20 de agosto de 2025

Gustave Flaubert, educação sentimental dum jovem francês oitocentista

« Il voyagea.
Il connut la mélancolie des paquebots, les froids réveils sous la tente, l’étourdis-sement des paysages et des ruines, l’amertume des sympathies interrompues.
Il revint.
Il fréquenta le monde, et il eut d’autres amours, encore. Mais le souvenir conti-nuel du premier les lui rendait insipides ; et puis la véhémence du désir, la fleur même de la sensation était perdue. Ses ambitions d’esprit avaient également diminué. Des années passèrent ; et il supportait le désœuvrement de son intelli-gence et l’inertie de son cœur. »
Gustave Flaubert, L'Éducation sentimentale - Histoire d'un jeune homme  (1869)

Os livros são como as cerejas, pega-se numa e vem logo um monte delas à arreata. Este lugar comum voltou a comprovar-se muito recentemente, quando a escrita de Julian Barnes me levou a viajar pelas páginas ditas pós-modernistas do Flaubert's Parrot (1984), já comentadas aqui. As grandes/pequenas obras dum dos vultos matriciais da literatura francesa oitocentista são escalpelizados à exaustão. De todas essas referências, retive o título duma delas, cuja sonoridade longínqua me ecoou na memória de modo familiar, como se a tivesse visitado numa época pretérita indefinida. Procurei-o na tal estante de leituras cumpridas ou adiadas e encontrei L'Éducation sentimental (1869) à minha espera, depositado ao lado de muitos outros autores/volumes que me encheram as medidas ao longo dos anos. Abri-lo, folheá-lo e visitá-lo foi um ato imediato a que não pude resistir.

O que mais me surpreendeu ao fazê-lo foi deparar-me com um lídimo palimpsesto, constituído por uma panóplia infernal de anotações, comentários, observações, raciocínios e sublinhados simples, duplos e envolventes, caligrafados a lápis, há quase cinco décadas, nas entrelinhas e margens exíguas do velho livre de poche da GF. Fiz um esforço hercúleo para me lembrar do argumento deste roman d'apprentissage em forma de relato iniciático dum jovem, mas tive de me render à evidência de não ter guardado a menor ideia do seu teor, muito embora a temática central se encontre espelhada no título e subtítulo escolhidos. Concluo a contragosto de estar longe de ter sido uma das tais escritas que me marcaram ao longo da vida. Presumo que tenha feito parte daquele rol de obras de leitura académica obrigatória em tudo opostas às tomadas por livre e espontânea vontade. Convenhamos que as peripécias existenciais dum estudante parisiense oitocentista de direito só por mero acaso se poderiam cruzar com as dum aprendiz de letras na capital dum império moribundo em meados da centúria seguinte.

Para avivar a memória, passei os olhos rapidamente pela síntese da contracapa, que, em dois parágrafos de escrita miudinha, traçou o itinerário sucinto do herói ficcionado e do cenário histórico-cultural convocado. Sem grandes pormenores de permeio, destaca a história do amor falhado de Frédéric Moreau por Mme Arnoux, situada entre o regresso do jovem protagonista a casa depois de ter terminado o bachot descrito nas primeiras linhas e a visão do velho celibatário grisalho exibida nas derradeiras. Meia dúzia de linhas para revelar o alfa e o ómega da educação sentimental anunciada e cerca de três centenas para revelar as causas do resultado obtido, todo este drama desenvolvido na longa crise social francesa que conduziria à queda da monarquia burguesa de Louis-Philippe a subsequente revolução de 1848. A imersão definitiva no corpo de texto impôs-se como se fosse a primeira vez que o fazia e toda a tessitura narrativa estivesse por desvendar.

