27 de junho de 2016

Amin Maalouf, quatro séculos de história vistos duma poltrona sobre o Sena

« Le premier occupant du fauteuil n'y resta pas longtemps. Reçu en mars 1634, il se noya dans la Seine quatorze mois plus tard, ce qui lui vaut le triste privilège d'avoir été le premier " immortel " à mourir. »
Amin Maalouf, Un fauteuil sur la Seine (2016)
Amin Maalouf foi recebido com toda a pompa e circunstância como membro eleito da Académie française em 2011. Estava à sua espera e inteira disposição a vigésima nona poltrona da mais famosa associação de imortais, alojada no Institut national de France. Aquela que tem como principal missão a defesa da pureza e eloquência da língua francesa exigidas em todas as áreas abrangidas pelas artes e pelas ciências. No dia da receção solene no palácio da Coupole, cumpriu o tradicional ritual de tecer um elogio ao antropólogo Claude Lévi-Strauss, o seu predecessor naquele mesmo assento que a partir desse momento passaria a ser também seu e a título vitalício. Não teve oportunidade, então, de prestar uma homenagem adequada aos restantes ocupantes daquele espaço privilegiado de divulgação da cultura ao longo da existência multissecular da Compagnie e do próprio país que a instituiu nesse já longínquo ano de 1634. A conceção de Un fauteuil sur la Seine. Quatre siècles d’histoire de France (2016) teve como grande objetivo colmatar, precisamente, essa lacuna.

Nessa tarefa hercúlea de traçar o perfil imparcial de dezoito figuras públicas imortalizadas em vida (filósofos, cardeais, médicos, diplomatas, dramaturgos, advogados e libretistas), o biógrafo voluntário foi obrigado a consultar todos os arquivos postos ao seu dispor. O estatuto de herói outorgado pelos quarenta membros em efetividade de funções nas cerimónias oficiais do cais de Conti é questionada constantemente. A obtenção da honra de se ser lembrado para sempre depende da memória coletiva dos homens e não da vontade iluminada dos sábios reconhecidos pelo poder instituído do momento. Os nomes consagrados de Ernest Renan, Henry de Montherlant e Levi-Strauss são recordados com o mesmo empenho ensaístico com que o são os nomes esquecidos de Pierre Bardin, Nicolas Bourbon, Salomon de Virelade, Philippe Quinault, François de Callières, André-Hercule de Fleury, Paul d’Albert de Luynes, Claris de Florian, Jean-François Cailhava, Joseph Michaud, Pierre Flourens, Claude Bernard, Charllemel-Lacour, Gabriel Hanotaux e André Siegfried. Os grandes a darem visibilidade aos pequenos. Abreviando e sintetizando.

O percurso pelos bastidores da instituição parisiense fundada oficialmente pelo Cardeal de Richelieu, primeiro-ministro de Luís XIII, acaba por se transformar num meticuloso percurso pelo devir histórico do país que a acolheu, primeiro na residência de Valentin Conrart, membro do círculo literário inicial, depois no Collège des Quatre-Nations, por vontade expressa do Cardeal Mazzarini, primeiro-ministro de Luís XIV. O Ancien Régime, as cinco Repúblicas e os dois Impérios perpassam pelos nossos olhos de leitores atentos. Os tempos conturbados da Convenção, Diretório e Consulado são chamados à colação. As referências ao Musée de France, à Comédie-Française e ao Collège de France são recorrentes. As alusões às querelas estabelecidas entre republicanos e realistas, revolucionários e reacionários, clássicos e românticos são frequentes. A falta de dados concretos sobre os sucessivos usufruidores da cadeira em apreço levam o seu atual proprietário a tropeçar em pequenas anedotas que os marcaram no período de tempo, enquanto participantes das sessões privadas e públicas do Cenáculo tetrassecular. Encontram-se todos coligidos nas dezoito didascálias com que abre cada uma das entradas da compilação de celebridades exumadas do passado.

Contista de vidas alheias e pessoais, fingidas e reais, de memórias frágeis recuperadas pela escrita, Amin Maalouf conjuga na história desta poltrona com vista para o Sena os dois modos de traçar o perfil de vultos de renome assegurado e de particular merecimento e dá-lhes um cunho ensaístico, género em que também é um mestre exímio. Romance plural de muitas travessias singulares pelos sendeiros duma fama passageira ou perene no fluxo dum cronótopo imparável e contínuo. Fénix fabulosas renascidas das próprias cinzas com direito à glória efémera de voltarem ao nosso convívio nas páginas dum livro enquanto dura o ato da leitura. Arte primorosa dum autor que tão bem tem sabida elevar-se à altura dos heróis que povoam a nossa imaginação sedenta de poesia integral nesta nossa aldeia global cada vez mais rendida à vulgaridade medíocre da prosa integral. Exercício de estilo sem o qual o status tão almejado de génio se não alcança.

2 comentários:

  1. Uma tarefa hercúlea, como se depreende da resenha, que nos lembra a mestria de Maalouf na arte de escrever.

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  2. José Manuel Moreira Cláudio28 de junho de 2016 às 08:31

    Mais um livro que vai para a lista das compras... Não só pela sua crítica que é muito interessante, mas também porque gosto do Amin Maalouf que, acho eu, faz uma ponte magnífica entre a Europa e o Médio Oriente.

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