12 de setembro de 2025

Murasaki Shikibu, a história do Hikaru Genji, o Príncipe Brilhante

どの天皇様の御代であったか、女御とか更衣とかいわれる後宮がおおぜいいた中に、最上の 貴族出身ではないが深い御愛寵を得ている人があった。最初から自分こそはという自信と、親 兄弟の勢力に恃む所があって宮中にはいった女御たちからは失敬な女としてねたまれた。その 人と同等、もしくはそれより地位の低い更衣たちはまして嫉妬の焔を燃やさないわけもなかっ た。夜の御殿の宿直所から退る朝、続いてその人ばかりが召される夜、目に見耳に聞いて口惜 しがらせた恨みのせいもあったかからだが弱くなって、心細くなった更衣は多く実家へ下がっ ていがちということになると、いよいよ帝はこの人にばかり心をお引かれになるという御様子 で、人が何と批評をしようともそれに御遠慮などというものがおできにならない。御聖徳を伝 える歴史の上にも暗い影の一所残るようなことにもなりかねない状態になった。高官たちも殿 上役人たちも困って、御覚醒になるのを期しながら、当分は見ぬ顔をしていたいという態度を とるほどの御寵愛ぶりであった。唐の国でもこの種類の寵姫、楊家の女の出現によって乱が醸 されたなどと蔭ではいわれる。今やこの女性が一天下の煩いだとされるに至った。馬嵬の駅が

O cume das letras japonesas de sempre é tido, por muitos, como o romance mais antigo de todos. Outros, mais contidos, preferem vê-lo como uma das obras matriciais da ficção universal, gizadas pela verve criativa humana, ou, apenas, candidata a primeiro conto, novela ou romance do mundoTeria, também, as caraterísticas dum relato psicológico traçado à sombra duma saga familiar semi-histórica, oriunda do Império do Sol Nascente durante a vigência do período Heian (794-1185). Esse feito notável deve-se ao pincel de escrita da dama de honor da corte imperial conhecida por Murasaki Shikibu (973/978-1014/1031), que numa dezena de anos compôs os 54 livros, rolos ou manuscritos de extensão variável d'O Romance do Genji (c. 1005-1014), traçados com elegância e arte em carateres silábicos kana.

Tomei conhecimento deste relato monumental nas páginas iniciais redigidas pelo ensaísta britânico Felipe Fernández-Armesto, no não menos volumoso Milénio. A história dos últimos 1000 anos (1995), mas só agora tive a ocasião de o ler parcelarmente na versão portuguesa da Relógio d'Água. Esta visão incompleta reside no facto da editora se ter limitado a publicar em dois tomos os 33 capítulos da Parte I do texto, designado «Esplendor», sem clarificar se estará ou não previsto nos seus projetos imediatos dar à estampa os 21 capítulos remanescentes da Parte II, constitutivos da apelidada «Impermanência» e dos «Livros de Uji». Seria uma boa iniciativa editorial, a fim de termos um conhecimento integral de todos os pormenores do percurso existencial do Hikaru Genji, o Príncipe Brilhante, e da linhagem por si gerada, bem como da totalidade das 795 waka, poemas de 31 sílabas, adaptados à poética portuguesa distribuídos predominantemente por estrofes de cinco versos de redondilhas menores/maiores, numa aproximação vizinha da métrica originalPedir um pouco mais, seria ainda incluir algumas das 80 ilustrações resistentes à voragem dos anos alusivas aos eventos abordados neste imenso prosímetro de intrigas políticas, aventuras amorosas, a sensualidade e o refinamento duma escrita feminina produzida num ambiente cortesão de ócio generalizado.

Um passar de olhos rápido pela estrutura deste «romance» nipónico permite-nos observar, ato contínuo, o quanto se afasta da tessitura narrativa helénica estabelecida mil e tal anos antes por Cáriton de Afrodísias no Quéreas e Calirroe (séc. I EC), este, sim, o mais antigo relato romanesco completo que até nós chegou, precedido dos fragmentos dispersos de muitos mais. De facto, se cotejarmos os amores constantes e aventuras peregrinas vividos pelo jovem casal de protagonistas gregos do período alexandrino, apercebemo-nos de imediato o quão distantes se encontram dos amores fugazes, frívolos e inconstantes do herói central da efabulação japonesa, fruto das fartas paixões efémeras, libertinas, volúveis, irrefletidas, adstritas aos padrões tolerados pelo clã Fugiwara, cujos membros se haviam tornado nos autênticos senhores do país. No contexto histórico em que são plasmados os factos reais/imaginários convocados, tanto no modelo ocidental como no oriental, permite-nos aceitá-los como naturais, que culturas diametralmente opostas poderiam gerar testemunhos logicamente distintos.

