28 de dezembro de 2015

O abeto iluminado, o pato recheado & a bota tricotada

H. C. Andersen, Christmas Tree, 1850
[Odense City Museums - Hans Christian Andersen Museum]

Cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso...
Ude i Skoven stod der saadant et nydeligt Grantræ; det havde en god Plads, Sol kunde det faae, Luft var der nok af, og rundtom voxte mange større Kammerater, baade Gran og Fyr; men det lille Grantræ var saa ilter med at voxe; det tænkte ikke paa den varme Sol og den friske Luft, det brød sig ikke om Bønderbørnene der gik og smaasnakkede, naar de vare ude at samle Jordbær eller Hindbær; tidt kom de med en heel Krukke fuld eller havde Jordbær trukket paa Straa, saa satte de sig ved det lille Træ og sagde: "nei! hvor det er nydeligt lille!" Det vilde Træet slet ikke høre...
H. C. Andersen: Grantræet. (1845)
A consoada dinamarquesa é regida pela árvore de Natal. A tradição católica do presépio não assentou arraiais em terras escandinavas de culto luterano. Este ano coube-me a honra de acender as duas dezenas e meia de velas espalhadas estrategicamente pelo abeto de cinco anos criado na terra de Andersen. Privilégios de se ser o decano da família. Depois dançámos e cantámos à volta dela: Høj fra træts grøne top stråler juleglansen, spillemand, spil lysting op!

Um bom pato assado, criado num dos campos da Zelândia, Fiónia ou Jutlândia, teve lugar à mesa. Vinha recheado de ameixas e maçãs e fazia-se acompanhar de batatas e couve-roxa. O bacalhau da Gronelândia rumou para a ceia meridional portuguesa. À falta de bolo-rei, comeu-se um risalamande com uma amêndoa inteira a substituir a fava e a desempenhar o papel de brinde extra. Depois desejou-se: Glade Jul, dejlige Jul, engle dale ned i skjul!

No final do jantar, os presentes vestidos de gala chamaram por nós. E a rainha da festa coberta de luz voltou à ribalta. As botas de lã tecidas em casa juntaram-se às demais decorações feitas ao longo da semana. O sapatinho e a chaminé são parra que já deu uva há muito tempo. A árvore iluminada despojou-se do que tinha para dar e o Natal cumpriu-se. Depois da noite acabada, pode dizer-se como nos contos infantis: Forbi, forbi, og det blive alle Historier!

26 de dezembro de 2015

José Saramago: claraboia, um retábulo com seis painéis e muitas gestas desenhadas

«Adriana pousou o livro e daí a pouco esquecia-o. Não apreciava muito os livros. Como a irmã, a mãe e a tia, adorava a música, mas os livros achava-os maçadores. Para contar uma história enchiam-se páginas e páginas e, afinal, todas as histórias se podem dizer em poucas palavras.»
José Saramago, Claraboia (2011)
Descobri José Saramago por acaso cerca de três décadas, numa altura em que não conhecia o autor nem de nome. Apaixonei-me pela capa dum livro seu que tinha uma imagem fabulosa e me dei conta do disparate cometido quando cheguei a casa. Deixara-me vencer pela aparência dum olhar e impulso dum instante. Reproduzia ela o pormenor bíblico da construção da torre de Babel, pintado nos fres-cos medievais da abadia francesa de Saint-Savin-sur-Gartempe. Alguns meses depois, resolvi arrumar em definitivo o incidente e lançar-me duma vez por todas à leitura sempre adiada do romance ou deixá-lo tranquilamente sossegado a encher-se de . A surpresa não podia ser maior. Li-o de fio a pavio, numa única noite e sem inter-rupções. Na manhã seguinte, fui à procura de todos os textos que já publicara e comecei a devorá-los da primeira à última notação gráfica. O prazer da descoberta foi menos intenso, mas vaticinou-me que o melhor ainda estava para vir nos anos seguintes. Assim foi. A paixão pela escrita desse desenhador de palavras até então desconhecido desabrochou e mantém-se bem viva até hoje. Tudo a partir do Memorial do convento (1982), um relato épico centrado na era dourada do Magnânimo e que transformou radicalmente em mim a forma de viver a literatura. Curiosas histórias que os livros nos oferecem, assim de imprevisto, sem pedirem licença a ninguém.

