4 de fevereiro de 2025

Sinto a dor da tua falta...

Maria Teresa Horta
(20.05.1937 - 4.02.2025)

FALTA

Sinto a dor da tua falta
Agora que terminou
Esta aventura e tumulto

De travessia e viagem
Que a literatura entrançou

E se não sei demorar-te
Manter-te na pressa ávida
Nem pela fresta da faca
Espreitar-te nua ou vestida

Como vou continuar
A perseguir-te, a contar-te
A dar-te luz e fulgor
O resto da minha vida?

 Maria Teresa Horta, Poemas para Leonor (2012)

31 de janeiro de 2025

Aventura na Escola Agrícola

«Beatus ille qui procul negotiis, | ut prisca gens mortalium | paterna rura bobus exercet suis, | solutus omni fæenore, | neque excitatur classico miles truci | neque horret iratum mare, | forumque vitat et superba civium | potentiorum limina.»
Horatius, Epodos, 2, 1 (30 aec)
«Carpe diem quam minimum credula postero.»
Horatius, Carmina, 1, 11.8 (23 aec)
«Sed fugit interea fugit irreparabile tempus.»
Vergilius, Georgicon, 3, 284 (30-37 aec)
Beatus ille...
Feliz aquele que desfruta a tranquilidade do campo sem se afastar demasiado do bulício da cidade. Horácio não diria melhor nos versos líricos cantados nos seus épodos juvenis. O bucolismo idealizado pela verve amena do poeta latino não permitia a associação então inconciliável do locus amœnus rural com o locus horrendus urbano. Contrariando as percetivas clássicas seguidas na passagem agitada da República Romana para a Imperial, posso-me gabar de ter tido o privilégio de ter o campo na cidade durante a totalidade dos meus tempos de menino e moço. Aproveitei ao máximo a estação agrária onde o meu pai trabalhava e eu brincava horas a fio com o meu irmão nos tempos livres depois das aulas.

Naquele espaço imenso de lazer da minha meninice, situado a meia dúzia de passos de casa, mesmo ali ao lado ao virar da esquina, não havia bois como no campo idílico horaciano. Nem cavalos, nem porcos, nem gado ovino e caprino de porte semelhante. A escola agrícola, como era conhecida, limitava-se a ter umas coelheiras bem fornecidas, uns galinheiros espalhados na paisagem e uma dúzia de peixes coloridos repartidos pelo lago do jardim e nos tanques de rega da quinta. Depois, havia também umas quantas parcelas de terreno cultivadas com uma vasta variedade de legumes, ladeadas com árvores de fruto da região e completado com uma pequena vinha com uvas de diversas castas.

Não guardo na memória nenhuma brincadeira especial tida nesse in illo tempore remoto. Lembro-me todavia de me terem contado uma aventura protagonizada por mim em meados dos anos 50. Deixei de ser visto em todo o recinto fechado do meu paraíso infantil. Procuraram-me por toda a parte, sobretudo nos reservatórios de água de rega extraída dum poço por um moinho de armação metálica. Nada. Lá deram comigo adormecido debaixo dum dos tomateiros ali plantados. Comera um desses frutos vermelhos e já tinha alguns mais de reserva ao meu lado. Não recordo se me terão dito qual o castigo que uma criança com três/quatro anos de idade terá tido. Quero crer que nenhuma.

O edénico El Dorado dos meus verdes anos já não existe. As antigas instalações da IX Região Agrícola mudaram de poiso. Deixaram os limites periféricos da cidade e instalaram-se de pedra e cal no campo. Terão criado um novo beatus ille erigido a uma distância considerável da sua anterior sede onde nunca pus os pés. Para trás ficaram os prazeres menineiros de quem nunca deixou de aproveitar o dia à maneira do carpe diem horaciano. Na altura não pensava muito no amanhã nem sentia real motivo para o fazer. O tempus fugit virgiliano tomou conta dos eventos sem pena nem remissão. Restam-nos as memórias. Sobretudo as boas, como a aventura pré-escolar dos tomateiros da extinta escola agrícola.

