14 de abril de 2025

Pablo Neruda, os versos de 20 poemas de amor e de uma canção desesperada

POEMA 20
Puedo escribir los versos más tristes esta noche. | Escribir, por ejemplo: «La noche está estrellada, | y tiritan, azules, los astros a los lejos.» | El viento de la noche gira en el cielo y canta. | Puedo escribir los versos más tristes esta noche. | Yo la quise, y a veces ella tambiém me quiso. |  En  noches como ésta, la tuve entre mis brazos. | La besé tantas veces, bajo el cielo infinito. | Ella me quiso, a veces yo también la quería. | Cómo no haber amado sus grandes ojos fijos. | Puedo escribir los versos más tristes esta noche. | Pensar que no la tengo. Sentir que la he perdido. | Oír la noche inmensa, más inmensa sin ella. | Y el verso cae al alma como al pasto el rocío. |  Qué importa que mi amor no pudiera guardarla. | La noche está estrellada y ella no está conmigo. | Eso es todo. A lo lejos alguien canta. A lo lejos. | Mi alma no se contenta con haberla perdido. | Como para acercarla mi mirada la busca. | Mi corazón la busca y ella no está conmigo. | La misma noche que hace blanquear los mismos árboles. | Nosotros, los de entonces, ya no somos los mismos. | Ya no la quiero, es cierto, pero cuánto la quise. | Mi voz buscaba el viento para tocar su oído. | De otro. Será de otro. Como antes de mis besos. | Su voz. Su cuerpo claro. Sus ojos infinitos. | Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero. | Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido. | Porque en noches como ésta la tuve entre mis brazos, | mi alma no se contenta con haberla perdido. | Aunque éste sea el último dolor que ella me causa, | y éstos sean los últimos versos que yo le escribo.
Pablo Neruda, Veinte poemas de amor y una canción desesperada, 1924

No distante ano de 1971 foi publicada entre nós uma edição bilingue das palavras versejadas por Pablo Neruda nos Veinte poemas de amor y una canción desesperada (1924), título cuja passagem para português se dispensa aqui, tal a poeticidade contida no todo obtido. Na edição das Publicações Dom Quixote, a passagem das duas dezenas os poemas de amor e da canção desesperada estiveram a cargo de Fernando Assis Pacheco. Recebi esse livrinho de 111 páginas no meu aniversário de há mais de meio século. Li-o vezes sem conta tanto no idioma vertido como no original. A partir de certa altura, deixei de parte a versão trasladada, porque, como diz o ditado italiano, tradutor, traditore, por se tratar mesmo duma traição a que não podemos fugir dado o nosso conhecimento limitado das línguas em que a linguagem verbal se manifesta.

Não sou um leitor assíduo de poesia lírica versejada. Prefiro a prosa poética narrada. Faço-o mesmo assim de quando em vez, encantado com os ritmos rimados completamente afastados dos meus talentos de escrevinhador de reais quotidianos banais. Também está longe das minhas histórias bloguistas virtuais. A subjetividade autodescritiva do imaginário criativo dos poetas não se pagina com a objetividade de quem os e, depois, substituir uma forma pessoal de olhar o mundo por outras concorrente pouco sentido faz ou fará. Voltei a abrir o livrinho que me acompanha desde os vinte anos. Fi-lo agora que essa data natalícia se voltou a repetir. Boa forma de celebrar a data. Achei-o tão claramente fresco como o é desde a sua existência já centenária, garante da intemporalidade das grandes obras que têm a capacidade de sobreviver às muitas gerações que as vão ouvindo contar as suas vivências dum dia sempre é e será.  

Retomei à companhia dos vinte poemas numerados e da canção final desesperada e apercebi-me da inexistência de qualquer tipo de nota de leitura registado nas margens do texto, algo insólito em mim, por ter abraçado esse hábito desde que me conheço como leitor atento de todos os exemplares da minha biblioteca pessoal. Exceptuo neste caso específico um ou outro verso sublinhado com um traço muito leve de lápis. Passadas algumas décadas sobre esse destaque juvenil, as hipotéticas razões de o ter feito são fáceis de reconstituir, mas não vêm agora aqui para o caso. Curioso o facto de Pablo Neruda ter revelado numa «Pequena História» de apresentação da compilação ser pouco amigo de averbar anotações nos livros ou confissões de autor. É que, a seu ver, a poesia deve ir nua pelas ruas e só se deve cobrir com a multidão da natureza. Palavras sábias a que só posso dar toda a razão.