Uma outra capa que me voltou a sensibilizar para um romance de Saramago é mais recente e a linguagem de script que a encorpa obedeceu a uma trajetória distinta. A ansiedade de desvendar os segredos dum inédito há muito extraviado foi mais forte do que a magia provocada por uma gravura que se abria sedutoramente para o âmago da fábula. A representação duma fresta ou óculo aberto para permitir a passagem do ar ou claridade a um edifício de papel revestido de palavras e a pairar sobre o casario da cidade recortada sobre um fundo azul-celeste. Imagem feliz para dar visibilidade antecipada a uma Claraboia (2011) especial, traçada por um obscuro Honório, pseudónimo que os editores modernos substituíram pelo ortónimo do seu criador absoluto. Apesar de ter sido finalizada em 1953 e ficado esquecida até às vésperas da publicação, já com caráter póstumo, é deveras surpreendente que encontremos na sua urdidura a magia duma escrita que seria reconhecida e consa-grada a uma distância tão alargada no tempo. A problemática da existência humana tomada em todas as suas dimensões, a equação das relações erigidas entre homens e mulheres nas suas pequenas e grandes cumplicidades, a determinação possível das fronteiras balizadoras do real e do imaginado, do bem e do mal, do amor e do ódio, da verdade e da mentira, da vida e da morte, do tudo e do nada.

Essa abertura estratégica recortada no prédio ficcionado permite-nos espreitar para o seu interior sem ser vistos, observar discretamente o destino entrecruzado da meia dúzia de famílias que o habitam, protagonistas romanescos decalcados dos passeantes anónimos com que nos cruzamos no nosso caminhar pelo dia a dia. Vê-los a todos dum modo peculiar, como heróis e heroínas dum vasto retábulo com seis painéis e muitas intrigas por contar. Gente simples com sonhos de liberdade. Regresso inesperado aos anos cinquenta, a um bairro popular de Lisboa, descritos em cima do acontecimento, aqueles em que uma chamada telefónica custava cinco tostões e se podia fazer em casa duma vizinha, em que se ouvia rádio aos serões e se ignorava a existência da televisão, em que os jornais falavam da guerra da Indochina e se fazia tábua rasa das colónias portuguesas que, à época, se mantinham adormecidas, numa tranquilidade secular, sem o menor sobressalto de conflitos futuros. Anos em que as pessoas ainda sentiam prazer em conversar umas com as outras sobre os mais diversos assuntos, ainda achavam importante discutir os enredos das histórias de paixões ardentes escritas nas páginas dum livro ou gravadas nas faixas dum disco, ainda encontravam argumentos plausíveis para construir sistemas filosóficos pessoais de dimensão universal. Retalhos de vida plasmados num romance que por pouco não ficava encerrado numa qualquer gaveta de obras rejeitadas pela república das letras. Uma claraboia transformada numa janela aberta de par em par, para que as poeiras de décadas de esquecimento fiquem impedidas de ofuscar a luminosidade retratada na tela. Ironia inesperada do devir histórico, feita de teias urdidas e cerzidas, de dramas lidos e vividos, de palavras perdidas e achadas…

NOTA
Li esta Claraboia de Saramago pela primeira vez em Copenhaga. Agora que voltei à capital dinamarquesa e o romance foi adaptado ao teatro e subiu aos palcos da capital portuguesa, trago para aqui o texto que então compus e tornei público no Pátio de Letras. Faço-o porque ainda não me deixei de surpreender com o autor que revolucionou a arte de contar histórias entre nós...   

21 de dezembro de 2015

O Pai Natal, as renas, os brinquedos & os meninos bem-comportados.