Malgrado o caráter inacabado já referido desta versão, assinale-se o cuidado tido na sua tradução e lançamento no mercado para um público comum, pouco familiarizado com um universo de referências civilizacionais tão distante do nosso. Nestes termos, destaque-se a importância crucial desempenhada pelo prefácio, anexos e notas, para entender melhor os sentidos obscuros deste monogatari, i.e., desta «narrativa de coisas», vertido por comodidade verbal no termo romance registado no título do livro. É através destes auxiliares de leitura ou guias de viagem pelo entorno histórico de imperadores e imperatrizes, de príncipes e princesas, de altos dignitários, de damas e cortesãos, que penetramos neste macrocosmo sofisticado de subtis perfumes, refinados trajes, singulares cores, de festas, certames, festivais, cerimónias e ritos mil, onde o gosto pela pintura, poesia, música, dança, literatura, arquitetura, educação e religião se estiram ao longo dum número desmedido de manuscritos elegantemente caligrafados para o porvir. A história do Genji, a apelação honorífica atribuída ao filho dum soberano, a quem é recusado o estatuto de shinnô ou Príncipe de Sangue. Este o tal romance que relata a saga do fundador (gen) duma nova linhagem (ji) de senhores, súbditos e descendentes do clã (uji), iniciado pelo herói central desta crónica medieval nipónica milenar.


EPÍGRAFE
«Houve uma pessoa que foi favorecida por Deus. Desde o início, ela confiou em si mesma e no poder dos pais e irmãos, e as senhoras que entraram na corte invejaram-na por ser uma mulher desrespeitosa. Não havia como as outras pessoas que estavam no mesmo nível daquela pessoa, ou até mesmo em status inferior, não sentirem as chamas do ciúme. Pela manhã, quando se retirou do serviço noturno no palácio, e na noite em que foi o único a ser convocado, muitos deles voltaram para a casa dos pais, com o corpo enfraquecido pelo rancor que ouvira com os olhos e ouvidos, e o coração enfraquecendo. Quando se trata de pessoas que tendem a curvar-se, o Imperador parece estar completamente atraído por essa pessoa, e não importa o quanto as pessoas o critiquem, ele não se consegue conter. A situação chegou a um ponto em que existe a possibilidade de que permaneça uma sombra escura na história que transmite as virtudes sagradas. Ele era tão querido que os altos funcionários e altos funcionários ficaram preocupados e decidiram fechar os olhos por enquanto, esperando que ele acordasse. Diz-se a portas fechadas que mesmo na Dinastia Tang, o aparecimento deste tipo de princesa favorita, uma mulher da família Yang, causou uma rebelião. Esta mulher passou a ser considerada o pior incómodo do mundo. A Estação Mabeng pode ser recriada a qualquer momento.»
Murasaki Shikibu, O romance do Gengi (c. 1005-1014)

6 de setembro de 2025

Silêncios em contracorrente

Joseph Ducreux, Le silence (1790)
[Nationalmuseum, Stockholm]

O n . z e . n á . r i . O

A palavra é de prata, o silêncio é de ouro...

Grito em silêncio histórias discretas para serem ouvidas no mais absoluto sossego por um ouvinte avaro de frases ditas ou escritas.  

Registo pausas entre notas musicais para serem sentidas em silêncio nas entrelinhas duma partitura composta num qualquer andamento.

Persigo os claro-escuros barrocos das palavras lidas ou olhadas em silêncio no jogo dinâmico das sombras e luzes que lhes dão vida.

Desenho com abertos e fechados a rede infinda numa constante magia tecida em silêncio na divisa indelével entre o tudo e o nada.

Digitalizo no intervalo dos dias e das noites um anuário contido de mutismos vozeados e calados em contracorrente até ao silêncio final.

