29 de setembro de 2022

Somerset Maugham e as espionagens de guerra do agente britânico Ashenden

"This book is founded on my experiences in the Intelligence Department during the war, but rearranged for the purposes of fiction. Fact is a poor story-teller. It starts a story at haphazard, generally long before the beginning, rambles on in-consequently and tails off, leaving loose ends hanging about, without a conclu-sion. It works up to an interesting situation, and then leaves it in the air to follow an issue that has nothing to do with the point; it has no sense of climax and whittles away its dramatic effects in irrelevanceThere is a school of novelists that looks upon this as the proper model for fiction. If life, they say, is arbitrary and disconnected, why, fiction should be so too; for fiction should imitate life."

O The Guardian estima ter Somerset Maugham reunido no Ashenden O agente britânico (1928) todos os ingredientes que o converteriam num dos «melhores livros de todos os tempos». Esta ideia é reforçada tanto pelo The New York Times, ao afirmar ser «o livro de espionagem mais convincente de todos»; como pelo Daily Telegraph, ao agregar ter originado um «novo género literário: o romance de espionagem sofisticado»; ou pelo The Times, ao vê-lo como o «primeiro romance de espionagem escrito por alguém que foi, de facto, espião». Frases de circunstância registadas pela Asa na capa, sobrecapa e numa das badanas da obra por si reeditada, como forma habitual nestas circunstâncias de a promover junto dos leitores. Epitextos críticos completados pelo próprio contador de histórias ali compiladas, ao confessar no «Prefácio» por si composto estarem todas elas inseridas na categoria das recriações ficcionais, um procedimento literário exigido pela arte da escrita, por se referirem a experiências pessoais protagonizadas no decorrer da Primeira Guerra Mundial, quando colaborou com os serviços secretos do Departamento de Informações sediado em Londres.

Colidi por acaso com este título desconhecido e algo surpreendente dum dos autores de eleição da minha adolescência. O encontro foi-me oferecido por uma entrada casual numa livraria à procura duma novidade editorial que animasse no início de férias de verão. Afinal, acabei por me cruzar com um conjunto de episódios publicados há quase cem anos, vividos por um reputado escritor de profissão e insuspeito escritor-agente Ashenden, i.e., o alter ego de conveniência de Somerset Maugham ou alegado percursor do icónico James Bond. Como sou um leigo na matéria, vejo-me incapaz de me pronunciar sobre esta apreciação genérica. Ignorei os encómios tecidos pela imprensa diária anglo-americana e trouxe o exemplar da mais alta espionagem internacional para casa, por ter sentido um impulso muito forte de voltar à companhia do criador da Servidão humana, do Fio da navalha ou do Exame de consciência que tanto me tocaram nos tempos distantes duma juventude perdida.

Aberto o último ficheiro classificado de top secret durante a grande guerra civil europeia travada à escala global, fica-se com a sensação de se ter penetrado durante a leitura nos bastidores dos mais altos serviços de inteligência de sua majestade britânica, chefiados pelo misterioso coronel R., a alternar com os não menos obscuros major von P., capitão X., rei B. ou professor ZO ambiente do SIS-MI6 marca presença nos dezasseis capítulos ficcionados de intrigas bélicas e maquinações maquiavélicas trazidas a público pelo poder instituído. A espionagem é rainha. Exerce o seu poder sigiloso em palcos discretos afastados q.b. dos cenários de batalha e do efeito das bombas. As sequências narrativas invitadas para ambientar o relato revestem-se duma ironia maldisfarçada de caricaturar o género aludido, tratando-o mais como um pastiche assumido do mesmo, do que como um grupo coeso de genuínas missões levadas a sério pelos atores incumbidos de os representarem. Tudo funciona como um rosário disperso de eventos soltos, ligados entre si pela presença mais ou menos ativa do protagonista que empresta o nome à obra, herói-anti-herói das peripécias trazidas à boca de cena.

Lidos as histórias que compõem o livro, fica-se com a sensação de estarmos na presença de mais uma comédia ligeira desenhada por um humorista travestido de espião. Esquecemo-nos das pontas soltas detetadas aqui e além ao sabor da pena, dos segredos não revelados ou deixados suspensos no ar, do tom a roçar um cinismo subtil ou um sarcasmo afiado e lamentamos que o texto tenha chegado a um fim impossível de evitar. Acontece. No cômputo geral feito à margem da viagem pelo seu interior, vemo-la tanto como uma diversão para o autor no ato da escrita como para o leitor ao imaginá-la no termo de cada fragmento de vida exposta nas páginas dum romance de eventos semiacontecidos/semifantasiados. O tal prazer da leitura que os grandes vultos das letras nos conseguem oferecer.

