18 de setembro de 2024

Olhar de Mariana de Áustria olhado por Velázquez e talvez reolhado por Mazo

Velázquez, Mariana de Áustria (c. 1652-1653)
[Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga das Janelas Verdes]

Proveniência: Londres, col. da Sra. Lyne Stephens. Venda na Christie, Manson & Woods, Londres, 9 de maio de 1895, n.º 322 e identificado como um retrato de Maria Teresa. Comprado por Sir George Drummond, de Montreal. Venda na Christie, Manson & Woods, em Londres, a 26 de junho de 1919, n.º 208, identificado como um retrato de Mariana de Áustria. Adquirido por Calouste Gulbenkian. Em 1952 foi doado por Calouste Gulbenkian ao Museu Nacional de Arte Antiga
Benito Navarrete Prieto e Joaquim Oliveira Caetano
Identidade Partilhadas. Pintura espanhola em Portugal
MNAA -IN (Lx. 2023, 61, p. 202)

Protótipos & Reproduções

Olhei-a a olhar para mim nas Identidades Partilhadas das Janelas Verdes e lembrei-me doutros olhares seus, olhados noutros locais e momentos. Olhei-a por diversas vezes numa das muitas salas de exposição permanente do Museu Nacional de Arte Antiga, olhei-a outras tantas numa das salas maiores do Museo Nacional del Prado. Em Lisboa, olhei-a sempre de perfil e a meio corpo; em Madrid em grande pose e a corpo inteiro. Pormenores que não deixam dúvidas sobre o olhar régio de Mariana de Áustria, filha do Sacro-Imperador Romano-Germânico Fernando III e consorte do Rei Filipe IV de Espanha, Nápoles, Sicília e Sardenha. Não chegou a reinar em Portugal e Algarves, porque à data do matrimónio os Braganças já se tinham livrado dos Habsburgos há nove anos.

Os olhares entendidos de quem está habituado a olhar para os olhares expostos nas grandes pinacotecas mundiais dizem ser todas as versões conhecidas, as maiores e as menores, obra do primo olhar de Diego Rodríguez de Silva y Velázquez (1599-1660), certamente reolhadas, uma, outra e muitas vezes, por algum discípulo do grande mestre sevilhano. Costuma apontar-se o nome de Juan Bautista Martínez del Mazo (c. 1611-1667) como provável coautor dos olhares régios plasmados nessas réplicas que até nós chegaram, não fosse ele genro do criador da matriz original do olhar retratado. Pouco se sabe ao certo sobre a génese pormenorizada de cada uma delas, assentes, quase sempre, na qualidade intrínseca do olhar da arquiduquesa austríaca e rainha hispânica.

O retrato que se pode olhar no MNAA de Lisboa terá tido origem direta/indireta no exposto no Prado de Madrid, protótipo quase certo das demais reproduções que podem ser olhadas a corpo inteiro no Kunsthistorisches Museum de Viena e no Musée du Louvre de Paris, bem como a meio corpo quer no Historical Society Museum & Library quer no Metropolitan Museum de Nova Iorque. Não se pode dizer que o olhar da filha e neta de imperadores, mulher e mãe de reis não tenha espalhado o seu olhar sereno pelas grandes capitais museológicas do Velho e do Novo Mundo. Pelo menos em telas pintadas a óleo. Glória também a Velázquez e discípulos que na oficina de mestre reputado nos deram, mais de três séculos e meio, um rosto apático que ainda hoje continua a olhar quem o quer olhar.

Madrid, Museo del Prado - Viena, Kunsthistorisches Museum -  Paris, Musée  du Louvre

12 de setembro de 2024

Marcel Proust, quarta busca do tempo perdido entre Sodoma e Gomorra

« Ainsi les hommes peuvent avoir plusieurs sortes de plaisirs. Le véritable est celui pour lequel ils quittent l'autre. Mais ce dernier, s'il est apparent, ou même seul apparent, peut donner le change sur le premier, rassure ou dépiste les jaloux, égare le jugement du monde. »