Lidas as três partes e dezanove capítulos do livro, apercebemo-nos que as causas explicativas do insucesso amoroso plasmado no romance se devem à circunstância de ter sido dirigido a uma mulher casada, mãe de família e fiel ao marido por um pretendente solteiro, ocioso e pouco habilitado na arte da conquista extramatrimonial. E pouco mais haverá a acrescentar ao já referido. A exiguidade de dados argumentativos, elaborados à custa de descrições infindáveis, a ofuscar as narrativas impressionistas de cenas justapostas, sem intriga percetível, sem apoteose ou catástrofe, sem a caraterização clara das personagens centrais e laterais, terá estado também na origem da indiferença do público e das críticas desfavoráveis que a obra mereceu à data do seu lançamento, persistentes após a morte do autor. Hoje em dia, a atenção mais sensível do enredo assenta nos paralelismos bibliográficos apontados à exaustão entre o sujeito interno da ficção e a entidade externa que lhe deu vida nas páginas impressas duma história fingida como muito de verdadeiro. A glória obtida com a polémica Madame de Bovary estará igualmente na origem da notoriedade póstuma da derradeira criação literária de Gustav Flaubert. É que, regra geral, as obras menores dum artista acabam quase sempre por ser arrastadas para a beira das tidas como maiores. Dão-lhes uma visibilidade adicional e enriquecem o corpus literário do autor.

15 de agosto de 2025

Zapping

Sandra Palhares
g
zapping | záping
(nome masculino)
Prática do telespetador que muda frequentemente de canal por meio do telecomando.
Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

Numa noite normalíssima de verão, liguei a televisão para seguir as notícias do dia. Antes da designada hora certa, os canais privados tinham começado a despejar imagens de florestas a arder e de terras assoladas pelas chamas. Os vermelhos alaranjados com tonalidades amarelas esbranquiçadas a oscilarem com os cinzentos enegrecidos da terra queimada tentavam colar o público ao ecrã em detrimento das rivais de sinal aberto ou fechado, como se os relatos informativos selecionados diferissem muito uns dos outros. De facto, as danças e contradanças das labaredas, lumes e fogos transmitidos em direto invadiram outrossim o plasma televisivo de estação pública com uma grandeza trágica tão incendiária como a difundida pela concorrência.

Altura mais que indicada para mudar dos canais generalistas para os temáticos. Em menos dum ai, caí nas malhas do reality show mais longevo da rede televisiva portuguesa, o Big Brother, estreado entre nós um quarto de século. Aparentemente o formato continua a jogar com o mesmo agrado/desagrado dos espetadores, apesar das variantes ensaiadas ao longo dum número astronómico de edições batizadas de BB-qualquer-coisa de Secret Storys de pacotilha ou de Desafios Finais dos Famosos não se sabe bem de quê do reino do império minuto, à imagem das estrelas cintilantes das canções pop-swing descritas por Lídia Jorge n'A noite das mulheres cantoras, que aqui nenhuma celebridade canta duas notas musicais seguidas.

Deixei a casa mais vigiado do país do Grande Irmão ficcionado por George Orwell no Nineteen eighty-four e que nenhum dos inquilinos atuais alguma vez terá ouvido falar ou lido. Nos telejornais da noite, os incêndios continuavam a lavrar em todos eles com a mesma intensidade. Nessa meia hora já a Euronews tinha difundido duas séries completas de notícias de todo o mundo. Encetei uma nova tentativa pelas cadeias alternativas da Nos e deparei-me com tudo na mesma no Reino da Dinamarca. Passei à frente dos crimes atrás de crimes, como se os da CMTV não bastassem q.b., recusei as histórias natalícias e da carochinha do tempo da maria cachucha, transmitidos a toda a hora, num vira o disco e toca o mesmo atroz.