Joseph Ducreux, Le discret, 1790

2 de setembro de 2025

Gustave Flaubert, três histórias noveladas em forma de conto

« Il s'appelait Loulou. Son corps était vert, le bout de ses ailes rose, son front bleu, et sa gorge dorée. » Un cœur simple
« "Maudit ! maudit ! maudit ! Un jour, cœur féroce, tu assassineras ton père et ta mère !" » La légende Saint Julien l'Hospitalier
« "Je veux que tu me donnes dans un plat... la tête... " Elle avait oublié le non, mais reprit en sourriant : " La tête de Iaokanann !" » Hérodias
Gustave Flaubert, Trois contes (1877)

Quando um papagaio serve de ponto de partida para compor um romance-ensaio sobre um dos autores-charneira mais significativos do romantismo/realismo europeu, as expetativas criadas serão no mínimo singulares. Julian Barnes deveria saber que a leitura do Flaubert's' Parrot (1984), publicado em inglês na reta final do século passado, nos remeteria para a obra maior do ficcionista-ficcionado dada à luz em francês pelo biografado na segunda metade da centúria anterior. Falo por mim, que dei uma vista de olhos por toda e já comentei aqui uma delas. Preparo-me agora para fazer o mesmo com uma outra, repartida por Trois contes (1877) e lançada por vezes como uma nouvelle de Gustave Flaubert: «Un cœur simple», «La légende de Saint Julien l'Hospitalier» e «Hérodias».

O painel inicial do tríptico novelesco abre com a história de Félice, obrigada a trabalhar como assalariada nas quintas do país natal, por ter perdido os pais muito cedo e as irmãs não terem meios para a sustentar. Depois de algumas experiências pouco felizes em duas quintas da região, acaba por se instalar como criada para todo o serviço em casa de Mme Aubain, uma viúva da pequena burguesia rural normanda de Pont l'Évêque, onde permanece meio século até à morte. A banalidade deste longo percurso existencial subalterno tem poucos episódios particularmente extraordinários para serem trazidos aqui. A sua leitura nas páginas originais deste Coração Simples fá-lo-ão naturalmente dum modo muito melhor. Excetuo a referência a Loulou, o tal papagaio que trouxe até à descoberta feliz desta coleção.

A tela central troca a época contemporânea do autor pela medieval geradora da Lenda de São Julião Hospitaleiro, um santo de origem duvidosa, nado em data incerta e local impreciso. O realismo ubíquo no conto anterior é trocado pela liberdade fantasiosa do maravilhoso puro, próprio do imaginário católico com raízes fundas no cristianismo primitivo. Os oráculos/previsões saídos dos sonhos, alucinações e visões referidos na tessitura narrativa, experenciados pelos pais do biografado e protagonista do relato, contribuem para desenhar essa conexão genérica. O cenário propício à presença do milagre com direito a canonização popular materializa-se na conversão penosa dum grande senhor criado num castelo, no meio dos bosques, na encosta duma colina, a um pobre mendigo sem poiso certo onde ficar ou pernoitar num qualquer casebre encontrado no meio da natureza, sempre preparado para dar prestar os seus préstimos hospitaleiros sempre que alguém o necessitasse.

A cabeira tábua pintada com palavras recua até aos tempos bíblicos em que Herodes Antipas exercia o poder na Palestina como tetrarca da Galileia e da Pereia. O episódio ficcionado está ancorado na esfera histórica que levou à decapitação de Iaokanann, o nosso São João Batista, a pedido de Salomé, a filha de Herodes Agripa I, rei da Judeia, e de Herodíade, a instigadora da execução e doadora do nome ao conto. As críticas cerradas do primo martirizado de Jesus de Nazaré, a complexidade do quadro geopolítico judaico-romano que então se vivia e as intrigas palacianas de partilha do poder nutrida na citadela de Macareus conferem os ingredientes necessários para urdir uma trama suficientemente densa para dar corpo à exposição diegética e rematar a novela tripartida de contos.

Lidos os romances, contos/novelas e ensaios, fica-se com a vontade de visitar os locais de peregrinação literária focados nos livros. Voltar a atravessar a Normandia para olhar com olhos de ver todo o pays pontépiscopien, por onde Flaubert passou grande parte da vida e transferiu para as páginas do coração simples parcelas relevantes da sua própria existência. Nesse percurso, passaria forçosamente pela igreja de Caudebec-en-Caux e pela catedral de Rouen, para admirar os vitrais do lendário São Julião Hospitaleiro, inspiradoras do relato intermédio da coletânea. Nessa vontade de viajar pelos cenários revelados pela literatura, dar um pulo às ruínas da fortaleza de Macareus, erigida nas costa oriental do Mar Morto, se o clima de paz por ora inexistente o permitisse. Projetos viáveis à espera dum plano eficaz para os realizar. Que fiquem entretanto os itinerários reais sugeridos pelos heróis da imaginação.