Finda mais uma visita às palavras entoadas com cadência poética, conclui que a mensagem subliminar de cada texto é logo sugerida no primeiro hemistíquio do verso inicial, constituindo também o título que o identifica. Um exercício não exaustivo e adaptativo das palavras alheias de abertura permite-nos sintetizar o teor global da compilação. Ou seja, o corpo da mulher, definida na sua chama mortal, acesa na vastidão dos pinheiros; uma manhã plena, para que ela assim o ouça e ele a recorde como era; inclinado nas tardes, em que como abelha branca a sinta zumbir, ébrio de terebintina, num crepúsculo, quase fora do céu. O exercício de colagem verbal poderia continuar até à canção desesperada final. Mas basta frisar, ainda e só, ser o encantamento tal pela menina morena e ágil que o aedo ama, mesmo quando calada, capaz de o inspirar a escrever os versos que nós lemos dentro das páginas dum livro e que podemos abrir sempre que emergir dentro de nós a vontade de o fazer.    

8 de abril de 2025

Academia de Platão & Escola de Atenas

Raffaello Sanzio, Scuola di Atene (c. 1509-1510)
[Pallazzo Apostolico, Stanza della Segnatura, Vaticano]

O triunfo do pensamento helénico...

No tempo em que os descendentes de Heleno andavam ainda a estabelecer os alicerces da cultura europeia, Platão reunia-se com os seus discípulos no jardim ou bosque sagrado de herói ático Academo, nos arredores de Atenas. Com eles e para eles, fundaria a Ἀκαδήμεια Πλάτωνος (c. 387AEC) que resistiria com saúde e bem de até à sua dissolução pelo Imperador Bizantino Justiniano I (529EC), i.e., cerca de 915 anos depois.

Ainda hoje existem na cidade onde nasceu vestígios da Academia Platónica, por onde passaram tantos vultos do pensamento filosófico grego. Visitei as ruínas que dela restam numas férias de verão e não vi a sombra de nenhum deles. Só os pude imaginar sentados lado a lado, ao redor do mestre. A ouvi-lo falar com um e outro sobre as mais diversas temáticas que cerca de dois milénios e meio de devir histórico não conseguiram ainda apagar.

Alguns deles podem ser vistos hoje em dia na Scuola di Atene, que Raffaello Sanzio pintou alegoricamente a fresco na Stanze della Segnatura do Pallazzo Apostolico do Vaticano. Platão e Aristóteles a presidirem aos ilustres académicos ali representados. Figuras dum classicismo renascentista a trazer ao nosso olhar pós-moderno o classicismo antigo bebido na herança helénica. Um encontro casual no eixo intemporal da criatividade humana.

2 de abril de 2025

Pevides e tremoços ao domingo e fiadas de pinhões em dias de festa

 ANEXINS
De ruim cabaça não sai boa pevide.
Carapau sem osso come-se como se fosse tremoço

No tempo em que ter um televisor em casa era um luxo inusitado e as transmissões se resumiam a escassas horas diárias, os jogos de futebol ou de hóquei eram seguidos efusivamente nos postos de rádio pelos fãs duma e doutra modalidade. Ter uma telefonia em casa era então uma realidade mais comum, mas, mesmo assim, havia o hábito de passar as tardes de domingo num local público, onde houvesse um aparelho retransmissor ligado para os relatos mais apetecidos da jornada. As tabernas de bairro constituíam nesses tempos dos meus verdes anos um espaço adequado para tal. A boa companhia dos amigos ajudava a seguir emotivamente o historial da partida, convívio geralmente regado pelos adultos com um copo de cinco branco ou tinto e um pires de pevides e tremoços.

Nunca fui um ouvinte atento dessas reportagens desportivas narradas ao pormenor por vozes estridentes especialmente treinadas para tal. A cacofonia resultante de tal prática radiofónica nunca me arrebatou por aí além os sentidos. O resultado final das partidas bastava-me à saciedade. Lembro-me, todavia, do ambiente de grande euforia que emanava ruidosamente do interior da venda de bebidas e petiscos do Sr. Clementino, junto ao chafariz d'El-Rei, no cruzamento da Capitão Filipe de Sousa com a Sangreman Henriques, arruamentos centrais do meu burgo natal. Passava habitualmente à sua porta nessas ocasiões semanais, para comprar à Ti Maria uma dose bem medida de pevides tremoços, para depois degustar tranquilamente em casa esse manjar pantagruélico digno dos deuses olímpicos.