Zapping atrás de zapping, voltei à RTP, SIC e TVI. Três quartos de hora volvidos, travavam uma guerra pelas audiências, centrada no sobe-e-desce das tarifas do tresloucado americano, no chacina sem fim à vista das gentes de Gaza do genocida israelita, no assalto sem quartel à Ucrânia pelo tiranete do Kremlin. Um fartar vilanagem sem tréguas perpetradas pelo novo eixo do mal, apelidada de nova ordem internacional, neste Brave New Word despudorado que nem Aldous Huxley teve a coragem de descrever ou prever. Fartei-me do ruído das cantilenas da banha da cobra das instâncias populistas pró-nazis agora no poleiro, fechei a televisão, escolhi um vídeo no YouTube, abri um livro e viajei tranquilamente para outras paragens.

11 de agosto de 2025

Educação musical

Mozart score written when 8 years old Art Print

Curriculum Musicæ

Na era longínqua em que frequentava a catequese e ia à missa todos domingos, tive uma catequista já entrada na idade, solteirona por opção ou viúva por revés, que me dava umas aulas de piano depois da doutrina e uns conselhos suplementares de catolicismo cristão nos intervalos musicais. Nessa altura, andaria na segunda classe do primário e no primeiro do catecismo, rondaria então os 7/8 anos. Depois vieram as férias de verão e, no início do novo ciclo letivo, a Senhora D. Maria do Rosário foi substituída por uma outra instrutora cujo nome se me varreu por completo da memória. O mesmo posso dizer da minha aprendizagem pro bono então recebida. Exceptuo umas tantas palmadas nas mãos para corrigir posições.

Por essa altura, frequentei um coro de meninos do ensino básico da cidade. Os ensaios eram semanais e efetuavam-se na escola central do burgo, o que nos obrigava a fazer uma longa caminhado desde o Bairro da Ponte até ao Posto da Polícia junto ao Parque da Rainha. Cantava-se mais durante o percurso do que na sala apontada para tal. Destas aventuras corais, resultou sempre uma agitação infantil a tocar a indisciplina, que levou o prof. Dinis a cancelar o projeto. guardei no ouvido o malfadado Papagaio pena verde, repetido à exaustão sem grandes resultados polifónicos a assinalar. Aprendi também à minha custa que uma 1.ª voz como a minha nunca se daria bem ao lado duma 2.ª cantada por um colega de timbre mais espigadote.

De degrau em degrau, o ciclo preparatório abeirou-se, o Canto Coral instalou-se e o P.e Renato impôs-se. Durante dois anos, passei a ter 1/4 de hora por aula de solfejo, notação musical e leitura de partituras, alternados com os 3/4 de hora restantes de anedotas, apartes e historietas contadas a propósito/despropósito de tudo e de nada. Recordo os momentos hilariantes em que relatava a torto e direito as mirabolantes travessuras do Menino Tonecas. Esqueci-me de todas, mas as gargalhadas provocadas ainda hoje me ecoam nos ouvidos. Muito de vez em quando, punha a turma a entoar uma cantiguinha popular que pouco tinha a ver com a teoria musical já aflorada. O uso regular do diapasão gerava uma risada geral logo seguida do justo raspanete. Tempos épicos esses em que a risota coral reinava.

A escassa formação musical até então bebida a conta-gotas secou a valer no secundário. Salvou-se, mesmo assim, com os apontamentos desviantes às aulas de História ou Português do Dr. Bento Monteiro. Por um qualquer motivo dei com ele a falar do sucesso que Janette MacDonald & Nelson Eddy tinham obtido em Hollywood nas décadas de 30-40. Palavra puxa palavra, o confronto passou a fazer-se entre Mario Lanza e Enrico Caruso. Este último tenor tido por si como o vulto maior do canto lírico de todo o sempre, a par de Maria Callas como soprano. Chegou a levar um velho gira-discos para a sala, o que nos permitiu escutar pela primeira vez as vozes de alguns deles. A si se terá devido também a realização de alguns concertos de câmara e orquestra juvenil no ginásio da escola, os primeiros da minha vida.

