«Eu possuo preciosamente um amigo (o seu nome é Jacinto), que nasceu num palácio, com quarenta contos de renda em pingues terras de pão, azeite e gado. Desde o berço, onde sua mãe, senhora gorda e crédula de Trás-os-Montes, espa-lhava, para reter as Fadas Benéficas, funcho e âmbar, Jacinto fora sempre mais resistente e são que um pinheiro das dunas. Um lindo rio, murmuroso e transpa-rente, com um leito muito liso de areia muito branca, refletindo apenas pedaços lustrosos de um céu de verão ou ramagens sempre verdes e de bom aroma, não ofereceria àquele que o descesse numa barca cheia de almofadas e de champa-gne gelado mais doçura e facilidades do que a vida oferecia ao meu camarada Jacinto.»
Eça de Queiroz, Civilização (1892)
«O meu amigo Jacinto nasceu num palácio, com cento e nove contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival. No Alentejo, pela Estremadura, através das duas Beiras, densas sebes ondulando por colina e vale, muros altos de boa pedra, ribeiras, estradas, delimitavam os campos desta velha família agrícola que já entulhava grão e plantava cepa em tempos de el-rei D. Dinis. A sua quinta e casa senhorial de Tormes, no Baixo Douro, cobriam uma serra. Entre o Tua e o Tinhela, por cinco fartas léguas, todo o torrão lhe pagava foro. E cerrados pinheirais seus negrejavam desde Arga até ao mar de Âncora. Mas o palácio onde Jacinto nascera, e onde sempre habitara, era em Paris, nos Campos Elísios, n.º 202.»
Eça de Queiroz, A cidade e as serras (1901)
Se nos perguntarmos até quando os escritos do passado serão imortais se deixarem de ser lidos, a resposta só pode ser dada pelas leituras/releituras efetuadas no presente. Uma recente série televisiva transmitida pela RTP levou-me a revisitar as cenas da vida devota do padre Amaro, compostas no início da carreira literária do introdutor do romance realista entre nós. Uma polémica descabelada centrada na trasladação dos restos mortais de Eça de Queiroz para o Panteão Nacional, trouxe-me ao convívio d'A cidade e as serras (1901), a tal «novela fantasista» publicada postumamente pela Lello & Irmão, com o contributo editorial de Ramalho Ortigão e Luís de Magalhães na decifração e revisão do manuscrito deixado inédito pelo amigo.
Regressar a esta título concreto é regressar também aos bancos do secundário e ao estudo do cânone oficial então vigente. Recordo-me que deste autor só era permitido aceder à história exemplar do empedernido amante das tentações citadinas gaulesas que se convertera à excelência das serranias lusitanas. Um conveniente aproveitamento do luminoso beatus ille* horaciano humanista do Renascimento transferido de mão beijada para o teatro de operações salazaristas do Estado Novo. Surpreendentemente, ao abrir o volume que guardo da obra, apercebi-me nunca o ter lido até então. Abrira-lhe cuidadosamente as folhas dobradas dos cadernos cozidos no livro com um adequado corta-papel e deixara-o por sublinhar e livre de qualquer tipo de anotações. A viagem pelo seu interior revelou-me, então, que na escola onde cursara o ensino básico o/a docente se limitara a abordar a versão reduzida da parábola novecentista contida na Civilização (1892), um conto duma vintena e meia de páginas publicado avulso na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro. Melhor economia seria difícil de encontrar.
Poucas diferenças separam a trama contada da novelada, assentes num ou noutro pormenor de percurso e na natural de ampliação de quatro para dezasseis capítulos a que foi submetida. Em ambos os casos, o testemunho pessoal do amigo íntimo do protagonista reparte-se equitativamente pelos dois espaços cénicos anunciados no título do livro impresso. No palácio de Paris, os moderníssimos conferençofones, teatrofones, gramofones, fonógrafos e telégrafos são referidos e exaltados à exaustão, para logo de seguida serem apontados em contraponto os desastres humilhantes das torneiras dessoldadas, dos elevadores emperrados, dos vapores encolhidos e da eletricidade sumida. No solar de Tormes, todos os contratempos citadinos se esvaem perante a simplicidade bucólica das serranias durienses. A densa névoa de tédio, os ocos bocejos de fastio e o embaraço de viver do supercivilizado Jacinto desaparecem mal pisa as terras de singela tranquilidade campestre e mergulha na idílica paisagem-berço dos seus avoengos, cujas ossadas se prontificara tresladar para a nova capela da Carriça. Em boa hora se mudara da cidade de exílio para a serra ali, onde acabará por se casar, gerar filhos e ser feliz. O happy end supremo a que poderia aspirar.
Lidos/relidos os livros, realço o episódio do peixe famoso da Dalmácia encalhado no elevador dos pratos do Palácio dos Campos Elísios, n.º 202 em Paris, o único que recordo com alguma precisão do meu contacto juvenil com a obra contada/novelada em ambiente escolar. Creio que, nos dias de hoje, juntarei às minhas memórias vindouras a ironia/sarcasmo do autor no relato minucioso os preparativos para o translado fúnebre dos restos dos Jacintos de Tormes para um novo jazigo erigido à sua importância senhorial. Terei ocasião de voltar a estas páginas de Eça de Queiroz quando os seus próprios despojos mortais forem depositados na antiga igreja de Santa Engrácia em Lisboa. As controvérsias familiares já por aí andam há algum tempo. Aguardemos então o desfecho das guerras de alecrim e manjerona, sigamos atentamente o decorrer dos eventos e imaginemos o riso do glorificado ao papelão desempenhado por alguns dos seus bisnetos e outros tantos figurantes subalternos de segundas águas na facécia funerária representada ao vivo nos nossos dias.
NOTA
(*) - «Beatus ille qui procul negotiis, | ut prisca gens mortalium | paterna rura bobus exercet suis, | solutus omni faenore, | neque excitatur classico miles truci | neque horret iratum mare, | forumque vitat et superba civium | potentiorum limina.» Horatius, Epodi, 2,1 (30 AEC)
«Feliz é aquele que, longe dos negócios, | Como a antiga raça dos homens, | passa o tempo a trabalhar nos campos do pai com os seus próprios bois, | livre de todas as dívidas, | e não acorda, como o soldado, ao ouvir a trombeta sangrenta da guerra, | nem ele tem medo da ira do mar, | ficando longe do fórum e dos limiares arrogantes | de cidadãos poderosos.» Horácio, Épodos 2,1 (30AEC)