Até ao momento, tenho voltado todos os anos à companhia do Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Tenho-o feito nos meses mais calmos das férias de verão, alternando os banhos de sol e mar com os mergulhos centrados nas centenas de páginas de cada um dos painéis mais ou menos autónomos da Heptalogia do grande contador de histórias gaulês. Nesta volta, atirei-me ao Sodoma e Gomorra (1921-1922), publicado na origem em duas partes avulsas, reunidas agora num volume único da Folio Classique, editado por Antoine Compagnon, que também o anotou profusamente, resumiu capítulo a capítulo e organizou um completo dossier documental e bibliográfico. Por este andar e ritmo, ainda terei de realizar algumas viagens mais no próximo triénio até concluir o percurso total da obra lá nesse distante horizonte onde se reside O tempo reencontrado.

Depois de ter avivado as reminiscências dos verdes anos viradas para o lado dos Swann [TI], de ter flanado à sombra das jovens na fina flor da idade [T. II] e de se ter voltado para a banda dos Guermantes [TIII], o narrador anónimo da viagem autobiográfica foca-se no universo homoerótico dos homens-mulheres, oriundos das cidades bíblicas de Sodoma e Gomorra, poupados ao castigo divino do fogo/enxofre caído do céu [TIV]. O caso Dreyfus (1894-1906) muitas vezes aludido no relato está no seu auge, a marcar a viragem do século (1900), ponto fulcral da Belle Époque (1870-1914) e da Art Nouveau (1890-1920). É neste contexto de grande protagonismo da cultura francesa no mundo que a ação decorre e se acerca de todos os leitores que continuam a seguir as memórias do narrador a servirem de respaldo aos fantasmas secretos experienciados pelo autor real de histórias imaginadas.

A etapa dos vinte e poucos anos do protagonista-relator é passada entre Paris e Balbec, completada por uma intensa peregrinação pelas imediações da estância balnear normanda. Os comboios locais e regionais, as deslocações em viaturas de atração animal ou automóvel são frequentes. Os companheiros de percurso, convívio ou permanência nos espaços cénicos são os mesmos de sempre. Uma parada constante de duques e duquesas, de príncipes e princesas, no meio de muitos outros titulares da mais alta extração hierárquica em pleno período da Terceira República (1870-1940). Em cada uma das quase sete centenas páginas das alegadas memórias involuntárias trazidas à colação, o snobismo, arrogância, futilidade, pedantismo e altivez pululam, a caraterizar o mundo da frivolidade, aparência, ostentação, cinismo e soberba da alta aristocracia sobre a baixa, da grande burguesia sobre a pequena, dos ricos sobre os pobres. Com boa vontade, podemos ver aqui e ali uma fina ironia, sátira ou crítica mais ou menos discerníveis do autor, caso não caísse involuntariamente nos mesmos defeitos de que era acusado fora do universo fingido dos romances.

As principais linhas condutoras da trama são fáceis de traçar e estão ancoradas na relação oscilante do narrador por Albertine, na atenção cruzada desta por uma ou outra das suas amigas mais chegadas e na atração libidinosa do Barão de Charlus pelos efebos caídos na sua esfera de interesse. Sintetizando, amores/desamores contados intermitentemente ao correr da pena, para dar espaço às inúmeras tiradas repletas de frases longas, períodos extensos e parágrafos gigantescos da fabulação. A falta duma tessitura narrativa continuada é compensada pelas digressões/reflexões infindas sobre arte, letras, música, política, filosofia, religião, genealogia, etimologia, viagens, geografia, toponímia, medicina, divisas e outros assuntos, com um especial destaque para o designado vício anormal e imoral dos invertidos, sejam eles homens ou mulheres.

Desconhece-se o nome do memorista deste imenso retábulo formado por sete imensas telas temporais de vidas vividas e a viver. Bem se podia chamar Marcel, tal como o romancista que o trouxe à luz do dia, substituindo-se o Proust por um qualquer apelido de fantasia literária. É que a fusão da ficção e do factual são por demais evidentes nesta manta de retalhos de eventos pretéritos registados em formas de escrita impressa nas folhas em branco duma existência de faz de conta. Talento não lhe faltou para pintar com palavras o políptico duma existência singular, idêntica a tantas outras, só lhe tendo faltado a coragem para assumir num cenário real os traços menos recomendáveis atribuídos aos atores trazidos à ribalta na manha gráfica dum livro. Bem vistas as coisas, ainda bem que os pruídos vigentes na época o levaram a tomar essa decisão. Ficamos todos a ganhar. Sobretudo aqueles que, como eu, ainda acreditam no prazer ilimitado da leitura. E venham os próximos episódios, que a busca do tempo perdido ainda tem muito para desvendar.

