das vivências do autor-ator é uma constante inabalável. A Guerra de 45, a Ocupação-Resistência-Libertação, as ruas e ruelas da cidade luz encontram-se indelevelmente registadas no seu número. Realidade histórica que nenhum buraco negro tem o poder atrativo de apagar.

O convívio dos dois é rápida. O fixador de imagens reais para uma revista norte-americana partiu para parte incerta pouco depois sem deixar rasto visível e sem dar novas de si ao jovem colaborador que lhe catalogara o acervo fotográfico. A tentativa de desvendar esse desaparecimento silencioso é lenta a chegar e os resultados obtidos muito parcos ou nulos. À distância de três décadas incompletas e na cercania do meio meio século de vida, o já maduro enunciador dos factos guardados no pensamento aproveita para realizar uma peregrinação pelos locais pisados na fase final da adolescência. Aquela em que se despedira de vez da fase mais despreocupada, irresponsável, inconsequente da sua existência, aquela que lhe abriria os caminhos a seguir na idade adulta, aquela que lhe daria os meios para decifrar na plenitude das suas capacidades mentais a efemeridade da condição humana.

Lidos os livros de Patrick Modiano, sempre uma sensação de déjà vu romanesco muito forte, um fluir constante de fragmentos soltos duma mesma história com um fio condutor muito ténue. Pelo menos a totalidade dos títulos que já tive a oportunidade de lançar o meu olhar atento desde que em 2015 o fiz pela primeira vez. Este último não foge à regra e permite-me prever que o mesmo se passará com os restantes que ainda terei ocasião de visitar. Vejo-o como um flash de luz intensa e instantânea duma época longínqua trazida à espuma dos dias à data da escrita e refrescado nas sucessivas leituras que desde então tem suscitado. Um fiel cliché fotográfico que caberia muito bem numa Polaroid clássica dos anos 60. Dito de outro modo, uma arte apurada de dizer muito com poucas palavras. Singularidade discursiva que alguns atingem em toda a sua plenitude testada e confirmada.

3 comentários:

  1. Lendo o título, pensei nesta primavera instável, de cão... Mas Modiano leva-nos a outras realidades, à pesquisa das intrigas do pretérito. O último romance que li dele foi Tinta Simpática, onde uma tinta invisível conduz o escritor à descoberta do passado. A sensacao de déjà vu é flagrante...

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    1. Os títulos das obras de Modiano têm sempre múltiplos sentidos. Associar a adolescência à passagem rápida da primavera é uma possibilidade entre outras mais em que o apetite voraz de cão possa estar envolvida...

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  2. Um texto muito interessante.
    Do autor só li um livro...

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