EPÍGRAFES
«Feliz é aquele que, longe dos negócios, | Como a antiga raça dos homens, | Ele passa o tempo trabalhando nos campos de seu pai com seus próprios bois, | livre de todas as dívidas, | e não acorda, como o soldado, ao ouvir a trombeta sangrenta da guerra, nem ele tem medo da ira do mar, | ficando longe do fórum e dos limiares arrogantes | de cidadãos poderosos.» [HorácioÉpodos, 2.2 (30 aec)]
«Aproveita o dia e confia o menos possível no amanhã.» [Horácio. Odes, 1, 11.8 (23 aec)]
«Mas o tempo foge e nunca mais regressará.» [Vergílio, Geórgicas, 3, 284 (30-37 aec)]

27 de janeiro de 2025

Dioniso, o deus que nasceu duas vezes

         DIONISO - ΔΙΌΝΥΣΟΣ         
[Vaso grego de cerâmica com figuras vermelhas, séc. vi aec]
«Salve, descendente de Cronos, deus de tudo quanto é líquido e luminoso | Dá-nos ânforas repletas, rebanhos gordos, campos de fruta e colmeias de abastança | Vela pelas cidades e pelos navios que se fizeram ao mar e protege os jovens e a bondosa Témis.»
Hino Dionisíaco, apud Daniel J. Boorstin, Os Criadores (1992)

Chamam os mitos helénicos antigos heróis aos filhos dos deuses e dos homens. Podiam muito bem designá-los a todos por semideuses ou super-homens, porque simultaneamente divinos e humanos. A imortalidade herdada da sua origem olímpica permitia-lhes perdurar na memória coletiva dos mortais que os viram nascer, viver e morrer cobertos de glória, fama e honra eternas. O seu nome manter-se-á presente para todo o sempre nas gerações de seres perecíveis que testemunharam os seus feitos temporais e lhes deram um enfoque intemporal. Assim ocorreu com Héracles, Aquiles, Odisseu, Orfeu ou Jasão, para só referir alguns dos mais conhecidos.

De todos esses seres geneticamente híbridos, um que se destacou por se ter libertado da costela humana recebida da mãe e apropriado da dimensão divina do pai. Nas suas aventuras espúrias useiras e vezeiras, Zeus enamora-se de Sémele e engravida-a. Hera, movida pelos proverbiais ciúmes de mulher traída, resolve vingar-se da rival e propõe-lhe que solicite ao amado deixar-se ver sem disfarces, em todo o seu esplendor. Esta assim faz, sendo de imediato fulminada pelo resplendor do rei dos deuses e dos homens, que retirou o feto do ventre materno e coseu dentro da sua própria coxa. Finda a gestação, dava à luz Dioniso, o deus que nasceu duas vezes.

As façanhas, prodígios e loucuras terrestres abriram-lhe as portas das esferas celestiais, não sem que antes tivesse dado uma saltada às profundezas infernais, para resgatar do Hades a sombra da mãe e a levar consigo para o Olimpo, demonstrando assim o seu poder à data reconhecido por todos. Aquele a quem também chamaram Baco foi convertido no atípico deus dos ciclos vitais, da fertilidade, da insânia, das festividades, dos ritos religiosos, do teatro, do vinho e do caos, provavelmente por ter vencido como nenhum antes a lei da morte e conquistado o direito divino à eternidade, como décimo segundo e último habitante maior do panteão grego.

Numa data não registada da idade dos mitos, os deuses deixaram de procriar com os humanos e os heróis saíram de cena, ou foram coagidos a mudar de paradigma. porém um corte neste quadro de aparente entrega dos mortais ao seu próprio destino. Uma virgem judia deu à luz uma criança gerada pelo espírito dum deus sem nome revelado. A sua estada entre os homens foi efémera, mas a sua ressurreição após a morte repôs-lhe a vida eterna própria da sua natureza divina, aquela que lhe permitiu recuperar a mãe da terra e coroá-la rainha do céu. Acaso este de gregos e hebreus deterem as mesmas chaves de acesso à imortalidade.

21 de janeiro de 2025

Umberto Eco, o segredo do ponto fixo, a ilha do dia antes e a arte do romance

«D’altra parte che, malgrado le loro virtù, i Romanzi abbiano i loro difetti, Ro-berto avrebbe dovuto saperlo. Come la medicina insegna anche i veleni, la me-tafisica turba con inopportune sottigliezze i dogmi della religione, l’etica racco-manda la magnificenza (che non giova a tutti), l’astrologia patrocina la supers-tizione, l’ottica inganna, la musica fomenta gli amori, la geometria incoraggia l’ingiusto dominio, la matematica l’avarizia – così’ l’Arte del Romanzo, pur avvertendoci che ci provvede finzioni, apre una porta nel Palazzo dell’Assur-dità, oltrepassata per leggerezza la quale, essa si richiude alle nostre spalle.»
Umberto Eco, L’isola del giorno prima (1994)