Para fugir aos golos gritados a plenos pulmões na tasca da esquina, bastava sintonizar como alternativa a EN2. A música clássica cedia lugar nesse horário às séries musicais contínuas, sem palavreado escusado à mistura ou longos hiatos publicitários a separar as faixas instrumentais e vocais selecionadas. A proporção entre as cantigas alternavam na proporção de 1/4 de temas nacionais/internacionais. É que nas décadas pretéritas de 60/70, as rádios ainda reservavam uma parcela relevante de tempo às composições interpretadas em português, espanhol, francês e italiano, para além duma ou outra em alemão e até em inglês. Com um livro requisitado na biblioteca aberto entre mãos e um prato de pevides e tremoços ao lado, as melodias fluíam ao ritmo melódico duma tarde domingueira.

A banca de pevides e tremoços  não se deixa ver à porta da tasca vizinha da minha casa de infância. As partidas de futebol seguem-se atualmente nos diversos canais de sinal aberto ou por cabo das TV e os campeonatos de hóquei há muito deixaram de cativar os espetadores/ouvintes quando passaram a ser ganhos por outros. Tal como as sementes torradas de abóbora que abandonaram o horizonte visível de eventos ao darem autonomia às amarelinhas de trincar rendidas de morte aos encantos duma imperial estupidamente gelada. Amendoins, pipocas e azeitonas só entrariam em cena hoje em dia ou à sua beira. De repente lembrei-me das fiadas de pinhões comprados em dia de festa na praça da fruta nas manhãs de domingo. Haverá que lá voltar para testar se ainda existem.

27 de março de 2025

Luís de Camões, três autos, farsas ou comédias ao gosto maneirista

 
Alcmena
Ah senhor Amphitrião | Onde está todo meu bem | Pois meus olhos vos não vem, | Fallarei c'o coração, | Que dentro n’alma vos tem. | Ausentes duas vontades, | Qual corre móres perigos, | Qual soffre mais crueldades, | Se vós entre os inimigos, | Se eu entre as saudades? | Que a ventura, que vos traz | Tão longe da vossa terra, | Tantos desconcertos faz, | Que se vos levou á guerra, | Não me quis leixar em paz. | Bromia, quem, com vida ter, | Da vida já desespera | Que lhe poderás dizer?
Luís de Camões, Auto dos Anfatriões (1587)

No momento em que se cumpre o quinto centenário do nascimento de Camões, nada melhor do que aproveitar o Dia Mundial do Teatro para dar voz a três peças por si gizadas nesse século dourado das letras lusitanas. Lembrar que o grande poeta lírico das Rimas e épico d'Os Lusíadas também emprestou o seu engenho e arte dramática aos autos, farsas ou comédias de sabor popular vicentino e cultura clássica greco-latina. Gizou-as em português e castelhano, em redondilha maior com algumas cenas prosificadas, publicadas todas elas com caráter póstumo: Anfitriões e Filodemo, juntamente com outros autores maneiristas em 1587 e separadamente em 1615; El-rei Seleuco, algo tardiamente em 1645; e a obra conjunta camoniana em 1782.

Tudo leva a crer que a Comedia dos Enfantriões tenha sido redigida e representada nos últimos anos que o autor terá passado em Coimbra, provavelmente depois de D. João III ter transferido a Universidade para essa cidade em 1537, até então sediada em Lisboa. Tê-lo-á feito enquanto hipotético colegial de Humanidades, onde se terá afeito aos mitos greco-romanos, mormente no do amor de Júpiter por Alcmena, a fiel esposa de Anfitrião, o rei lendário de Tirinto que empresta o nome ao auto. Aproveitando-se da ausência do rival, por se achar a combater os Teléboas, a suprema divindade olímpica toma a forma física do marido legítimo da amada, com quem passa uma noite, advindo desse ardil o nascimento de Hércules. As demais peripécias legadas pela tradição clássica antiga são atualizadas por Camões a seu modo, tal como Plauto o fizera em latim na homónima Amphitruo (c. 206 AEC) e outros o farão também por sua vez.

Pensa-se que a redação da Comedia d'El-Rey Selevco se situe entre 1543 e 1545, a anteceder o seu desterro da Corte para o Ribatejo em 1546. É que segundo a tese tradicional ainda seguida hoje em dia por alguns, o autor teria feito alusões veladas ao casamento em terceiras núpcias de D. Manuel I com D. Leonor de Áustria, até então destinada ao príncipe herdeiro D. João. Está por provar a veracidade da suspeita, o que não impede de se fixar uma série de paralelismos entre os factos históricos conhecidos e o argumento dramático levado a cena. Tal como Plutarco já havia contado nas Βίοι Παράλληλοι (100-120 EC), as Vidas paralelas compostas em grego que Camões terá lido em latim, o príncipe herdeiro da Síria apaixona-se pela madrasta e adoece, levando o pai a cedê-la ao filho em casamento, para evitar assim seu sofrimento e livrar da lei da morte. A versão portuguesa quinhentista segue em linhas gerais a fonte clássica que o inspirara e adapta-o mais uma vez à sua visão maneirista estes enredos singulares de manifesto agrado popular.

