26 de fevereiro de 2024

A maçã-de-elefante, bolsa-de-pastor ou fruta-cofre da árvore das patacas

DILLENIA INDICA

Contam as histórias com história que a lenda da árvore-das-patacas terá nascido no hemisfério sul, após a debandada da Corte Lusitana para Terras de Vera Cruz. A crença na existência duma árvore capaz de dar frutos repletos de moedas anda associada à dillenia indica, speciosa ou elongata, planta oriunda das Índias Orientais introduzida nas Índias Ocidentais durante a vigência da política imperial botânica dos Bragança. A particularidade que celebrizou essa espécie reside no facto das suas pétalas se fecharem sobre o centro das flores para produzir o respetivo fruto. 

Com o propósito de ministrar uma formação pedagógica adequada para o herdeiro, D. João VI ter-se-á aproveitado das propriedades insólitas da dilénia índica, colocou uma moeda de pataca numa das suas flores para que gerasse a maçã-de-elefante, bolsa-de-pastor ou fruta-cofre da árvore-do-dinheiro ou das patacas. Ao que parece, mais tarde D. Pedro de Alcântara terá usado com sucesso esse subterfúgio para desfazer os sonhos desmedidos de riqueza fácil dos súbditos reais de Portugal e imperiais do Brasil com resultados visíveis ainda nos nossos dias.

A árvore das patacas saiu dos jardins do palácio imperial brasileiro, varou o largo mar oceano e alojou-se de armas e bagagens na selva do partidarismo mediático português em véspera de eleições. Vestiu a roupagem do despudor atrevido e pôs-se a prometer mundos e fundos para resolver todos as crises atávicas que por aí vão pululando. Terá descoberto não se sabe muito bem onde uma nova fazedora vegetal de fundos capaz de cobrir todos os sufocos, um feliz pomo de ouro colhido no Jardim das Hespérides a trocar as velhas patacas há muito tempo caídas em desuso.

20 de fevereiro de 2024

Crónica das crónicas em pedra grés

«Numa das minhas tentativas de comer um hambúrguer no pão com elegância social, numa hamburgueria junto ao Campus da Penha da Universidade do Algarve, tive a companhia de um colega com o qual almoço regularmente. A nossa conversa fluía, enquanto elegantemente tragávamos os hambúrgueres, sobre a construção da personalidade e a existência de Deus. O meu amigo revelou como a Servidão humana de W. Somerset Maugham tinha sido essencial na sua rejeição de Deus. Relatou-me com emoção a cena em que o Philip Carey (figura central do romance) reza a Deus, com toda a sua fé, para acordar no dia seguinte curado da deficiência física com que nascera (com um pé boto). Ao confrontar-se com a eternidade das limitações impostas pelo seu corpo, o jovem descobre que a normalidade é a coisa mais rara do mundo e apaixona-se pela arte e pela literatura. Como referia o meu colega, os romances conseguem responder às nossas inquietações, às inquietações de juventude e de idade adulta.»

O meu amigo e colega António Guerreiro lançou este fim de semana na Fnac da Guia as suas Crónicas em pedra grés (2023), uma seleta de cem olhares diferentes do nosso olhar de todos os dias sobre o mundo, publicados no jornal Terra Ruiva de Silves nos últimos vinte anos. Assisti à apresentação acompanhado de um conjunto de companheiros das lides académicas que atualmente só revejo em situações muito especiais como esta. De todos esses reencontros ocasionais, destaco o da Teresa Maló Sequeira, a moderadora da sessão, também ela parceira de práticas letivas que já tivera como aluna duma licenciatura em educação. Faço-o pela forma dinâmica como conduziu a apresentação do autor-obra, como promoveu a partilha de diálogos entre todos os participantes e contribuiu para o sucesso da iniciativa.