Ao reler de quando em vez os escritos de Umberto Eco, chego sempre à conclusão de ter circulado no mundo das letras muito mais à vontade como um ensaísta de prestígio do que como um autêntico romancista. A sua veia criativa está muito mais vocacionada para a vertente multifacetada de filósofo, semiólogo, linguista ou bibliófilo do que no espelhado nas páginas de pura ficção publicadas ao longo duma trintena e meia de anos. O próprio ato de contar uma história está invariavelmente associado a um qualquer evento de traçado científico que, em certos momentos do devir histórico, ocuparam a mente curiosa dos homens constantemente insaciáveis de novas descobertas e alargamento de conhecimentos. É o que se passa, v.gr., com A ilha do dia antes (1994), em que o grande objetivo a atingir assenta na resolução do mistério do fluxo do mar, do enigma da pluralidade dos mundos, do puzzle da doença de amor ou melancolia erótica, do segredo do ponto fixo e do cálculo das longitudes, entre muitos outros quesitos que lhe estão intimamente associados.     

O académico bolonhês, depois de ter andado em busca do livro desaparecido da Poética de Aristóteles, de ter encontrado/perdido esse tão desejado tratado sobre a «Comédia» n'O nome da rosa, voltou-se para o problema da rotação da terra, explanado n'O pêndulo de Foucault, entrando, assim, definitivamente nos labirintos literários do faz-de-conta ancorados nas meadas por desenlear da verdades por revelar do dia a dia. Não contente com os desafios colocados com a localização exata da Terra Incógnita Austral, dos meridianos e antimeridianos ou antípodas, bem como com a precisa identificação das Ilhas de Salomão, aquelas que separariam o dia anterior do dia seguinte avançados nest'A ilha do dia antes ‒, o ensaísta-ficcionista italiano ainda se envolveu a trilhar os percursos de Baudolino em demanda do Reino do Prestes João, em recuperar as memórias perdidas através dos livros aos quadradinhos referidos n'A misteriosa chama da rainha Loana, em penetrar nos meandros secretos dos Protocolos dos Sião à sombra d'O cemitério de Praga ou no poder incontornável da informação jornalística no Número zero, com que a lei da vida/morte o obrigou a encerrar a longa digressão pelos universos romanescos da escrita.

Assentando amarras no terceiro romance da série, sintetizemos que se trata duma obra aberta, com princípio, meio e ausência dum final decisivo, anomalia devidamente comentada pelo narrador exterior à história contada, num clarificador colophon autoral, convertido no derradeiro capítulo do relato. É esta entidade enunciadora externa que nos revela parte do destino do protagonista do drama por si vivido no já distante verão de 1643, trazendo à luz do dia os papéis de cariz autobiográfico então redigidos. O jovem fidalgo piemontês Roberto de la Grive, embarcado na nau Amarilli, naufragara nos mares do sul, tendo a jangada que o salvara embatido contra a proa do Daphne, encalhado numa baía entre duas ilhas, supostamente situadas na linha imaginária de mudança de data. É neste navio aparentemente abandonado, mas repleto dos mais extraordinários despojos, que se abriga e passará os restantes dias da sua existência conhecida, na fronteira fascinante que separava o hoje do ontem ou o ontem do seu amanhã. Nos tempos livres, que todos o eram um pouco, decide contar a sua história possível com roupagem de romance, não aquela que vivera, mas sobretudo a que poderia ter vivido, caso os fados nefastos assim o tivessem permitido. Recorre à práxis barroca então vigente da novela histórica, exemplar, cortesã, sentimental de amores e aventuras peregrinas, com alguns traços picarescos à mistura e até um ou outro de extração bizantina. A fantasia é contagiante sem nunca abandonar, todavia, as linhas estritas do verosímil.

A interrupção brusca dos escritos do náufrago solitário num galeão largado à sua sorte nos antípodas, deixados registados em cartas, reflexões, esboços fictícios e digressões discursivas de natureza científica, metafísica e cosmológica, levou o seu editor/divulgador moderno a tecer um par de hipóteses especulativas sobre o sua saída de cena daquele teatro de memórias. Fá-lo como remate da reconstituição por si encetada em quatro centenas e meia de páginas. Contenta-se com a solução simplista de considerar a história do Senhor de La Grive como a dum apaixonado infeliz, lembrando que na vida real as coisas acontecem porque acontecem e que só na Terra dos Romances é que parecem acontecer por uma qualquer finalidade ou providência. Que tudo fique em aberto e que os papéis deixados a bordo daquela embarcação fantasma seiscentista mais não sejam do que meros exercícios maneiristas, redigidos à maneira daquele século tão pródigo em gente sem alma. Eccolo!