O meu convívio áureo com a música deu-se fora do ambiente escolar. As salas de aula foram trocadas pelas salas de concerto da capital, quando por ali andei no encalço dum grau académico superior. Não deixei escapar uma Ópera no Coliseu e no Trindade, um Ballet na Gulbenkian e no São Luís, uma Audição no São Carlos, uma Zarzuela no Tivoli ou um Concerto onde quer que o houvesse. Fazia-o com um ou outro colega mais sensibilizado para a arte melómana das notas cantadas, dançadas ou tocadas. Pena ter perdido os programas e folhas de sala mantidas na altura com tanto cuidado. Ficaram-me na memória as imagens sonoras e visuais então bebidas com avidez. Fugiram-me os nomes de muitos dos compositores, intérpretes e diretores que nesses instantes singulares lhes deram corpo e alma.

Na fase laboral seguinte, revezei a música gravada com um ou outro concerto dado aqui nestas bandas austrais onde me fixei. Na etapa quase jubilada, alterei o cenário. Esqueci-me do dedilhar meteórico pelo teclado do piano acústico vertical de sala no final das lições de catecismo e dediquei-me a reviver as poucas luzes ainda cintilantes das aulas do segundo ciclo me tinham a custo acompanhado. Integrei por um ano o grupo coral da UAlg e transitei depois de armas e bagagens para o Ossónoba. No primeiro, relembrei alguns trechos líricos ouvidos em tempos ao vivo e a cores, no segundo  domei a voz a um canto mais mais rigoroso e variado. Estou há um par de meses no Cantate Domino, um grupo de câmara mais restrito de música sacra, numa tentativa de reforço do curriculum musicæ ideal. 

5 de agosto de 2025

Julian Barnes e o papagaio de Flaubert numa viagem pela república das letras

“Life… is a bit like reading. … If all your responses to a book have already been duplicated and expanded upon by a professional critic, then what point is there to your reading? Only that it’s yours. Similarly, why live your life? Because it’s yours. But what if such an answer gradually becomes less and less convincing?”
Julian Barnes, Flaubert’s Parrot (1984)

Quais as fronteiras do Romance, o único grande género poético que não mereceu a atenção teórica de gregos e latinos, na sua ânsia pedagógica de definir os universos da literatura. É que para uns e outros, uma narrativa em prosa estaria a anos-luz de distância duma narrativa em verso ou Epopeia. Mesmo assim, a verdade é que à medida que a popularidade dos relatos versificados se diluiu com a passagem do tempo, os prosificados acabaram por se tornar nos preferidos dos leitores atuais. Julian Barnes demonstra n'O Papagaio de Flaubert (1984) que a miríade de formas usadas à exaustão há mais de dois mil anos podem, muito bem, ser sucedidas/completadas por outras pessoais duma pós-modernidade transversal elaborada na passagem do segundo para o terceiro milénio.

Confidencia-nos o autor n' «O papagaio aos 40» ‒ Prefácio inserido na edição especial comemorativa do quadragésimo aniversário do lançamento da sua magnum opum ‒, ter sido finalista do Brooker Prize desse ano, galardão que acabaria por ver fugir para outras mãos, à partida mais merecedoras de o receber que as suas. Recebera a notícia da nomeação quando se encontrava com a mulher a passar duas semanas em Cantal, a que então se poderia chamar La France profonde. Embalado por esse impulso de revelar factos vividos no início duma carreira literária brilhante, tece uma série de comentários sobre as relações imprevisíveis estabelecidas entre o escritor e o leitor, bem como do sucesso que poderia ou não vir a granjear no futuro, mormente na escolha do título a dar aos livros por si gizados, neste caso resultante da associação do nome duma personalidade célebre com um item pouco óbvio.