Ilustrações de Afonso Cruz - Para onde vão os guarda-chuvas (2013)

HISTÓRIA DE NATAL
para crianças que já não acreditam no Pai Natal

O Pai Natal tem uma barriga muito grande e umas barbas enormes da cor do leite a escorrer pelo queixo. | O Pai Natal vive no Polo Norte no meio da neve e do frio. | Gosta muito das suas renas e passeia com elas como se fossem velhos amigos. | Por vezes, abraça-as e dá-lhes palmadinhas nas costas. Como nós fazemos quando vemos pessoas de quem temos saudades. | Uma das coisas de que o Pai Natal mais se orgulha é a sua colorida fábrica de brinquedos. | Onde os seus duendes trabalham dia e noite sem nunca se cansarem. E cantam de alegria enquanto fabricam tanta felicidade em forma de bonecas e carrinhos. |  Quando as prendas estão prontas, são embrulhadas em papéis coloridos. O Pai Natal gosta especialmente dos embrulhos em que ele aparece. | Depois, o Pai Natal monta no seu trenó, diz um poema às renas para elas conseguirem voar e percorrer o mundo. | Vai distribuindo os presentes por todo o lado. | Por todas as chaminés. | E é assim que os os meninos bem-comportados recebem as suas prendas. | Feliz Natal!
Afonso Cruz, Para onde vão os guarda-chuvas (2013: 23-47)

NOTA
A leitura da história desenhada com palavras não dispensa a leitura da história contada com desenhos ou a obra maior a que pertence sobe a forma de romance. O confronto das duas versões é fundamental para entender os sentidos convocados no subtítulo desta História de Natal.

17 de dezembro de 2015

Presépio de Belém, Dia de Natal e Sol Invicto

Giotto di Bondone, Adorazione dei Magi (c. 1303-1305)
[Cappella degli ScrovegniPadova]

Segundo se julga saber, deve-se a São Francisco de Assis a criação do primeiro presépio. A encenação natalícia ocorreu no já longínquo ano de 1223 e contou com o acordo papal de Honório III. O drama litúrgico foi representado numa gruta da floresta de Grécio e integrado numa missa especial, rezada na presença da imagem do Menino Jesus deitado num berço revestido de feno e ladeado pelas imagens da Virgem Maria e de São José. Para completar o cenário, foram levados para ali um jumento e um boi verdadeiros. A recriação anual do nascimento do Messias Salvador acabava de ser instituída, atravessaria o milénio e chegaria até aos nossos dias.

Artistas e artesãos deram-lhe vida em figuras pintadas, desenhadas e esculpidas, expostas em museus nacionais de todo o mundo e nas casas da gente anónima um pouco por todo o lado. A lenda local dada à luz num recanto perdido da Terra Santa transformar-se-ia, com o decorrer dos tempos, num mito global que abraça os cinco continentes habitados pelos seres humanos, devotos ou não das diversas interpretações da fé Cristã. Cada cor seu paladar. Os interpretes do presépio franciscano multiplicaram-se, o estábulo abriu-se ao exterior e os caminhos de areia traçados num chão de musgo chegarem até ao castelo dos Reis Magos.

Olhando com atenção para essas reconstituições do mistério da encarnação, até nos esquecemos da fragilidade dos dados factuais a ele associados e dos constantes desmentidos proferidos pelos registos históricos que até nós chegaram. A pragmática prosaica da realidade raras vezes dá as mãos à fantasia poética da imaginação. As temperaturas negativas que se fazem sentir nas montanhas de Belém aconselhariam os progenitores do recém-nascido a protegê-lo um pouco melhor dos frios invernais do último mês do ano. A menos que o parto sagrado se tenha dado noutra altura ou noutro espaço. As hipóteses alternativas são mais do que muitas.

