21 de dezembro de 2020

Pierre Péju, a travessia de Eva: uma história de solidão, infância e silêncio

« Prestement, il quitta le parc du centre et dévala le chemin jusqu’au village où un grand soleil baignait le gris-rose des toitures et le jaune des murs sur lesquels grimpaient de vieilles glycines. Et Vollard eut envie de demeurer en ce lieu. Seul, dans la tiédeur ignorante des choses, sur ce balcon montagneux si difficile d’accès. Midi sonnait. Une cloche qui n'en finissait pas de retenir. Des sportifs de tous âges, solidement chaussés, déposaient leurs sacs à dos contre un mur de pierre et s’asseyaient aux terrasses des auberges. Vollard eut alors faim et soif. À son tour, il s'assit à l'une des tables de bois, sur la place du village ouverte et sur le vaste paysage posa machinalement devant lui le premier livre extrait de sa sacoche.  J'ai cherché partout le bonheur, mais je ne l'ai trouvé nulle part, sinon dans un petit coin, avec un petit livre. »
Pierre Péju, La petite Chartreuse (2002)

Aproveitei a cordial dedicatória que Pierre Péju registou desde a me-diateca de Combourg, numa edição de bolso d'A travessia de Eva (2002), para sintetisar este conto-romance de centena e meia de pági-nas, repartidas por três partes e catorze capítulos providos dum curto dístico clarificador da evolução da história de Étienne Vollard e de Thérèse e Éva Blanchot, o trio de protagonistas do drama-tragédia causado por um atropelamento ocasional numa cidade anónima, antiga, pequena, estreita e comprimida entre montanhas, coberta de neve e de lama gelada. Um livreiro de profissão com uma memória fenomenal, uma mãe ausente e sem tempo para dedicar a uma filha com corpo de boneca perdida, acidentada, condenada ao abandono e mutismo irreversíveis. O silêncio, a solidão e a infância predominam de facto no relato, só competindo em número com as referências re-correntes a livros, livrarias e bibliotecas, sobretudo as mentais, muito provavelmente por serem a melhor companhia para quem foge a sete pés do bruaá envolvente, da caos instalado, do bulício ruidoso do dia-a-dia nos espaços urbanos, em busca da tranquilidade solidária que os leitores amigos da leitura aprenderam a cultivar longe das multidões desde a mais tenra idade.

A ação decorre na antiga província francesa do Delfinado, com uma incidência particular numa região selvagem dos Alpes, situada nas cercanias de Grenoble, Chambéry e Voiron, cujas caraterísticas de isolamento absoluto e de reflexão privilegiada fornece o nome ao título original da obra, La petite Chartreuse. É também por essas mesmas razões que o atropelador involuntário e protetor imprevisto da jovem deficiente de apenas dez anos de idade, privada de voz, de alegria e de meninice, a passa a designar simbolicamente. Tudo principia com um acidente de viação, num final de tarde chuvosa e fria de outubro, numa cidade sem nome. Tudo termina com a saída de cena do trio nuclear de intervenientes no relato, perdidos para sempre na trama cénica. O suicídio planeado, a fuga libertadora, a morte anunciada. Pelo meio assiste-se ao desfile fragmentário da existência destes três atores chamados ao palco, a representarem os seus papéis de seres viventes em torno do mais idoso, centrada nestes nossos dias atuais, contemplada em 2003 com os prémios Livre Inter e Rosine-Perrier e adaptada ao cinema em 2005 por Jean-Pierre Denis.

Para além da história duma criança atropelada e duma mãe falhada, este romance-ensaio é também ele a história contada a várias vozes dum leitor obsessivo de livros acabados de sair do prelo ou usados por outras mãos, leitor absoluto de livros recentes e antigos, novos e velhos, misteriosos e soberbos, enigmáticos e sublimes, típico leitor compulsivo de livros de todos os géneros, feitios e tamanhos, un gros garçon-livre convertido em livreiro proprietário duma pequena livraria tradicional, obscura e profunda, batizada significativamente de Le Verbe Être, pequena loja de venda direta ao público, como tantas outras em vias de extinção inexorável  muito prevista, neste início de século e milénionum espaço urbano insignificante, sem atrativos particulares, situado no meio agreste da neve e da bruma, presenças assíduas na paisagem local vizinhas do Massif Central.

Nesta história duma mãe efémera que tem medo de falar e escreve frases soltas num caderno de notas, duma filha internada num centro de recuperação e impossibilitada de falar devido ao sono comatoso provocado pelo acidente, dum pai provisório incapaz de falar por palavras suas porque estas não lhe surgem de modo adequado, a melhor solução é mesmo recorrer à voz dos livros, ao redemoinho de palavras alheias neles contidas, às escritas e aos escritores de renome reconhecido, às citações anónimas de extensão variável de autores referidos a todo o momento a quem o autor agradece no final do texto. Depois a situação evolui para novos desastres de efeito devastador. Um curto-circuito na instalação elétrica da velha loja de bairro ateiam um incêndio que convertem Vollard num livreiro sem livraria, num leitor sem livros. A apatia e debilidade crescentes de Éva lançam-na numa floresta de silêncio absoluto. A inaptidão de Thérèse para as funções maternas levam-na a procurar ocupação noutras paragens distantes. A história da mãe transparente que se atrasou, da filha que não a esperou à saída da escola e do vendedor de livros que a atropelou chegou ao fim do seu percurso feito de dramas banais engrandecidos pela poder poético da literatura.

livros que quanto mais se avança na sua leitura mais longe estão de terminar, tão enfadonha nos pareceu a forma seguida para contar uma história. Após esse percurso penoso, tentamos olvidá-lo tão rápido quanto possível. Esses são os livros de que não gostamos e não queremos voltar a encontrar, embora os arrumemos silenciosos na estante, como se tivessem cometido uma falha grave de infância, a partilhar a solidão acompanhada de muitos outros a seu tempo ali colocados. La petite Chartreuse de Pierre Péju não se insere neste grupo de obras mal-amadas, revelando-se de modo diametralmente oposto. Quanto mais avançava na sua leitura mais pena tinha que chegasse ao fim e me deixasse sem vontade de iniciar de imediato uma nova leitura. Ainda não o arrumei na minha biblioteca pessoal. Tem-se mantido ao meu lado enquanto redijo estas linhas e assim vai permanecer à minha vista até encontrar outro que o substitua, porque ainda tem muita coisa para me dizer. A ficção em si, assim como o bem organizado dossier de Catherine Duffau a juntar à leitura da imagem que ilustra a capa por Agnès Verle, L'issue lumineuse de Maria Helena Vieira da Silva. Mas isso são já contas doutro rosário. Por ora fico-me com a memória do salto no abismo do herói da fábula, depois de se ter visto privado das histórias impressas com tinta em folhas de papel em branco, reunidas numa brochura ou numa encadernação, entregando-se num voo livre ao encontro inevitável do esquecimento dos livros.

3 comentários:

  1. Não conheço o autor e o drama que narras deixa-me angustiada. Claro que na vida real acontecem sucessos assim dramáticos. Mas só um narrador muito bom me levaria a ler este enredo. Ainda bem que foi assim o teu encontro com o autor...

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  2. Que interessante leitura, que história comovente. Muito bom.

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  3. O enredo funciona como uma história banal do dia-a-dia e a forma como está escrita convida-nos à sua leitura, apesar de estar assente num drama angustiante a seguir de muito perto a estrutura duma verdadeira tragédia. Merece a pena a sua leitura apesar da forma comovente escolhida de dar voz à solidão, à infância e ao silêncio.

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