A entrada em cena dos interlocutores da Comedia de Filodemo, a mais longa e elaborada da trilogia, é antecedida por um minucioso Argumento, quase dispensando a representação sequente. Camões retoma aqui a divisão em cinco atos, já ensaiado nos dois Anfitriões, o real e o falso, ausente nos amores cruzados de pai-filho-madrasta do imediato, estruturado num extenso Prólogo dialogado e num ato da peça. A ação reparte-se por duas gerações, separadas entre si por um naufrágio e pela morte dos pais dos protagonistas mais jovens. No final, um casal de irmãos acaba por se casar com um outro casal de irmãos e tudo termina em bem. Com um cheirinho fugaz às relações e notícias que mais tarde Bernardo Gomes de Brito reunirá na História Trágico-Marítima (1735-1736), os amores de Filodemo-Dionisa e de Venadoro-Florimana, compostos e representados na Índia por volta de 1555, enviam-nos para a roda das novelas pastoris e dos livros de cavalarias, muito em voga então, num período maneirista de transição veloz dos ideais renascentistas para os barrocos pós-tridentinos.

Lidas as três comédias e confrontados as suas linhas compositivas, apuramos que a vertente clássica presente na designação genérica e temas abordados em duas delas são derrotadas pelo pendor tradicional desenvolvido na sua totalidade. O decassílabo heroico ou sáfico de desenho épico e lírico das rimas construídas segundo os modelos da medida nova é substituído pelo septissílabo usual nas formas cultivadas pela medida velha. O tom sério, grave, sóbrio das grandes formas teatrais greco-latinas são substituídas pelo pendor jocoso, burlesco, cómico dos autos de sabor vicentino. O trágico deixa-se contaminar pelo cómico e surge-nos horizonte a tragicomédia, a comédia formal sai de cena e dá lugar à farsa real. Esta a trajetória de Camões, num século marcado pela mudança de tempos e vontades, mas também e sempre fiel à raízes ancestrais que moldaram de forma particular e indelével do ser portuguesa ou, se preferirmos, lusitana.

Editiones principes: 1587, 1615, 1615, 1645

24 de março de 2025

Natalia Ginzburg e o léxico familiar dos Levi de Palermo instalados em Turim

«Nella mia casa paterna, quand'ero ragazzina, a tavola, se io o i miei fratelli rovesciavamo il bicchiere sulla tovaglia, o lasciavamo cadere un coltello, la voce di mio padre tuonava: – Non fate malagrazie!
Se inzuppavamo il pane nella salsa, gridava: – Non leccate i piatti! Non fate sbrodeghezzi! non fate potacci! Sbrodeghezzi e potacci erano, per mio padre, anche i quadri moderni, che non poteva soffrire.»
Diceva: – Voialtri non sapete stare a tavola! Non siete gente da portare nei loghi!
E diceva: – Voialtri che fate tanti sbrodeghezzi, se foste a una table d'hôte in Inghilterra, vi manderebbero subito via.»

Natalia Ginzburg informa os leitores, na «Advertência» de abertura ao Léxico familiar (1963), de serem todos os lugares, factos, pessoas, nomes e apelidos citados nesse livro reais, verdadeiros, extraídos da sua memória e revelados ao público em forma de romance. Como também confessa, terá omitido um ou outro aspecto que lhe diziam respeito, apenas por não ter muita vontade de falar de si mesma. Deixo em aberto se assim é ou não. É que quer a autora queira quer não, todos os eventos registados num livro, para ser lido como uma crónica, passam a pertencer à esfera da ficção, do faz-de-conta cuspido e escarrado. Não há volta possível a dar. Sem entrar na história propriamente dita, suspeita-se logo da existência duma série de alusões quase obrigatórias a Palermo na Sicília, onde foi dada à luz em 1916, e de sobressaírem referências vividas desde então até à data de publicação do escrito, a uma distância de quase meio século. Nada mal.  