O ponto de partida para a composição deste exercício de escrita criativa situa-se, pois, na figura dum dos vultos maiores da cultura literária gaulesa oitocentista e numa das mais exóticas aves que povoam a nossa imaginação, apresentados em imagens coloridas e em letras gordas na capa do volume que, à partida, revelará essa associação algo insólita. Tal tarefa, todavia, será confiada ao fictício Geoffrey Braithwaite, narrador central do relato, que muito de vez em quando, se fará substituir por outras entidades reais/inventadas diversificadas, conferindo assim ao texto uma visão multifacetada dos factos trazidos à colação, perfeitamente adequada para tecer as fases mais significativas da vida de alguém, como se fora um conjunto de buracos ligados por um fio, como se fosse uma rede de pesca. Por muito peixe que se apanhe, há sempre muito mais que fica por filar.

Descobrir o paradeiro do papagaio empalhado que terá inspirado Gustav Flaubert a desenhar com palavras Un cœur simple (1877), o mais conhecido conto que legou à posteridade, amplamente citado, resumido e comentado ao longo desta digressão da criação/crítica literárias. Lido este livro de ensaio biográfico de feição romanesca, fica no ar a vontade imperiosa de revisitar com outros olhos as páginas tantas vezes aludidas da Madame Bovary e de L'Éducation sentimentale, há tanto tempo deixadas em repouso numa estante de livros da minha biblioteca pessoal, e estrear-me na descoberta da Salambô e, inevitavelmente, nos Trois contes que albergam a tal história curiosa de Loulou, o papagaio de corpo verde, com a ponta das asas cor-de-rosa, a cabeça azul e a garganta dourada. 

EPÍGRAFE
«A vida… é um pouco como ler. … Se todas as suas respostas a um livro já foram duplicadas e ampliadas por um crítico profissional, então qual o sentido da sua leitura? Apenas que ela é sua. Da mesma forma, porquê viver a sua vida? Porque ela é sua. Mas e se essa resposta se tornar cada vez menos convincente?»

31 de julho de 2025

O homem a quem chamaram cavalo...

I'm not a horse, I'm not an animal, I'm a man...

 A L T E R I D A D E S                                                       

Anda por aí disponível na Net um filme que eu vi nos anos 70, já não me recordo muito bem onde, mas cuja memória me acompanhou até hoje, apesar de nunca mais o ter voltado a visionar desde então no grande ecrã. Revi-o agora em formato pequeno num canal da TV Cabo, o Star Movies 92 da NOS, no meu plasma caseiro. Espero que se mantenha disponível nos próximos tempos, sobretudo por tratar dum conjunto de tópicos tão atuais nos nossos dias, ligados ao embate de culturas oriundas de espaços geográficos diametralmente opostos e a aversão visceral duns e doutros aos distintos sistemas civilizacionais em confronto. Estou-me a referir a A Man Called Horse (1970), uma película estadunidense realizada por Elliot Silverstein, baseado no conto de Dorothy M. Johnson, Indian Country (1968).

Nas décadas anteriores, os westerns clássicos exibidos nos cinemas ou emitidos na televisão primavam pelas lutas ferozes entre índios e cowboys, quer dizer, entre os corajosos vaqueiros americanos e os ferozes indígenas emplumados. A completar esse estado bélico constante contado com imagens em movimento havia, ainda, toda uma gama de histórias aos quadradinhos, em que os colts certeiros dos bons derrotavam sem exceção os arcos e flechas dos maus. Ou seja, naquele mundo exótico do Far West mítico, os caras-pálidas levavam sempre a melhor sobre os peles-vermelhas. As aventuras infindas do Kansas Kid, do Roy Rogers, do Buffalo Bill contra o Touro Sentado, o Nuvem Vermelha, o Cavalo Louco preenchiam o nosso imaginário infantil a contaminar largamente o juvenil e até adulto.

