13 de maio de 2016

Lídia Jorge, as parábolas abertas de nove contos contados e recontados

«Em termos de género, o conto é um híbrido. Ele promove os dotes copiosos da narrativa mas dirige-se para a forma sucinta do poema. Gostaria que os meus contos, oscilando entre uma e outra forma, contivessem filmes de ação no seu interior, e ao mesmo tempo se aproximassem da música livre, sucinta, feita com um mínimo de palavras.»
Lídia Jorge, O amor em Lobito Bay (2016)
Falar aos outros dos livros que já lemos não nos permite, em caso algum, revelar os desenlaces das histórias visitadas. Muito menos nos contos contados e recontados com poucas palavras e enredos singulares. Os resumos têm limites. Seria roubar aos leitores em lista de espera o prazer da descoberta pessoal e intransmissível das parábolas cerzidas nas texturas narrativas.

As ficções feitas de letras por Lídia Jorge não fogem a esta regra-chave do bom convívio emissor-recetor, entidade compósita a que os entendidos da comunicação se habituaram a designar comoda-mente por Emerec. Desfazer a densidade argumentativa dos nove microrrelatos contidos n'O amor em Lobito Bay (2016) seria uma traição imperdoável, a prova consumada dessa indelicadeza inqua-lificável de parafrasear as fábulas alheias. O melhor caminho será sempre de conhecê-las na versão original sem atalhos de permeio. Os editores da compilação, atentos a estes pruridos, lá vão enchen-do as badanas dos exemplares impressos colocados no mercado, com algumas informações pontuais que agucem a curiosidade dos potenciais consumidores de sonhos verbais, sem todavia deslindar os mistérios intocáveis que os envolvem. Afirmam tratar-se de casos de brutalidade e fidelidade, de descoberta e coragem, concentrados em espaços longínquos, flashes de amor e morte, acrescento eu, com o propósito firme de despertar inquietações proveitosas e atiçar exemplaridades duvidosas. O isco está lançado. Que se dê o passo seguinte. Viajar pelo interior dos pedaços de vida postos à minha inteira disposição e avançar com algumas notas mais registadas à margem das páginas percorridas.

Lidos os contos e lançadas as mãos à obra, lá vou avançando que aquele que dá nome à coletânea e abre caminho aos restantes nos fala dos poderes secretos que uma andorinha teria de fabricar os maiores corredores do mundo. Segue-se um outro revelado numa situação de overbooking à narradora por um homem bom protago-nista duma coisa má. Chega depois a vez de referir o episódio dum lenço bordado num tempo de esplendor pretérito a testemunhar a cena dum quase afogamento infantil. Imita-se de imediato um êxodo de imigrantes clandestinos no parque das cidades duma cidade anónima e assiste-se paralelamente à libertação simbólica do cuco dum relógio onde estava encerrado. E há também uma prova de resistência académica MBA centrada na eliminação compulsiva dum animal de estimação. E a viagem num rio chamado mulher ao lado da sombra de dois forçados heróis duma história de amor tão rude quão sublime. E as questões de fé numa catedral católica neogótica do Novo Mundo construída à imagem decalcada do Velho Continente, capazes de abalar o edifício cabalístico-diabólico desta nossa realidade quotidiana que nos rodeia. E há ainda uma dama polaca a voar numa limusina preta em noite escura a anteceder, numa última etapa da romaria diegética, os sucessos e insucessos dum poeta inglês no seio do clube secreto The Glorious Guys...

Os fragmentos de existências possíveis remetem-nos para as memórias autobiográficas da autora transfiguradas pela narradora omnipresente em todos os instantâneos selecionados. Os cenários nem sempre identificados com precisão levam-nos aos três con-tinentes banhados pelas águas atlânticas, o africano, o americano e o europeu. As rivalidades sangrentas alimentadas entre movimentos libertadores angolanos com que abre o rosário de testemunhos relatados têm o seu contraponto nas rivalidades literárias sustidas em terras francesas nas derradeiras contas desse mesmo rosário. Pelo meio ficam as peripécias de percurso repartidas nas duas margens dos grandes lagos estado-unidenses e canadianos. O amor à família, à verdade e à liberdade, a solidariedade, a fidelidade e a fraternidade, são princípios constantemente chamados à colação. Híbridos de filme de ação e poema-narrativa, imergidos pela música livre e sucinta gizada com um mínimo de palavras. Assim os define Lídia Jorge. Assim os considero. Porque, na república das letras, um género é aquilo que quisermos que ele seja sem barreiras a obstruir a criatividade artística.

Nas vésperas do lançamento do livro, tive a oportunidade de falar com a arquiteta da obra. Felicitei-a pela projeto de publicar no mesmo ano dois títulos diferentes. Um conjunto de contos e uma peça de teatro. Disse-me que se tratava de coisa pouca e sem importância com que os editores a tinham querido brindar. Levanto a minha taça e dizer tchim-tchim aos responsáveis pela iniciativa. Que haja muitas como esta, de modo a que o prazer pela escrita se multiplique e o prazer pela leitura se mantenha no nosso horizonte de eventos presentes e futuros.

2 comentários:

  1. Uma resenha inspiradora, Prof. Ainda não comprei o livro, mas depois destas palavras que salientam a magia das de Lídia Jorge, não vou resistir.

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