1980      -      1988      -      1994      -      2000     -      2004      -      2011      -      2015
EPÍGRAFE
«Por outro lado que, apesar das suas virtudes, os Romances têm os seus defeitos, Roberto já devia sabê-lo. Tal como a medicina ensina também os venenos, a metafísica perturba com importunas subtilezas os dogmas da religião, a ética recomenda a magnificência (que não convém a todos), a astrologia patrocina a superstição, a ótica engana, a música fomenta os amores, a geometria encoraja o injusto domínio, e a matemática avareza ‒ assim a Arte do Romance, embora advertindo-nos de que nos fornece ficções, arte uma porta no Palácio do Absurdo, que ao ser ultrapassada por ligeireza, se fecha atrás das nossas costas.»
Umberto Eco, A ilha do dia antes

15 de janeiro de 2025

Chavela Vargas, la voz áspera de ternura de la dama del poncho rojo

    Chavela Vargas    

Vengo de donde viene | Mi amigo el viento, | Traigo aromas de luz | Que provaron los cerros, | Y armonias calladas| De la noche mas bella. ||  No pregunten quien soy, | Porque no se los digo, | Solo sé que a dónde voy, | El amor va conmigo, | Y a puro valor, | He cambiado mi suerte, | Hoy voy hacia la vida, | Hoy voy hacia la vida, | Antes iba a la muerte | | Cuando pedi justicia, | No me la dieron, | Cuando quise querer, | A mi no me quisieron, | Cuando un nido forme, | Con traición lo quemaron, | Cuando a cristo recé, | Ni me rezos llegaron. || No pregunten quien soy, | Porque no se los digo | Solo sé que a dónde voy, | El amor va conmigo | Y a puro valor, | He cambiado mi suerte, | Hoy voy hacia la vida, | Hoy voy hacia la vida, |  Antes iba... Antes iba... ||| A la muerte! 

Por eso no me he muerto porque no me voy a morir nunca...

Quando me mudei aqui para Faro, ainda havia na cidade uma boa dúzia de livrarias. Algumas até vendiam discos ainda em vinil e em formatos distintos. Aos maiores chamava-se álbuns, abreviado em LP. Aos menores com duas ou quatro faixas dava-se o nome de single e não me recordo se algo mais. Foi na versão mais completa ou longa duração que descobri pela primeira vez a voz e o rosto de Chavela Vargas. Não mantive na memória as rancheras, corridos, cumbias, boleros e tangos ali registados, nem sequer o ano em que tal ocorreu. Por certo, na viragem da década de 70 para a de 80.

Nos dias, meses e anos que se seguiram, os discos grandes e pequenos registados em vinil ou compactados, as cassetes áudio em fita magnética que fui colecionando foram-me dado a conhecer e apreciar as particularidades daquela voz áspera de ternura tão diferente de todas aquelas que até então tinha ouvido. Depois, os vídeos disponibilizados na Net revelaram-me o modo sui generis que a dama do poncho vermelho tinha de interpretar as muitas histórias cantadas como se estivesse a contar a sua própria vida numa longa e sentida confidência a quem as quisesse atentamente escutar.

Muito se tem efabulado sobre a arte dum dos símbolos maiores da alma latino-americana. Há até quem a descreva através dos versos de Jorge Luis Borges, ao compará-la ao cristal da solidão e sol de agonias gritadas, sussurradas, rezadas e choradas do olvido ao som duma guitarra. Não juntarei mais palavras às já ditas e reditas, porque as sinto como minhas e não diria melhor. Carpir a sua morte também seria inútil, pois como afirmou num recital na Sala Caracol de Madrid em 1993: yo cuento una historia de amor cada noche que canto, por eso no me he muerto porque no me voy a morir nunca...

