9 de dezembro de 2020

António Lobo Antunes, desarrazoado amor, que farei quando tudo arde?

«impedindo os psicólogos ou os estudantes ou os clientes da discoteca de darem fé do cadáver e mangarem com ele, o meu pai é um palhaço com plumas e lantejoulas e cabeleira postiça, os enchumaços nas nádegas, no peito, a boca pintada do velhote do caniche a eriçar-se contra mim a ladrar, uma ocasião trouxe o rafeiro de laçarote do meu pai para o jardim do Príncipe Real onde nunca brincaram comigo nos baloiços, havia peixes no tanque, não dei migalhas de bolacha aos peixes»
António Lobo Antunes, Que farei quando tudo arde? (2001)
Durante anos a fio, não deixei escapar do meu olhar clínico um título novo dum autor português estivesse ou não na moda, tivesse ou não caído no goto dos leitores, enchesse ou não as colunas das revistas e suplementos literários então existentes. Eternos candidatos a prémios das letras nacionais e internacionais. João de Melo, Maria Velho da Costa, José Saramago, Agustina Bessa-Luís, Vergílio Ferreira, Maria Gabriela Llansol, Mário de Carvalho, Lídia Jorge, João Aguiar, Hélia Correia, Almeida Faria, Maria Isabel Barreno, José Cardoso Pires, Olga Gonçalves, Mário Cláudio, Maria Teresa Horta, entre muitos mais. A leitura de cabo a rabo era obrigatória. Deformação profissional que aos poucos fui abandonando. Em dada altura decisiva do meu contínuo processo de cumplicidade com os livros, comecei a largar uns quantos a meio e a deixar outros tantos autores de lado, a instalar as opções estéticas entretanto adquiridas e a afirmar um processo lento de maturidade perante a Arte Poética horaciana* de encarar a ficção, de promover o docere, o movere e o delectare, i.e., de juntar o útil ao agradável, que em simultâneo deleita e instrui o leitor.  

Um dos nomes de que a breve trecho me cansei de visitar e pus drasticamente de parte voltou agora à minha presença. Estou a aludir a António Lobo Antunes, com quem nunca me identifiquei muito a sério, nem de perto nem de longe, e ao Que farei quando tudo arde? (2001), título pedido emprestado ao derradeiro verso dum soneto renascentista de Francisco Sá de Miranda. Lembro-me do esforço hercúleo que desenvolvi para aguentar a escrita labiríntica da primeira à última página dos seus romances iniciais, para estar a par das novas tendências da ficção contemporânea que por se iam impondo, muito à arreata do Noveau Roman francês. Naufraguei a meio d'As naus (1988), vão mais de três décadas bem contadas com muitas outras leituras de permeio, em que exclui sempre o polémico enfant terrible da literatura portuguesa, como a crítica então instituída  apelidava o ex-psiquiatra do Hospital Miguel Bombarda e ex-alferes miliciano da guerra colonial em Angola, já com dois divórcios no curriculum e uma rendição a tempo inteiro às escritas ficcionadas e cronísticas.

Este livro, que me foi oferecido a seu tempo como prenda de Natal ou de aniversário, trata nas suas linhas gerais duma reflexão sobre a identidade, elaborada em grande parte por um heroinómano com problemas psiquiátricos, duvidoso filho dum travesti homossexual, que designa depreciativamente por palhaço, e duma ex-professora, convertida numa prostituta decaída e alcoólica. É acompanhado por uma polifonia de vozes que se atropelam a um ritmo frenético, difíceis de identificar, através das muitas perguntas que vão fazendo em vão, penosa e insistentemente, ao longo das mais de seis centenas de páginas do romance e trinta e dois capítulos não numerados, num vaivém caleidoscópico de espaços e tempos desordenados ao correr da pena. O argumento é fácil de traçar e encontra-se registado com poucas palavras na sinopse promocional repetida por todas as livrarias de venda em linha na Net. Acrescenta-se, ainda, ser o retrato fiel dum país assolado pelas chamas, por ter sido publicado numa altura em que os mass media abriam os noticiários com os incêndios florestais que então grassavam sem sossego um pouco por todo o lado. Justificar-se-ia assim o próprio título escolhido, pese embora o facto de não chegarem a ser aflorados ou sequer mencionados de raspão por nenhum dos actantes de primeira pessoa postos ao serviço da fábula. Essa leitura precipitada, baseada numa mera coincidência ou simples equívoco facilmente detetados pode também ser entendida como um mero chamariz publicitário de divulgação editorial. Mais acertado será colocarmo-nos na presença alegórica do desarrazoado amor das paixões da alma em guerra com a razão, à semelhança dum Amor é fogo que arde sem se ver de Luís de Camões. O nome da obra referir-se-ia, deste modo, às múltiplas questões existenciais colocadas com ardor e a torto e direito pelos protagonistas, quando tudo arde ao seu redor, inquietações que ficam teimosamente em aberto ao longo de todo o texto.  