A fixação do Natal a 25 de dezembro parece estar ligada ao culto ro-mano do Sol Invictus, cujo nascimento se festejava nesse dia. Com a conversão de Constantino ao Cristianismo em 313, a substituição duma divindade por outro efetuou-se de imediato, passando Jesus de Nazaré a ser o verdadeira resplendor invencível. E assim ficou até hoje no rito católico predominante entre nós. Data em que a luz do dia começa a aumentar após o solstício de inverno e o renascimento do astro-rei se iniciava. Momento simbólico de desejar as boas-festas à vida renovada, independentemente o nome que lhe outorguemos e dos sentidos religiosos que lhe agreguemos.

14 de dezembro de 2015

Amin Maalouf, os jardins de luz do maniqueísmo

«Sois traître à l’Empire, s’il le faut, et rebelle aux décrets du Ciel, mais fidèle à toi-même, à la Lumière qui est en toi, parcelle de sagesse et de divinité.»
Amin Maalouf, Les Jardins de lumière (1991)
Amin Maalouf, jornalista e escritor libanês de língua francesa, estreou-se no mundo das letras com As Cruzadas vistas pelos Árabes (1983). Seguiram-se-lhe uma dezena de outros títulos repartidos pelo ensaio, romance e libreto de ópera. O sucesso da obra cruzou fronteiras à escala mundial, transformando o autor num dos nomes de referência literária atual mais acatados pela comunidade internacional. O segredo tem residido no seu propósito de promover o diálogo constante do Oriente com o Ocidente, de fomentar o entendimento de todos os homens, de estimular o respeito pela diferença. Proeza facilitada pelo facto de ter sido cometida por um ser colocado entre dois mundos, entre dois padrões civilizacionais, entre dois paradigmas mentais, i.e., por espelhar a alma mediterrânea de um nativo árabe de criação católica exilado na Europa.

Essa experiência sui generis de vida e o gosto pelo discurso histórico empurraram-no para a composição duma autêntica trilogia de biografias ficcionadas de grandes vultos da cultura universal, que o fenómeno da globalização tem vindo paulatinamente a relegar para segundo plano ou mesmo a ostracizar. Depois de ter traçado nas páginas de Leão, o africano (1986) e de Samarcanda (1988) as principais etapas andarilhas do diplomata, geógrafo e humanista mouro de Granada Hassan Al-Wazzan / Jean-Léon de Médicis (1488-1548) e do poeta, matemático e astrónomo iraniano Omar Khayyam (1048-1131); Amin Maalouf conclui a série com Os jardins de luz (1991), onde nos convida a conhecer um pouco melhor a personalidade do pintor, médico e filósofo babilónio Mani ou Manes (216-274), o Buda da Luz para os egípcios, o Apóstolo de Jesus para os egípcios, o fundador do maniqueísmo para os vindouros, que somos todos nós.

O dualismo religioso patente no modelo profético apregoado pelo Filho de Babel resulta, em grande parte, dos percursos que a existência lhe foi impondo. A permanência forçada, por mais de vinte anos numa comunidade eremita de monges brancos, isolado dos homens e do mundo, a explicar-lhe a origem e explicação da intransigência; e as longas e continuadas peregrinações pelos espaços abertos do império sassânida, no seio das populações anónimas, a oferecer-lhe os germes de uma nova relação com o transcendente, ancorada na conciliação de todas as religiões. Na opinião do curador de corpos e almas, a verdadeira forma de assegurar a total liberdade do homem não pode partir da renúncia exclusiva ao mundo exterior, mas sim da descoberta do mundo interior que habita dentro de si. Só assim se poderá aproximar do Pai, o Todo Poderoso, única hipótese de vislumbrar a face do Criador de todas as coisas, o Rei dos jardins de luz, sempre de braços abertos para acolher os inimigos das trevas.

Na luta incessante entre a tolerância e a intolerância, entre o bem e o mal, entre Deus e o Diabo, a vitória parece que tem vindo a inclinar-se para os segundos termos dos binómios destacados. Era assim nesse tempo recuado, continua a ser assim nos nossos dias. Ao manter-se coerente com as suas convicções pessoais, com as suas crenças e doutrinas, Mani deixou escapar a oportunidade de garantir a canonização da sua fé, a institucionalização da sua igreja e a sobrevivência do seu pensamento. O mensageiro da paz morreu martirizado quando aconselhou o imperador persa a resolver os conflitos bélicos com o imperador romano pela via diplomática. A força da guerra foi mais forte do que a da concórdia. As lições da História têm servido de pouco para a formação de todos nós.