9 de janeiro de 2025

Umberto Eco à maneira de Arcimboldo

ARCIMBOLDO
Pormenores da Primavera e de Rodolfo II de Habsburgo
[Paris, Musée du Louvre]

Este cálice pareceu-lhe a certa altura como que uma urna, e pensou que no meio daquelas rochas estaria inumado o cadáver do padre Gaspar. Já não visível, se a ação da água o havia primeiro revestido de macio coralino, mas os corais, absorvendo os humores terrestres daquele corpo, haviam tomado a forma de flores e frutos de jardim. Talvez dentro em pouco ele reconhecesse o pobre velho transformado numa criatura até então estrangeira ali em baixo, o globo da testa fabricado com um coco peluginoso, dois pomos passados a compor as bochechas, olhos e pálpebras tornados duas tâmaras amargas, o nariz de serralha verrugosa como o esterco dum animal; por baixo, no lugar de lábios, figos secos, uma beterraba com o seu ramo apical para o queixo, e um cardo rugoso em ofício de garganta; em ambas as têmperas duas casta-nhas com ouriço a fazer de farripas, e por orelhas as duas cascas duma noz aberta; com dedos, cenouras; de melancia o ventre; de marmelo os joelhos.

Umberto Eco, A ilha do dia antes (1994)

3 de janeiro de 2025

Proveito & Deleite

TEATRO LETHES ‒ FARO
(Antigo Colégio de Santiago Maior)
Omne tulit punctum qui miscuit utile dulci, | lectorem delectando pariterque monendo...
[Recebe sempre os votos, o que soube misturar o útil ao agradável, pois deleita e ao mesmo tempo ensina o leitor]
Horati, De Arte Poetica Liber (343-344) || Horácio, Arte Poética (343-344) 

COLÉGIO ‒ TEATRO ‒ ACADEMIA

« Monet Oblectando »

Bem ao fundo da rua que leva o seu nome, ergue-se o Teatro Lethes, um edifício majestoso, feito ao gosto maneirista chão, que todos os locais reconhecem sem problemas, muito embora a sua identificação não esteja inscrita na fachada central ou em qualquer outro local imediatamente visível por quem ali passa. Em contrapartida, poderá ler na cartela do frontão duas palavras enigmáticas para muitos, numa língua apontada à boa como sendo o latim: Monet Oblectando. A curiosidade de alguns levá-los-á a consultar um dicionário, que as traduzirá, tout court, por «instruir divertindo». Um conhecimento histórico mais pormenorizado do imóvel inspirar-nos-á a adaptar a sentença para: «ensina divertindo-te» ou «diverte-te aprendendo».

Fundado em 1605 pelo então Bispo do Algarve, D. Fernando Martins Mascarenhas, como Colégio de Santiago Maior, a nova instituição tinha como principal função a educação. A instrução ministrada pela Companhia de Jesus estaria obrigatoriamente presente, o que, à data, não garantiria uma diversão por aí além, pelo menos à luz dos parâmetros atualmente vigentes. Como diria Camões, «mudam-se os tempos mudam-se as vontades». Cumpriu a sua missão formativa em Faro até 1759, ano em que os bens da ordem religiosa criada por Santo Inácio de Loyola foi banida do país e domínios ultramarinos e o estabelecimento de ensino não superior foi obrigado a fechar portas para nunca mais as voltar a abrir nos mesmos termos.

O antigo Colégio dos Jesuítas entra numa segunda fase da sua vida, quando o médico italiano Lázaro Doglioni o compra em hasta pública e converte numa teatro digno da capital do Reino dos Algarves. A inauguração dá-se no dia do aniversário da rainha D. Maria II, 4 de abril de 1845, batizando-o de Teatro Lethes, em memória do mítico rio do esquecimento sito no Hades helénico, cujas águas prodigiosas tinham o poder de obnubilar as agruras da vida. Neste caso, as vicissitudes infligidas pelas Invasões Francesas e Lutas Liberais, que haviam deixado o país em ruínas. A  inscrição latina significaria então que quem cruzasse as suas portas gozaria o duplo tópico horaciano do «Proveito & Deleite», i.e., da diversão e aprendizagem conjuntas.

Atualmente o teatro partilha as suas instalações de antigo colégio com outras instituições de interesse local, como será o caso da Academia Sénior Monet Oblectando. dias recebi o convite de me associar às suas atividades letivas na área que mais me agradasse. Aceitei com prazer a dinamização dum seminário inserido na esfera da Cultura Literária, aquela que ocupou grande parte da minha carreira docente. Iniciarei o meu regresso especial às lides académicas neste início de ano novo logo após os Reis. A ver vamos se o tal proveito e deleite do ensino e da diversão se volta a repetir, sete anos depois ter dado a minha última aula de bifurcações do tudo e do nada em final de linha. Vontade não falta se para tal houver engenho e arte.