6 de setembro de 2024

Decénios em contracorrente

D e c é . n i . O

Quando passamos os sete decénios de existência, temos muitas histórias para contar e eu já contei algumas aqui nestas histórias digitais. Se os fados para estiverem virados, algumas mais haverá para encher os dias, meses e anos que cabem num novo decénio de histórias. Assim o Arthur d'Algarbe tenha engenho e arte para o fazer.

Uma década recheada com histórias aos quadradinhos, com artes, astros, filmes, história, livros, música, números, palavras, sentidos, histórias de televisão, hospital, vida histórias em contracorrente e tutti quanti, dum cavaleiro de cavalarias trazidas das histórias noveladas de mundos imaginadas para as histórias centradas no mundo real.

Estante de livros já lidos e relidos com história dentro, livros de crónicas feitas, de ensaios escritos, de fotos tiradas, de memórias lembradas, de vidas vividas; livros matriciais antigos, clássicos e atuais, daqui e dali, um pouco de todo o lado; versos ao gosto lírico, épico e dramático; prosas em forma de conto, novela e romance.

O encerramento duma livraria foi o ponto de partida para a abertura em contracorrente destas histórias de faits divers q.b., baseado numa novela de cavalaria medieval gaulesa. Viro a página desta década a referi-la, para que as emoções da aventura então encetada propiciem uma nova etapa de escritas e leituras em conta-corrente.

2 de setembro de 2024

Mercearias & Supermercados

Roque Gameiro - 1901
João da Esquina conservava sobre José das Dornas um olhar desconfiado
[Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna]

Mercearias de Bairro & Supermercados de Periferia

Em meados da década de 6O, a minha cidade acordou alvoroçada, porque estava anunciada a abertura do primeiro supermercado do burgo. As trombetas de triunfo duma nova era soaram com pompa e circunstância. O toque de finados dos velhos tempos ecoaram em surdina, meio envergonhados, como se viesse de muito longe, dum espaço assustadoramente distante. Situado na esquina de duas vias centrais de trajeto urbano, mais não era do que um longo corredor repleto de expositores oferecidos ao livre acesso dos clientes. À entrada havia os carrinhos com rodas para levar as compras até à caixa registadora. Tudo como nos filmes que o único canal então existente da RTP transmitia em dias certos e a preto e branco.

Para trás, começaram a ficar as tradicionais mercearias de bairro, aquelas que estavam ao dispor das necessidades básicas de toda a vizinhança. Na proximidade da minha casa, havia um par delas à distância dum atravessar de rua. Tornámo-nos clientes em exclusivo da que ficava mais perto de nós. Também parecia ser a melhor. Os produtos estavam à vista de todos, mas separadas do freguês por um eficiente balcão. Numa das pontas, estava munido duma guilhotina de cortar bacalhau e, na outra, duma bomba medidora de azeite. O centro de operações era ocupado por uma balança a princípio bem calibrada, que presidia a todas as operações de venda avulso, como uma verdadeira rainha que era e não prescindia de ser.  

O supermercado pioneiro da minha terra já não existe e a mercearia da minha rua já fechou as portas há uma eternidade. Alguns desses estabelecimentos renderam-se aos novos tempos. Os menores passaram a minimercados, lojas gourmet e superettes. As maiores deslocaram-se para a periferia transformadas nos hipermercados dos shopping centers. Atropelam-se uns aos outros, esvaziam as cidades aos fins de semana e dias feriados, converteram-se nos grandes templos do consumo dos bem de primeira e nenhuma necessidade. Dá vontade de dizer como Platão na República e José Saramago repetiu na epígrafe inicial da Caverna: «Que estranha cena descreves e que estranhos prisioneiros, São iguais a nós».