29 de agosto de 2025

Ei-los que partem...

Almada Negreiros, «A partida dos emigrantes» (1947-49)
[Lisboa, Gares Marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos]

Ei-los que partem | Novos e velhos | Buscar a sorte | Noutras paragens | Noutras aragens | Entre outros povos | Ei-los que partem | Velhos e novos || Ei-los que partem | Olhos molhados | Coração triste | A saca às costas | Esperança em riste | Sonhos dourados | Ei-los que partem | Olhos molhados || Virão um dia | Ricos ou não | Contando histórias | De lá de longe | Onde o suor | Se fez em pão | Virão um dia | Ou não...

Os acordes do «Eles» dedilhados à guitarra e cantados por Manuel Freire ecoaram pela primeira vez em 1968. Terá sido nessa altura que a ouvi de quando em vez nas rádios então existentes. Suspeita aparentemente lógica, baseada numa memória distante muito difusa de décadas que liga a balada a um qualquer folhetim então difundido por um ou outro desses tais postos: Rádio Clube Português, Rádio Renascença ou Emissora Nacional. Pouco importa ou tanto faz.

As três oitavas de versos tetrassilábicos sem refrão relatam-nos as travessias dos novos e velhos que partiam a buscar a sorte noutras paragens, noutras aragens, entre outros povos. Melodia singela a relatar os olhos molhados, coração triste, esperança em riste, sonhos dourados de quem partia com a saca às costas. Virão um dia, ricos ou não, contar histórias de de longe, onde o suor se fez em pão. Virão um dia, ou não. Assim findava a cantiga. O ir-e-vir nem por isso.

Já não ouvimos a voz de Manuel Freire como chegámos a ouvir nos anos de intervenção a que antecederam a queda do regime da outra senhora. Ainda teve alguma visibilidade nos primeiros tempos revolucionários, depois foi pouco a pouco silenciado, como todos os companheiros de travessia do deserto até hoje. Estão todos eles ausentes dos programas pimba que povoam os mass média atuais, a toda a hora do dia e da noite, da manhã e da tarde. Sem parar

Então como agora, uns partem e regressam porque querem, outros ficam porque já não querem voltar. Há depois aqueles que chegam a cada momento e são forçados a partir no momento seguinte quer queiram quer não. Filhos doutras paragens mais distantes, doutras aragens mais agrestes, doutros povos mais exóticos. Balada perene de migrantes que vão e vêm e que vêm e vão. Verso e reverso duma mesma medalha que não cabe nos versos e notas duma canção.

25 de agosto de 2025

La saveur d'été de la ratatouille niçoise

Ratatolha - Ratatouio - Ratatoulho - Retatouille

C’est pas d’la soupe, c’est du rata...

Viajei para França pela primeira vez em meados de 70. Depois da travessia épica do Alentejo, apanhei em Santa Aplónia o Sud-Express até Bordéus com uma paragem técnica em Hendyaia, que me permitiu fazer a ligação a Bordéus. mudei para um comboio regional até Redon, no departamento bretão de Ille-et-Vilaine, que me levou numa velha Micheline ligeira até à estação central de Rennes, onde cheguei com 24 horas de atraso. Por então, o TGV ainda estava longe de entrar em cena, tal como nos nossos dias entre nós. Tant pis !

A travessia dos Pirenéus catapultou-me num ápice para um universo de singularidades difíceis de imaginar por quem conhecia à data parcelas do espaço ibérico. Esta nova realidade vivenciada a todos os níveis, incluindo a língua que eu julgava dominar e só então me dei conta do abismo colossal existente entre a livresca aprendida nos manuais escolares e a falada no dia a dia. O espanto veio logo à mesa com as entradas da Gigi: rabanetes com manteiga, cenoura ralada, beterraba com salsa, milho cozido, toranja rosada à colherVoilà ! 