Lidos os oito livros inaugurais e este décimo quinto, vejo-me obrigado a concluir que a minha opinião sobre o seu estilo pessoal se manteve sem alterações muito sensíveis. Nem me converti em ferrenho do autor, nem encontrei anticorpos suplementares a agravarem o grau de tolerância que a obra me oferecia. Nada de singular, afinal, pois  o mundo dos livros é mesmo assim. Ou se gosta ou não, sem lugar a meios-termos de compromisso. Uma das suas prerrogativas mais pertinentes é mesmo a de convocar no leitor a lembrança ou o esquecimento, a surpresa ou a desilusão. Provei um pouco de tudo. Reduziram-se a ecos remotos as alusões à era colonial, moderou-se a usual linguagem vernácula de caserna, acentuou-se o cunho disfórico duma família nuclear disfuncional. A instância autoral alternou os monólogos interiores seguidos com pedaços de diálogos dispersos, repetiu à exaustão as palavras truncadas, as frases soltas dispostas a esmo, os jogos de itálicos de significado pouco claro e as ideias lacunares próprias dum enunciado feito de caprichos da memória, fragmentos de caliça do passado, poeira aprisionada duma infância perdida, repetitivo, confuso, a seguir de muito perto a corrente do pensamento ou a imitar a disposição espacial da poesia versificada num relato em prosa e de rima em branco. A páginas tantas do emaranhado discursivo, servido por uma pontuação caótica e uma ortografia descuidada, alguém procura saber qual a razão de se escreverem notícias complicadas de ler. Achei piada à ironia da questão e apeteceu-me substituir a palavra notícias por romances, mas desisti, pois esses escritos gongóricos quem quer. tinha chegado a essa conclusão no final dos anos 80 e voltei a repeti-la neste início dos 20 dum novo milénioMea culpa, mea culpa, mea maxima culpa...

NOTA
(* ) Horácio, Arte Poética (19 AEC). Lisboa: Inquérito, 1984 (338-343, p. 106-107)

4 comentários:

  1. Que recensão curiosa!
    Do autor sempre li as crônicas na revista Visão, ótimas.
    À meses li o primeiro romance "Memória de Elefante", gostei muito. O Manual dos Inquisidores aguarda desde 1997, para ser lido. De facto, ou se gosta do que escreve ou se odeia. Ainda não li o suficiente para dar corpo a uma opinião.

    ResponderEliminar
  2. Feliz recensão pedagógica e crítica, Prof., que aqueles que apenas conhecem as crónicas de Lobo Antunes deveriam ler... Há anos que acompanho a obra dele, tendo na estante 15 romances, entre os quais "As naus" foi o primeiro a ser lido, em 1988. Foi um autor que me obrigou à arte de bem me concentrar para conseguir interiorizar o que lia. Mas a prosa poética das suas crónicas, que tanto deleita os leitores, não marca presença nos seus romances, para os quais ele trouxe a sua experiência de psiquiatria de forma nua e crua. Há seis anos comprei o último, "Ontem não te vi em Babilónia", que li contrariada pois detesto abandonar um livro a meio. Os seus livros sofreram um apuramento no preciosismo da sua escrita, onde o cruzamento dos monólogos das personagens se tornou mais intrincada, com suspensão de palavras no meio que são retomadas mais adiante, levando o leitor a enfrentar ideias indecifráveis. Ainda bem que nos continua a premiar com as crónicas, contrariamente à sua própria opinião negativa...

    ResponderEliminar
  3. Tenho pena mas, neste caso, não concordo contigo e tenho uma opinião completamente antagónica: ninguém escreve como António Lobo Antunes. Mas, como referes, "o mundo dos livros é mesmo assim. Ou se gosta ou não, sem lugar a meios termos de compromisso."Abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Já me tinha apercebido que eras um admirador do António Lobo Antunes, um autor que escreve como poucos entre nós, um mestre da nossa língua e que terá poucos à sua altura, mas mesmo assim e apesar de todas as qualidades de escrita que lhe reconheço, não responde às minhas preferências estéticas. Vá-se lá perceber a contradição a que a literatura por vezes nos conduz. Obrigado pelo comentário e abraço amigo.

      Eliminar