22 de setembro de 2022

O réveillon republicano do sansculottide

Calendrier républicain de l'an III
Dessin de Philibert-Louis Debucourt, 1794 
[Bibliothèque national de France]

A partir do equinócio do outono de 1792, os anos passaram a ser contados de modo diferente e os meses, dias e horas cederam ao sistema decimal e adotaram novas formas para se nomearem. Uma revolução completa que conseguiu resistir uma parca dúzia de órbitas solares à calendarização tradicional do tempo.

Se a nova terminologia tivesse resistido ao período revolucionário francês, a data de hoje corresponderia ao quintidi sansculottide de l'an ccxxx, o vigésimo segundo dia de setembro de 2022 ter-se-ia tornado no quinto dia epagonal, sextavado ou intercalar de 230, apelidado le jour de la recompense. Curioso mas obscuro.

Mais bizarro será atender que o calendrier républicain festejaria essa noite a véspera do jour de l'an ou do réveillon. Tal insólito resulta dos meses de 3 décadas e do não-mês suplemente de 5 e 6 sansculottides ou dos sans-culottes, situados nos anos normais e bissextos, na passagem do fructidor para o vendémiaire.

           Sans-culottes en armes           
Jean-Baptiste Lesueur (1793-1794)
[Musée Carnavalet - Histoire de Paris]

No final desta quinta-feira, não se beberá uma taça de champagne ou comerão os 24 bagos de uva passa ao toque das badaladas da 1/2 noite. O São Silvestre não será trocado por um ignoto São Culotide. Suspirar-se-á pelo fim duma semana gregoriano de 7 dias, bem mais agradável que a de 10 da versão revolucionária.

16 de setembro de 2022

Merendas, lanches, farnéis & piqueniques

CAROLE FORÊT
Picnic at the Eifell Tower

[Fine Art America, 2015]

Em criança, as refeições ligeiras ao ar livre faziam-se a meio da tarde e ainda não eram designadas de piqueniques. Tinham lugar na Mata Real das Caldas da Rainha, num espaço especialmente preparado para o efeito e com o nome pomposo de Parque das Merendas. Também nos dispensávamos de estender as toalhas no chão e expor o farnel a todos os elementos de cada um dos grupos de crianças e adultos ali presentes. Havia mesas de pedra e bancos de madeira colocados em duas filas paralelas. No fundo do corredor assim formado, havia uma fonte à disposição de quem quisesse refrescar-se com a água fresca oriunda duma nascente local. Ainda me lembro do aqueduto que a transportava até nós mas já me esqueci da ementa preparada para o efeito. Umas fatias de pão com doce ou manteiga, uma bebida natural e uma peça de fruta. Depois brincávamos uns com os outros também já não sei bem a quê.

Quando me viciei na leitura dos Livros dos Cinco da Enid Blyton, fiquei fascinado com os lanches preparados pelo grupo, a que davam o nome sugestivo de piquenique. A nova palavra entrou de imediato no meu vocabulário e no dos meus primos que em tempo de férias nos juntávamos na Lourinhã a dois passos da praia da Areia Branca. De manhã apanhávamos banhos de mar e sol e à tarde rumávamos ao Pinhal Grande, situado a meio caminho entre a vila estremenha e o litoral atlântico. A imitação das sandwichs britânicas era improvisada com os ingredientes disponíveis à data nas mercearias locais. À falta dos fiambres e salames referidos, contentávamo-nos com umas sandes de chouriço e queijo, cercados de folhas de alface e rodelas de tomate, rematadas com uns ovos cozidos, umas tiras de cenoura crua e um sumo caseiro de fruta estival. As brincadeiras juvenis ganhavam então sentidos suplementares difíceis de descrever.