Seguem-se cerca de duzentas páginas concentradas num capítulo unitário, apesar da presença dum conjunto de segmentos narrativos separados entre si por um espaçamento ligeiramente alargado. Se as minhas contas não falharam, perfarão o número redondo de quarenta e quatro fragmentos de dimensão variada, a marcarem o ritmo lento e imperceptível da passagem do tempo, nunca indicado de modo explícito, mas fáceis de precisar, quando confrontamos os eventos internos do relato com as referências aos externos de caráter histórico chamados de tempos a tempos à colação. As duas guerras mundiais, os períodos que as precederam e sucederam, os episódios mais marcantes da ascensão do fascismo na Itália e as suas repercussões por toda parte, como a ocupação nazi do reino e a campanha racial, associadas a prisões, desterros, exílios, fugas e mortes. A história cruza-se a cada passo com a História, mormente quando se acerca, envolve e persegue a comunidade judaica, com a qual a relatora partilha laços familiares e de sangue muito estreitos.

O aparecimento da figura de Leone Guinzburg, a meio das memórias autobiográficas romanceadas em curso, marca, de certo modo, uma viragem do relato para os aspetos mais pessoais que envolvem a autora. A limitação dessa entrada em cena por um par de asteriscos apresenta, de si, uma atenção especial àquele editor, escritor, jornalista, professor, ativista político, resistente e herói antifascista judeu italiano, de origem russa e ucraniana, primeiro marido da narradora, aquele que lhe oferecerá o apelido literário pelo qual é conhecida na república das letras. E nesta fase do discurso que os nomes altissonantes dos protagonistas da oposição à ditadura totalitária dos camisas negras são catapultados para um plano de destaque numa ficção feita de factos efetivamente acontecidos. A sua enumeração exaustiva seria necessariamente copiosa e demorada. Que se encontrem, então, na leitura do texto redigido de viva voz pelo testemunho exemplar de quem os viveu de corpo presente.

Lido o livro de fio a pavio, ponto a ponto, do inicial ao final, podemos confirmar terem os propósitos inscritos na advertência preliminar sido cumpridos. O elemento mais destacado do clã siciliano dos Levi de Palermo instalados em Turim limita-se a seguir à risca o programa discursivo inscrito no título. Prioriza as idiossincrasias de cada um dos seus familiares próximos e distantes, estendidas aos diferentes círculos de amizades traçados e que os ajudam a definir como um todo. Autorrefere-se muito de raspão, em duas penadas, calando mesmo o seu percurso pessoal pela esfera da escrita, pelos seus sucessos editoriais e prémios recebidos. Porém, é no modo como projeta amplamente nos outros a sua visão especial do mundo que muito paulatinamente acaba por se revelar de corpo inteiro aos olhos do leitor. Excelente exercício de quem sabe tratar por tu a arte de dar vida à escrita com palavras do dia a dia, de transformar a prosa poética de que é feita na poesia integral que a envolve.  

EPÍGRAFE
«Na minha casa paterna, nos meus tempos de menina, à mesa, se eu ou os meus irmãos entornávamos o copo em cima da toalha, ou deixávamos cair uma faca, a voz do meu pai retumbava: — Tenham modos! 
Se molhávamos o pão no molho, gritava: — Não lambam os pratos! Não sejam nojentos! Não sejam repugnantes! 
Nojentos e repugnantes eram também, para o meu pai, os quadros modernos, que ele não podia suportar.
Dizia: — Vocês não sabem estar à mesa! Não se pode levar‑vos a lado nenhum.
E dizia: — Vocês, com esses nojos que fazem, se estivessem numa table d'hôte em Inglaterra, eram imediatamente postos fora. — Porque ele tinha a Inglaterra na máxima conta. Via‑a como o mais alto exemplo de civilização de todo o mundo.»
Natalia Ginzburg, Léxico Familiar (1963)

21 de março de 2025

A Fortuna de Camões

José de Guimarães, Camões (1985)
S O N E T O
No Dia Mundial da Poesia

Enquanto quis Fortuna que tivesse
esperança de algum contentamento,
o gosto de um suave pensamento
me fez que seus efeitos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse
minha escritura a algum juízo isento,
escureceu-me o engenho co tormento,
para que seus enganos não dissesse.

Ó vós, que Amor obriga a ser sujeitos
a diversas vontades! Quando lerdes
num breve livro casos tão diversos,

verdades puras são, e não defeitos...
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
tereis o entendimento de meus versos

Luís de Camões
Lírica completa - II [Sonetos], org., pref. e notas de Maria de Lurdes Saraiva, 2.ª ed., revista, Lisboa: INCN, 1994, p. 25.
Obs.:
Hipotético prólogo duma compilação de poemas líricas, organizado por Camões numa fase adiantada da sua vida e que abre as duas edições quinhentistas do poeta. (1595, 1598)