O mais saboroso prato de resistência ligeira desse verão talvez tenha sido a ratatouille, uma receita niçoise à base de legumes frescos da época. É feita com berinjelas, courgettes, pimentos, cebolas, alho e tomates, cortados em cubos e estufados lentamente em azeite. No final, tempera-se com uma pitada de ervas da Provença: alecrim, manjericão, tomilho, segurelha, manjerona, estragão, funcho, salva, louro e orégãos. Uma sinestesia plena de sabores, cores, texturas e aromas naturais para comer, repetir e chorar por mais. C'est tout !

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20 de agosto de 2025

Gustave Flaubert, educação sentimental dum jovem francês oitocentista

« Il voyagea.
Il connut la mélancolie des paquebots, les froids réveils sous la tente, l’étourdis-sement des paysages et des ruines, l’amertume des sympathies interrompues.
Il revint.
Il fréquenta le monde, et il eut d’autres amours, encore. Mais le souvenir conti-nuel du premier les lui rendait insipides ; et puis la véhémence du désir, la fleur même de la sensation était perdue. Ses ambitions d’esprit avaient également diminué. Des années passèrent ; et il supportait le désœuvrement de son intelli-gence et l’inertie de son cœur. »
Gustave Flaubert, L'Éducation sentimentale - Histoire d'un jeune homme  (1869)

Os livros são como as cerejas, pega-se numa e vem logo um monte delas à arreata. Este lugar comum voltou a comprovar-se muito recentemente, quando a escrita de Julian Barnes me levou a viajar pelas páginas ditas pós-modernistas do Flaubert's Parrot (1984), já comentadas aqui. As grandes/pequenas obras dum dos vultos matriciais da literatura francesa oitocentista são escalpelizados à exaustão. De todas essas referências, retive o título duma delas, cuja sonoridade longínqua me ecoou na memória de modo familiar, como se a tivesse visitado numa época pretérita indefinida. Procurei-o na tal estante de leituras cumpridas ou adiadas e encontrei L'Éducation sentimental (1869) à minha espera, depositado ao lado de muitos outros autores/volumes que me encheram as medidas ao longo dos anos. Abri-lo, folheá-lo e visitá-lo foi um ato imediato a que não pude resistir.

O que mais me surpreendeu ao fazê-lo foi deparar-me com um lídimo palimpsesto, constituído por uma panóplia infernal de anotações, comentários, observações, raciocínios e sublinhados simples, duplos e envolventes, caligrafados a lápis, há quase cinco décadas, nas entrelinhas e margens exíguas do velho livre de poche da GF. Fiz um esforço hercúleo para me lembrar do argumento deste roman d'apprentissage em forma de relato iniciático dum jovem, mas tive de me render à evidência de não ter guardado a menor ideia do seu teor, muito embora a temática central se encontre espelhada no título e subtítulo escolhidos. Concluo a contragosto de estar longe de ter sido uma das tais escritas que me marcaram ao longo da vida. Presumo que tenha feito parte daquele rol de obras de leitura académica obrigatória em tudo opostas às tomadas por livre e espontânea vontade. Convenhamos que as peripécias existenciais dum estudante parisiense oitocentista de direito só por mero acaso se poderiam cruzar com as dum aprendiz de letras na capital dum império moribundo em meados da centúria seguinte.

Para avivar a memória, passei os olhos rapidamente pela síntese da contracapa, que, em dois parágrafos de escrita miudinha, traçou o itinerário sucinto do herói ficcionado e do cenário histórico-cultural convocado. Sem grandes pormenores de permeio, destaca a história do amor falhado de Frédéric Moreau por Mme Arnoux, situada entre o regresso do jovem protagonista a casa depois de ter terminado o bachot descrito nas primeiras linhas e a visão do velho celibatário grisalho exibida nas derradeiras. Meia dúzia de linhas para revelar o alfa e o ómega da educação sentimental anunciada e cerca de três centenas para revelar as causas do resultado obtido, todo este drama desenvolvido na longa crise social francesa que conduziria à queda da monarquia burguesa de Louis-Philippe a subsequente revolução de 1848. A imersão definitiva no corpo de texto impôs-se como se fosse a primeira vez que o fazia e toda a tessitura narrativa estivesse por desvendar.