Fundado no século III da era comum, como um sincretismo do zoroastrismo, do budismo e do cristianismo, o maniqueísmo é hoje em dia uma religião extinta e o seu fundador um profeta sem seguidores. Neste sentido, os sistemas religiosos alicerçados por Buda, Jesus e Maomé tiveram um destino bem diferente do idealizado por Mani. A humanidade que promoveu esta seleção natural que o diga. Amin Maalouf, pela sua parte, já cumpriu sobejamente a sua missão.

NOTA
Convoco aqui para este espaço a leitura que há meia dúzia de anos tornei público no Pátio de Letras. Faço-o com o propósito de reunir Os jardins de luz a Leão, o africano e a Samarcanda, dando maior visibilidade a esta trilogia biográfica organizada por Amin Maalouf, um dos meus escritores atuais de eleição.

11 de dezembro de 2015

A idade dos livros e das leituras juvenis


Aquel día había cumplido yo los quince años...
Martín Vigil, La vida sale al encuentro (1961)

Caprichos do acaso fizeram-me tropeçar há dias com um libro de bolsillo que ocupou uma posição cimeira numa fase crucial da minha formação pessoal, aquela que promoveu a passagem penosa da adolescência para o estado adulto pleno. Lera-o a pedido duma amiga muito especial com o compromisso de lhe dar depois a minha opinião sincera. Assim fiz sem pestanejar.   

Segui atentamente o relato que o jesuíta Martín Vigil preparara, em La vida sale al encuentro (1961), para um público juvenil moldado, até à medula, pela matriz judaico-cristã nos tempos áureos do regime franquista predominante na piele de toro espanhola. A ideologia político-religiosa então vigente transpira em cada sílaba, palavra e frase documentadas. Naturalmente.

Voltei a visitar o palco do drama vivido no início dos anos sessenta pelos protagonistas da ficção. A um contexto histórico-cultural em que ainda se escreviam cartas, se enviavam telegramas ou se recorria ao telefone fixo para comunicar. Os discos de vinil eram reproduzidos em pick-ups, ouvia-se rádio, ignorava-se a televisão e ia-se ao cinema de bairro nos fins de semana.

Em meados do século passado, as gentes não conheciam os iPhone, iPod, iPad, iMac e outras engenhocas em i (ai). Essas gentes estavam longe de imaginar os Laptop, Tablet, MP3, Notebook, Smartphone, dos nossos dias. Nem sequer imaginavam que um dia houvesse a Internet e se socializasse pelo Facebook, Twitter, Instagram, Google+, MySpace, Badoo e quejandos.

Os autores passam, os leitores vão-e-vêm, os livros ficam. No mundo real dos factos acontecidos, nasce-se, vive-se e morre-se uma única vez. No mundo virtual dos factos imaginados, nasce-se, vive-se e morre-se uma infinidade de vezes. Essa a diferença básica entre a vida vivida pelas pessoas concretas de carne e osso e a vida vivida pelas personagens abstratas de papel e tinta.

O novelista morreu esquecido de todos. A novela continua a esgotar edições. A juventude a que se destinava foi substituída por outras. Imparavelmente. A história autobiográfica de Iñaki, o herói, prossegue a sua missão de despertar em cada um dos seus confidentes a magia incontornável dos 15 anos. A identificação com essa fase de amadurecimento não deixará ninguém indiferente.

A etiqueta literatura juvenil é uma convenção ancorada nos temas centrais convocados pela escrita. Amor e morte, presença/ausência de fé, riso e choro, tudo e nada. O sonho e o pesadelo extremam-se. A dúvida instala-se e a incerteza impõe-se. Inexoravelmente. Os livros envelhecem. As leituras rejuvenescem-nos. Depois, as aprendizagens acontecem e a vida vem ao nosso encontro.