O homem a quem chamaram cavalo veio dizer-nos que o ser-se diferente não nos faz, a priori, nem bons nem maus. Tudo depende  de se cumprirem ou não as regras estabelecidas por cada um dos grupos em presença. Neste caso concreto, entre um representante singular dos invasores ingleses e uma tribo inteira dos invadidos Sioux. O contacto abrupto e o convívio forçado dum europeu nunca até então visto leva a tribo americana que o arrestou a considerá-lo como um mero animal, sem o menor traço de humanidade claro à flor da pele. Tanto para o cativo como para os cativadores, a lei da alteridade considera o outro, individual/coletivo, como um selvagem, cruel e bárbaro. Estão todos errados, afinal. Os padrões é que variam, ou seja, os plasmados na tela e os visionados pelos espetadores.  

No ano em que este filme estreou, estavam ainda em cartaz dois outros de temática afim: The Royal Hunt of the Sun (1969) e o Soldier Blue (1970), de Irving Lerner e Ralph Nelson. Sobre o mais antigo, falei um pouco aqui, o que farei certamente acerca do mais recente, quando voltar a revê-lo numa qualquer estação televisiva. Com três idas ao cinema em menos dum ano, todos os mitos e contramito ligados à conquista do Novo Mundo pelo Velho partiram à desfilada para o país distante do nunca mais. Para tal terá contribuído também o desconforto de ter seguido todos os debates verbais travados na tribo ameríndia em sioux sem legendas auxiliares, pondo-me assim na pele das minorias que são confrontadas com uma língua estranha como se fosse de facto a sua. Tão simples e tão eficiente, em suma.

26 de julho de 2025

Raiz, tronco e copa da árvore da vida

Frida Kahlo, Árbol de familia, 1936
«Mis abuelos, mis padres y yo»
[
MoMA - Museum of Modern Art à New York]

Παῦροι γάρ τοι παῖδες ὁμοῖοι πατρὶ πέλονται,
οἱ πλέονες κακίους, παῦροι δέ τε πατρὸς ἀρείους.
[Poucos são os filhos semelhantes aos pais:
a maior parte são piores; só raros são melhores.]
           Homero, Odisseia (II, 276-277)

Dia dos Avós: Dia dos Pais & Dia dos Netos...

Avô és, neto foste. Esta máxima aplica-se também, mutatis mutandi, à geração intermédia. Pai és, filho foste. Gostaria de trocar o foste pelo és, mas, na parte que me toca, a forma verbal pretérita há muito que substituiu a forma verbal presente. Os fados, o destino, a sina, a fortuna ou o que quer que seja que mede a distância entre o alfa [α] e ómega [ω] cumpriu inexoravelmente o seu percurso, o tal a que o alvedrio humano é sempre vencido pelo determinismo cósmico.

Os meus avós paternos só conheceram os cinco filhos que geraram e, mesmo assim, muito brevemente. Dos oito netos que tiveram o primogénito nasceu após a morte dos dois. O meu pai perdeu a mãe aos dois anos e o pai aos nove. Foi criado pelas irmãs mais velhas e depois internado num colégio. A memória que tinha dos pais era muito escassa e foi essa que nos transmitiu a mim e ao meu irmão. Viviam das terras onde tinham nascido e onde viriam a morrer.

Os meus avós maternos oram mais bafejados. Conheceram a única filha que tiveram e os dois netos que esta lhes deu. Destes, a minha memória é muito fértil, embora distante de décadas no tempo. As palavras que diria a seu respeito não caberiam neste lugar tão justo de espaços e linhas. Desfrutei a sua companhia até à adolescência e mais seria se a raiz, tronco e copo da árvore da vida assim tivesse querido. Ficaram os frutos mais próximos para contar como foi.

No dia dos avós, gostava de os ter aos quatro aqui comigo. Guardo duns e doutros os apelidos de família transmitidos por via varonil de pais a filhos. Seguindo a práxis ancestral injusta que deixa de fora os sobrenomes maternos, também já fiz o mesmo com as minhas filhas e neto. Um legado tradicional que promete dilatar-se por uma geração mais. Vão-se as gentes ficam os nomes cuja origem se perde num tempo remoto onde a memória de quem os usa não chega.