Lidas as três partes e dezanove capítulos do livro, apercebemo-nos que as causas explicativas do insucesso amoroso plasmado no romance se devem à circunstância de ter sido dirigido a uma mulher casada, mãe de família e fiel ao marido por um pretendente solteiro, ocioso e pouco habilitado na arte da conquista extramatrimonial. E pouco mais haverá a acrescentar ao já referido. A exiguidade de dados argumentativos, elaborados à custa de descrições infindáveis, a ofuscar as narrativas impressionistas de cenas justapostas, sem intriga percetível, sem apoteose ou catástrofe, sem a caraterização clara das personagens centrais e laterais, terá estado também na origem da indiferença do público e das críticas desfavoráveis que a obra mereceu à data do seu lançamento, persistentes após a morte do autor. Hoje em dia, a atenção mais sensível do enredo assenta nos paralelismos bibliográficos apontados à exaustão entre o sujeito interno da ficção e a entidade externa que lhe deu vida nas páginas impressas duma história fingida como muito de verdadeiro. A glória obtida com a polémica Madame de Bovary estará igualmente na origem da notoriedade póstuma da derradeira criação literária de Gustav Flaubert. É que, regra geral, as obras menores dum artista acabam quase sempre por ser arrastadas para a beira das tidas como maiores. Dão-lhes uma visibilidade adicional e enriquecem o corpus literário do autor.

15 de agosto de 2025

Zapping

Sandra Palhares
g
zapping | záping
(nome masculino)
Prática do telespetador que muda frequentemente de canal por meio do telecomando.
Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

Numa noite normalíssima de verão, liguei a televisão para seguir as notícias do dia. Antes da designada hora certa, os canais privados tinham começado a despejar imagens de florestas a arder e de terras assoladas pelas chamas. Os vermelhos alaranjados com tonalidades amarelas esbranquiçadas a oscilarem com os cinzentos enegrecidos da terra queimada tentavam colar o público ao ecrã em detrimento das rivais de sinal aberto ou fechado, como se os relatos informativos selecionados diferissem muito uns dos outros. De facto, as danças e contradanças das labaredas, lumes e fogos transmitidos em direto invadiram outrossim o plasma televisivo de estação pública com uma grandeza trágica tão incendiária como a difundida pela concorrência.

Altura mais que indicada para mudar dos canais generalistas para os temáticos. Em menos dum ai, caí nas malhas do reality show mais longevo da rede televisiva portuguesa, o Big Brother, estreado entre nós um quarto de século. Aparentemente o formato continua a jogar com o mesmo agrado/desagrado dos espetadores, apesar das variantes ensaiadas ao longo dum número astronómico de edições batizadas de BB-qualquer-coisa de Secret Storys de pacotilha ou de Desafios Finais dos Famosos não se sabe bem de quê do reino do império minuto, à imagem das estrelas cintilantes das canções pop-swing descritas por Lídia Jorge n'A noite das mulheres cantoras, que aqui nenhuma celebridade canta duas notas musicais seguidas.

Deixei a casa mais vigiado do país do Grande Irmão ficcionado por George Orwell no Nineteen eighty-four e que nenhum dos inquilinos atuais alguma vez terá ouvido falar ou lido. Nos telejornais da noite, os incêndios continuavam a lavrar em todos eles com a mesma intensidade. Nessa meia hora já a Euronews tinha difundido duas séries completas de notícias de todo o mundo. Encetei uma nova tentativa pelas cadeias alternativas da Nos e deparei-me com tudo na mesma no Reino da Dinamarca. Passei à frente dos crimes atrás de crimes, como se os da CMTV não bastassem q.b., recusei as histórias natalícias e da carochinha do tempo da maria cachucha, transmitidos a toda a hora, num vira o disco e toca o mesmo atroz.

Zapping atrás de zapping, voltei à RTP, SIC e TVI. Três quartos de hora volvidos, travavam uma guerra pelas audiências, centrada no sobe-e-desce das tarifas do tresloucado americano, no chacina sem fim à vista das gentes de Gaza do genocida israelita, no assalto sem quartel à Ucrânia pelo tiranete do Kremlin. Um fartar vilanagem sem tréguas perpetradas pelo novo eixo do mal, apelidada de nova ordem internacional, neste Brave New Word despudorado que nem Aldous Huxley teve a coragem de descrever ou prever. Fartei-me do ruído das cantilenas da banha da cobra das instâncias populistas pró-nazis agora no poleiro, fechei a televisão, escolhi um vídeo no YouTube, abri um livro e viajei tranquilamente para outras paragens.