Com a chegada da idade adulta, as merendas, farnéis, merendas e piqueniques multiplicaram-seDestaco os realizados em Sintra, nos embalses do Guadiana, à beira do Mont Saint-Michel, na Fôret de Brocéliande, no Parc Georges Brassens de Paris, no Jægersborg Dyrehave dinamarquês, no Killarney National Park irlandês do Kerry e até no St. James's Park de Londres. Aqui por baixo, as nascentes naturais da serra algarvia têm servido de palco privilegiado. Depois veio a pandemia, a estiagem e os incêndios e o piquenicar sazonal terminou abruptamente. A inércia instalada tem impedido que a toalha se tenha voltado a estender no chão e se encha das iguarias pantagruélicas usuais nestas ocasiões. As rillettes, os pâtés e os fromages franceses de mãos dadas com os pastéis de bacalhau, os rissóis e os croquetes portugueses deixaram de assinar o ponto há uma eternidade já. Dá para perguntar até quando assim será. 

12 de setembro de 2022

Viagens de ida e volta do rei soldado

Amélia de Leuchtenberg – Pedro de Alcântara – Maria da Glória
«S. M. I. o Senhor Dom Pedro restituindo Sua Augusta Filha a Senhora
Dona Maria II e a Carta Constitucional aos Portugueses»

O coração peregrino à casa torna...

No tempo da formação oitocentista dos impérios efémeros das gerações românticas, Napoleão Bonaparte empurrou a família real portuguesa para terras de Santa Cruz. O imperador dos franceses mal adivinhava que quinze anos mais tarde surgiria no outro lado do Mar Oceano o primeiro imperador brasílico moldado à sua imagem e semelhança. Dom Pedro de Alcântara levava para o Novo Mundo muito do sangue azul multissecular colhido de todas as costelas coroadas do Velho Continente.

Quando as turbulências da Guerra Peninsular acalmaram e o sonho imperial napoleónico se desfez, Dom João Ⅵ regressou a Lisboa e deixou no Rio de Janeiro o Príncipe Real Dom Pedro como regente do Brasil. Tentou pôr cobro às arbitrariedades britânicas no país e debelar a resistência aos ideais liberais então em curso. O processo foi duro e exigia a presença na metrópole do herdeiro da coroa. Este recusou-se a trocar a América pela Europa e gritou o tal Digam ao povo que fico, que a história registou.

Ficar ficou, mas sem aquecer o lugar. Mesmo assim, ainda teve tempo de ocupar um trono imperial e um real nas duas margens do Atlântico. Dom Pedro Ⅰ do Brasil (1822-1831) ou Dom Pedro Ⅳ de Portugal e Algarves (1826) voltou à terra que o vira nascer (1798) e ouviu o último suspiro (1834), já reduzido a mero Duque de Bragança. Nado e finado no Quarto Dom Quixote do Paço Real de Queluz. Um alfa-ómega simbólico a pautar o trajeto vivencial do Rei Soldado ou Cavaleiro da Triste Figura.

O Grito do Ipiranga foi dado a 7 de setembro de 2022. O coração do Libertador visitou o local para celebrar o evento. Cruzou-se por alguns dias com os seus despojos mortais trasladados em 1972 do Panteão Real dos Braganças em Lisboa para a Cripta Imperial de São Paulo. Regressou agora em torna-viagem à Cidade Invicta do Porto, onde será de novo fechado a cinco chaves na Igreja da Lapa. Talvez volte a viajar no próximo centenário do país. Mas isso serão histórias a contar por outros que não nós.     

BRASÕES DE ARMAS
Reais de Portugal - Sereníssima Casa de Bragança - Imperiais do Brasil

6 de setembro de 2022

Ramerrames em contracorrente

Swim against the tide
[Imagens Google]

       Natações plenas contra a maré       

Ler e escrever para o prazer do momento. A posteridade não existe no instante presente. O prazer das palavras refaz-se em cada ver-balização que fazemos. Nunca se repete. Está sempre a inventar-se.

É raro voltar a ler o um livro várias vezes. Há tantos outros para ler e descobrir. É raro voltar a ler um escrito há muito lido, relido e treslido. Há tantos outros para escrever, reescrever e transcrever.

Os blocos passaram de moda e todavia por aqui me mantenho. Paliativo ideal para entreter a solidão e suprir a falta de parceiros com quem falar. Cada um elege os trilhos por onde quer caminhar. 

Ramerrames em contracorrente para dar sentidos ao tempo num es-paço confortável. Miragem recorrente de preencher o vazio dos dias. Subterfúgio repetido a garantir uma natação plena contra a maré.

 cd

Após oito anos a remar contra a corrente de histórias contadas e por contar a aventura continua. Deita-se o 8 do equilíbrio cósmico e temos o do infinito divino, atrás do 9(s) fora nada dum talvez tudo.