7 de dezembro de 2015

Afonso Cruz, Tapetes voadores, tabuleiros de xadrez e guarda-chuvas extraviados

«Para onde vão os guarda-chuvas? São como as luvas, são como uma das peúgas que formam um par. Desaparecem e ninguém sabe para onde. Nunca ninguém encontra guarda-chuvas, mas toda a gente os perde. Para onde vão as nossas memórias, a nossa infância, os nossos guarda-chuvas?»
Afonso Cruz, Para onde vão os guarda-chuvas (2013)
Estou sempre a cair na tentação de comprar livros que amigos bem-intencionados me vão sugerindo de ler. Na maioria dos casos, o valor intrínseco que lhes encontro seria insuficiente para pagar o preço do papel em que estão escritos e a tinta gráfica com que foram fixados. Sobre tais casos, nem merece a pena gastar tempo precioso a tecer comentários supérfluos a acrescer ao já despendido na viagem pelo seu interior. No extremo oposto, encontram-se aqueles poucos textos que superaram todas as expetativas, que me encheram ou extravasaram mesmo as medidas. Para esses, tenho dificuldade em encontrar palavras para preencher o louvor merecido. As boas obras dispensam elogios a que, mesmo assim, têm direito. O romance que agora me ocupa foi composto por Afonso Cruz e dá pelo título enigmático de Para onde vão os guarda-chuvas (2013). A resposta à pergunta implícita colocada logo na capa do volume que o alberga só será respondida bastantes páginas à frente, quando já desesperava de decifrar os seus sentidos ocultos na tessitura dos relatos contados e desenhados que nos vão sendo oferecidos com toda a calma do mundo e ao sabor do momento.

Gostar ou não gostar das histórias impressas a fingir de verdadeiras é irrelevante. O mais importante é saber se nos deixam ou não indiferentes. Que falem delas ainda que seja para dizer mal. Eis uma frase que à força de ser repetida já entrou na categoria das banalidades. Cristalizações verbais ou sintagmas congelados lhes chamam os linguistas a demonstrar a sua destreza no manejo das palavras. Dispenso-me de optar por uma aprovação/reprovação simplista deste guarda-chuva metafórico que alguém fez cruzar no meu caminho sem me dizer para onde ia. Limito-me a dizer que a anunciada obra-prima de prosa poética composta por um jovem autor português buliu comigo mais do que uma vez. Deixou-me cheio de interrogações estéticas quase sempre contraditórias ou mesmo inconciliáveis. Sensação forte, intensa, que geralmente se experimenta quando estamos em presença duma manifestação de arte há muito consagrada e confirmada. Os prémios obtidos dentro e fora das fronteiras nacionais deixam antever que o caminho percorrido pelo escritor, ilustrador, cineasta e músico, já ultrapassou a fasquia do principiante e se encaminha a passos largos para a consagração multidisciplinar.

Trata-se dum livro aglutinador de várias estruturas discursivas, chamadas à colação para dar uma maior visibilidade aos flashes existenciais duma família oriunda dum espaço exótico, situado num quadrante impreciso e deixado por identificar com as palavras que desvendariam o mistério. Lá vamos sabendo professar o credo islâmico, conviver com representantes dum cristianismo minoritário e dum hinduísmo concorrente. O urdu é referido várias vezes e registado a título complementar na numeração dos capítulos em que a fábula se constrói. Talvez nos queira remeter para o Paquistão ou Índia, países onde é falado como língua oficial ou de utilização quotidiana. A menos que se trate do Irão, também sugerido pelo idioma farsi. Pouco importa. O caráter de indefinição atribuído aos relatos verbalizados, desenhados e fotografados, introduz um elemento suplementar que é posto à inteira disposição dos leitores para comporem os quadros onde a diegese se vai fazendo. Vida, paixão, inocência, amor, morte. O sonho de liberdade, o pesadelo do cativeiro. A perda de um filho e a adoção de um outro. Pedaços de solidão revelados a preto e branco num tabuleiro de xadrez ou pintados num tapete de oração com todas as cores do arco-íris. Os pássaros a voarem mais alto nos versos do poeta Omar Khayyam, reproduzidos na máquina de escrever do macaco infinito. Alegorias clássicas enquadradas por uma edificativa «História de Natal – para crianças que já não acreditam no Pai Natal» e uns imaginários «Fragmentos persas (anónimo, século I depois da Hégira – seleção e recolha de Théophile Morel)». O alfa e o ómega da própria condição humana, plasmados nos ícones e signos com que as tramas narrativas se tecem.

