Danuta Wojciechowska, Lenda da noite de São Silvestre (2007) |
EPÍGRAFEMe ha acontecido a veces al afirmar que, si la ciencia de la cultura adoptara los métodos y el lenguaje de la química, sólo iba a descubrir, en el vivo conjunto por la cultura formado, dos «Cuerpos» simples: Grecia y Portugal. Grecia, sím-bolo del espíritu de lo clásico; Portugal, símbolo del espíritu,— que no es logos [razão], pero nous [espírito]— de lo barroco. Y el resto, cuestión de dosis.Eugénio d'Ors, El Barroco (1933)
Helénicas & Lusitanas
A afirmação que pedi emprestada a Eugenio d'Ors como epígrafe é contestada por muitos críticos, mas, o ter sido escrita em espanhol por um grande vulto da cultura catalã sabe muito bem ao nosso ego português de ouvir. Deixando de lado o enfoque contrastivo entre o barroco e o clássico para mergulhar nos domínios da arte em geral, aqueles em que as técnicas geradas pela criatividade humana se aplicam à variedade estética da linguagem, incluindo a verbalização escrita e oral, como poderá ser a nascida no seio da singularidade helénica antiga e atualizada pela imaginação tradicional lusitana.
Busquemos a ligação ancestral desses dois corpos simples num velho relato que Platão desenvolve no Timeu e Crítias. Refere-se ali à Atlântida, uma ilha-continente situada para além das Colunas de Hércules que terá desaparecido do noite para o dia há cerca de 9600 anos. Os eventos chegaram-lhe aos ouvidos inseridos numa longa cadeia de transmissão oral, iniciada por um sacerdote egípcio de Salís, que o confiou a Drópis e este ao avô de Crítias. De boca em boca, os ecos dum desastre natural remoto ganham pouco a pouco o contorno mítico dum castigo dos deuses aos pecados dos homens.
A ambição alentada pelos atlantes de desafiar os céus e conquistar o mundo despertou a ira do Olimpo. No mito platónico, os validos de Poseidon são derrotados pelos pupilos de Atena e a sua arrogância é afogada para sempre nas águas profundas do grande Mar Oceano. Na versão lendária madeirense, a Virgem Maria ouve as palavras piedosas de São Silvestre e oferece aos mortais a possibilidade de se remirem da sua altivez. A última noite do ano deveria assim marcar a fronteira entre o passado e o futuro, dando a todos a esperança duma vida melhor, afastada para sempre dos erros outrora cometidos.
Das lágrimas de pesar derramadas pela mãe do salvador cristão no exato local onde perecera a Atlântida, surgiria a afortunada ilha da Madeira, por todos conhecida como Pérola do Atlântico. Em honra do papa que patrocinara o nascimento miraculoso do arquipélago oceânico, comemora-se todos os anos a Noite de São Silvestre, a assinalar a passagem do ano velho para o ano novo. E o fogo de artifício lançado a dar as boas vindas ao Ano Bom aí está também a lembrar as pérolas sagradas vertidas pela Virgem Maria. E assim a lenda filosófica helénica se tornou numa lenda etiológica lusitana.