«No dia seguinte ninguém
morreu. O facto, por absolutamente contrário às nor-mas da vida, causou nos
espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspetos justificado, basta
que nos lembremos de que não havia notícia nos qua-renta volumes da história
universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido
fenómeno semelhante, passar-se um dia completo, com to-das as suas pródigas
vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e noturnas, matutinas e
vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda
mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada. Nem
sequer um daqueles acidentes de automóvel tão frequentes em oca-siões festivas,
quando a alegre irresponsabilidade e o excesso de álcool se desa-fiam mutuamente
nas estradas para decidir sobre quem vai conseguir chegar à morte em primeiro
lugar.»
José Saramago, As intermitências da morte (2005)
Resolvi retomar a leitura d'As intermitências da morte (2005) quando se inicia a celebração do primeiro centenário do nascimento de José Saramago (1922-2010), talvez por ser o romance onde o autor aborda dum modo mais incisivo a temática da finitude humana. A morte que alimenta a vida e a vida que alimenta a morte, a lembrar-nos o quão inseparáveis são uma da outra, tal como o verso e o reverso duma mesma moeda. Quando uma falta, a outra perde o sentido de existir, convertendo-se num paradoxo que só a liberdade criadora da poesia integral ou da prosa poética viabilizam, com recurso aos preceitos retóricos da alegoria, a expressão verbal ou plástica duma realidade abstrata através duma realidade concreta.
No primeiro dia dum qualquer ano sem registo visível no calendário, ninguém morreu naquele reino anónimo de raias geográficas ignotas e vizinhos obscuros. Nesse mundo alternativo tão próprio da alotopia, o tal onde se passam coisas impossíveis de visualizar no nosso. Ali, os animais e os objetos continuam a carecer do dom da fala, os magos, as fadas e as varinhas de condão nem sequer são aludidos, mas onde o insólito se manifesta quando a morte se veste de gente, assume a forma de mulher e ‒ por fadiga ou mero capricho ‒ interrompe por períodos intermitentes o ciclo natural da vida-morte, aquele que vai inexoravelmente do berço até à tumba. No final do relato, feito de metáforas continuadas, parece apaixonar-se por um violoncelista de orquestra, deita-se com ele na cama e até consegue dormir um sono descansado de duração imprevisível. A culpa terá sido do desenho melódico da suite número seis de Bach ou do modo como o instrumentista anónimo a executara. Vá-se lá saber ao certo se se terá tratado do poder imortal da música ou do efeito vitorioso do amor. Seja como for, a verdade é que tal como na passagem do ano velho para o novo, no dia seguinte ninguém morreu. Os extremos a tocarem-se no início e final do romance.
José Saramago está sempre a surpreender-me a cada momento. Das leituras às releituras, há sempre algo a acrescentar ao já dito ou por dizer. Sinal de imortalidade tão querida das boas e más utopias. Nas primeiras, as eutópicas, anseia-se pelo elixir da vida eterna a alentar o mito da eterna juventude. Nas segundas, as distópicas, o sonho de luz radiosa converte-se num pesadelo de trevas abissais, quando a ausência da morte deixa de garantir a qualidade de vida perene. É que nos contramitos, não se defunta e estica o pernil, mas envelhece-se ininterruptamente cada dia, a degradação física entra em cena e o desejo de passar desta para melhor ganha protagonismo. A vida suspensa ou morte parada perde o sentido de ser e o recurso à morte assistida instala-se, a provar por A+B que quando se fala de matar e dar a morte nos estamos a referir a duas realidades distintas.
Na ficção ideada há década e meia, tinha de se cruzar a fronteira em segredo, com ou sem recorrer às máphias geradas pela crise, com o simples propósito de morrer em paz e sem dor num país vizinho. Hoje em dia, a realidade continua a ser mais ou menos a mesma. Assim haja poder financeiro para o fazer. A acherontia atropos, a borboleta da caveira no dorso entendida como mensageira da morte solicitada e sempre adiada, continua a esvoaçar como um anjo da escuridão dum lado para o outro desde 1995, ano em que se iniciou entre nós o debate sobre a despenalização da morte medicamente assistida ou eutanásia. Uma palavra maldita difícil de proferir por quem lhe custa a entender o peso do livre-arbítrio que assiste a quem a invoca. As partidas de xadrez executadas pela forças de poder instituído continuam os seus jogos, joguinhos e jogatinas de diversão pura para assim levar a água ao seu moinho. Uma corrida de estafetas entre as decisões da Assembleia da República, as dúvidas do Presidente da República e as hesitações do Tribunal Constitucional. Mutatis mutandi e por redução ao absurdo, os queixumes à greve da morte romanesca são alimentadas pelos negócios funerários, pelos hospitais públicos e privados, pelos lares do feliz ocaso de terceira e quarta idades, pelas seguradoras, pelas igrejas, pelos filósofos, políticos e teólogos, fazendo coro num muro das lamentações de causas perdidas daquele país de fábula, com tantos pontos em comum com o mundo factual existente fora das páginas dum livro.
O desenho narrativo das intermitências da morte impede a inserção da história inverídica no círculo estrito duma pandemia verídica. Falta-lhe o caráter universal, alargado e simultâneo. Foge também à alçada dum vulgar surto infecioso, duma epidemia geral ou duma endemia local, por carecer duma origem natural, aquela que ao invés de matar condena o paciente a uma vida sem morte à vista. Lidos e relidos os livros, fica-se com a certeza que a vida para além da morte é possível. Assim se tenha engenho e arte comprovadas e obras valorosas para festejar a imortalidade conquistada e merecida.
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Acherontia atropos (borboleta-caveira) |