Nas badanas ou guardas dos livros, nas capas e contracapas, as críticas documentadas são sempre positivas, as obras magistrais e os autores geniais. Depois o pano levanta-se, a função inicia-se e a peça mostra-se. A verdade nua e crua é revelada sem dó nem piedade. Os atores em cena passam a revelar as suas próprias capacidades líricas, épicas e dramáticas. Os publicitários falariam na prova do algodão. As hipérboles são reduzidas à sua verdadeira dimensão e o balanço surge no horizonte. Dou o braço a torcer neste caso concreto. O texto, afinal, vale bem o papel em que está estampado. As sensibilidades estéticas dos amigos, por vezes, coincidem entre si. Então, as balizas entre o bom e o mau ganham uma nitidez cristalina e a fruição pela arte surge. A república das letras abre-nos as portas e convida-nos a entrar. Entremos que oportunidades destas não surgem todos os dias.

1 de dezembro de 2015

Guerras, ventos & casamentos...

Guillermo Harvey, Atlas (Londres: 1868)
[Library of Congress - United States]

O extinto feriado do Primeiro de Dezembro evoca-me os tempos em que nasci e cresci. Celebrava-se com especial ardor a Restauração duma Coroa governada por um rei nascido em território português. O equívoco entre os conceitos de País-Estado-Nação levaram o regime político vigente a associar essa mera mudança de monarca como a recuperação duma independência alegadamente perdida. Dizia-se ainda com mais empenho patriótico de ajuste de contas com a História: De Espanha, nem bom vento nem bom casamento.

O provérbio repetido a torto e a direito por todos os quadrantes da época, incluindo o republicano, sempre me causou uma certa confusão. O mistério do vento aludido só começou a desvendar-se no momento em que a experiência pessoal da nortada estremenha, fresca e húmida, se veio juntar à experiência do levante algarvio, quente e seco. Vistas bem as coisas, as massas de ar atlânticas ou sarianas pouco têm a ver com as fronteiras físicas da Península Ibérica. Atingem-na por inteiro, por igual e sem preconceitos.

A inclusão do casamento na sentença rimada pareceu-me sempre óbvia. Referia-se à política matrimonial seguida pelas monarquias hispano-portuguesas ao longo dos séculos. Afinal de contas, tinha sido através da união de Isabel de Avis com Carlos Quinto que nascera Filipe II. Pesquisas posteriores vieram dizer-me que o problema das rivalidades políticas entre reinos vizinhos tinha criado um conjunto de ditados populares comprovativos dessa realidade. Destaco o franco-inglês: D'Angleterre, ni bon vent ni bonne guerre.

Questiúnculas dinásticas à parte, apeteceu-me saltar esse ambiente de guerra e recuar aos meus 20 e poucos anos, quando estive em Olivença pela primeira vez. Fi-lo com um amigo espanhol. No regres-so, perguntou-me onde ficava a raia portuguesa. Ao olhar para o fir-mamento, livre das luzes da cidade, fui incapaz de identificar a estrela Polar que me apontaria o rumo certo. Então, na imensidão da Via Láctea, percebi o quanto as linhas divisórias entre povos per-dem o seu sentido absoluto e se reduzem a nada. Inexoravelmente.