29 de dezembro de 2020

Catequese & Cinema

Codex Manesse / Große Heidelberger Liederhandschrift
„Der Schulmeister von Eßlingen“
Meister des Codex Manesse (c. 1305-1340)

Espaços perdidos da cidade da rainha...

Quem me conhece minimamente nos dias de hoje, sem qualquer tipo de crença no além, duvidará de ter eu andado quatro anos inteiros na catequese, de ter sido batizado com um mês de idade, de me ter confessado, comungado e crismado de livre e espontânea vontade, com toda a pompa e cerimónia usada nessas ocasiões. O meu processo de afastamento das práticas transcendentes exigidas pela religiosidade foi lento e espinhoso mas não vem agora aqui para o caso. Apercebi-me há muito tempo ser a eternidade uma ilusão bem-intencionada da vida para anular os efeitos devastadores da morte, não existe em termos absolutos e só sobrevive numa imortalidade relativa na memória guardada por cada um de nós dentro de si. As nossas boas ou más ações só são premiadas ou castigadas – quando o são – neste nosso mundo do aquém.

A passagem há dias num canal de filmes da TV Cabo de algumas películas a preto e branco do Abbott & Costello fez-me vir à ideia esses tempos inocentes das lições de catecismo, que decorriam no arruinado Hotel da Copa, no antigo Casino do Parque, num prédio devoluto do topo norte da praça da fruta e no coro alto da igreja do Pópulo. Os encontros de doutrinandos realizavam-se nos sábados à tarde e a associação com a dupla cómica estado-unidense advém das matinés que se realizavam no desaparecido Cinema Ibéria, a premiar os aprendizes das coisas divinas que soubessem as preces de cor. Ainda as sei todas na ponta da língua. Só a Salve-Rainha me deu um pouco mais de trabalho, com tanto palavreado junto de sentido obscuro, problema agora resolvido, pois há muito me deixei de rezas a um deus desconhecido e respetiva corte celestial.

Os filmes projetados num miniecrã colocado a meio da sala incluíam ainda algumas curta-metragens do Charlot e Pamplinas, para além dum ou doutro desenho animado do Pica-Pau, do Tom & Jerry ou do Popeye. Vistas bem as coisas e à distância de quase seis décadas, algo ficou dessa catequização primária, completada uma vez por ano com uma excursão pela região. Mosteiros, abadias, conventos igrejas e santuários foram todos visitados sem exceção. A aprendizagem foi depois continuada e aprofundada no Ciclo Preparatório com as aulas de Religião Moral, mas aí já não havia nenhuma compensação extracurricular para quem soubesse de carreirinha as orações de palavras fixas aprendidas na catequese e recitadas na missa de domingo. O tempo da infância começava a ficar para trás e a adolescência a espreitar no horizonte.

3 comentários:

  1. Somos do mesmo ano, pelo que temos muitas memórias comuns, que advêm da cultura portuguesa que então nos era transmitida desde o berço. Fui também menina de catequese, a que ia feliz e contente na companhia das minhas irmãs mais velhas e levadas pela vizinha mais próxima. As sabatinas eram concorridas e tínhamos prémios também. Deixamos de lá ir quando o padre resolveu que éramos "filhas de pecado" porque os nossos pais eram casados apenas no civil... Portanto, negou-nos o batismo com atitudes de ator dramático... A igreja deixou de ser um ponto de frequência obrigatória pois o meu pai impôs-se contra tanta falta de respeito e a crença também lá se foi, restando-me apenas expressões que a educação cristã me deixou... Comecei a conhecer o património religioso mais tarde na vertente arquitetónica e histórica, que o fazem mais interessante. Quanto ao cinema, ainda bem que as salas de cobras na minha cidade nos permitiu cultivar o prazer. Ainda hoje gosto dos desenhos animados e dos filmes que povoaram a minha infância...

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  2. Que texto ternurento, Artur!
    Parabéns!
    As práticas religiosas da infância passaram-nos ao lado, os 7 filhos foram batizados já crescidinhos e nada mais. Nunca houve grande pachorra para ir à missa. Nunca lhe sentimos a falta.
    Já os nossos filhos nem batizados são, os sobrinhos sim.

    Cultivei o gosto pela arquitetura, pela música, pelas iluminuras, pela arte sacra.
    O discurso continua a não me dizer nada.

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  3. Recordações que ficam dos muitos espartilhos havidos nesses tempos e das muito pequenas portas com pequenas frestas abertas... Ficaram-me os valores que dessas e doutras recordações quis aproveitar e que me ajudaram a despertar para a vida adulta!

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