Ainda não li com olhos de ler a totalidade de testemunhos de vida vividos aqui coligidos. Fá-lo-ei na devida altura, sem pressas nem sobressaltos. Uma leitura em diagonal pelo índice remeteu-me para alguns temas que na época da escrita havíamos comentado, regra geral à hora de almoço dum qualquer restaurante das imediações do local de trabalho. Não os vou comentar aqui. Ultrapassaria em muito a dimensão duma única folha A4, o tamanho adequado para um texto desta natureza. Abrirei uma excepção para aquela que transcrevi parcialmente na epígrafe, pelo simples facto de ser o protagonista do episódio relatado e trazido ao domínio público.

A «Servidão», assim se chama a tal crónica destacada nesta crónica de crónicas, está repartida por dois momentos tidos a curta distância de espaços e tempos. O primeiro ocorreu na Hamburgueria da Baixa, sito próximo do Campus da Penha. Lembro-me de ter então pedido um Escangalhado, cujo nome já anuncia as dificuldades acrescidas do seu manuseamento, sobretudo para quem alguma dificuldade para lidar com esta sandes super-recheadas de proteínas animais, alguns vegetais avinagrados e uma profusão de molhos coloridos servidos à vontade e apetite do freguês. Uma companheira de repasto elucidou-nos a esse propósito o modo expedito como resolvera o problema, ou seja, com o mero recurso à faca e garfo. Assim o fizemos também nós os dois e saiu-nos às mil maravilhas. Uma originalidade banal, mas elegante e eficiente.

A segunda parte foi representada a dois num café local que servia uns pratos simples à hora do almoço e cujo verdadeiro nome me escapou completamente. Conhecíamo-lo pelo Vermelhinho, a cor dominante naquele espaço simpático e ambiente familiar que a austeridade de memória da troika fechou e o confinamento imposto pelo covid-19 impediu de reabrir. A temática da personalidade e existência de deus ter-nos-á surgido por um qualquer motivo que agora me escapa. Em contrapartida, a alusão à Servidão humana de Somerset Maugham é fácil de apontar pela parte que me toca. Trata-se, aliás, dum dos livros da minha vida, como  referi várias vezes aqui neste espaço e me escuso de repetir. Sem me querer alongar muito no assunto, direi que passados os verdes anos e instalado na geração grisalha, mantenho as opiniões então proferidas. De facto, certos juízos que quando se traçam são difíceis de alterar ou impossíveis de afastar.     

13 de fevereiro de 2024

Risos, sorrisos e risadas de carnaval

Le Carnaval des Animaux : Verbier Festival / VF Kids Zon
« Je suis en train de perpétrer une vaste composition pour le Mardi-Gras proc-hain. Je n’ai plus que le final à écrire. Quatorze numéros ! Vous me direz que je ferais bien mieux de travailler à ma symphonie. Vous avez raison, cent fois rai-son, mais c’est si amusant ! »

Na primeira década de viragem de milénio, assisti a uma série de cursos breves promovidos pela Biblioteca António Ramos Rosa e Fundação Calouste Gulbenkian. No encontro dedicado à «Música Românica», falou-se de raspão nos Péchés de vieillesse (1857-1868) de Rossini e de se poder inserir o Duetto buffo di due gatti (1825) nessa coletânea, pese embora o facto de se basear em parte na ópera Otello (1816) e no contributo doutros autores. Polémicas à parte, os miaus cantados em termos líricos não mereceram a aprovação duma participante sentada ali ao meu lado. A seu ver, a música erudita só tinha a perder se se misturasse com a popular. Na altura fiquei sem palavras ou não quis dizer nenhuma. Cada um deve ficar com os lugares-comuns com que sente feliz.

Suspeito que a apreciação da minha vizinha de auditório seria muito semelhante se confrontada com os miaus introduzidos por Mozart no «Nun, liebes Weibchen», caso se tivesse abordado esta ária da ópera Der Stein der Weisen, oder die Zauberinsel (1790), atribuída pelos especialistas da arte de associar sons a Mozart, que a terá composto em parceria com outros vultos então conhecidos do meio musical vienense já contaminado pelas estéticas pré-românticas europeias. Intuitos maldosos à parte, presumo que a sonoridade do nome do criador desta «Pedra Filosofal ou Ilha Mágica» tivesse um peso superior ao do criador do «Dueto bufo dos dois gatos». É que, quer se queira quer não, o prestígio melómano de Mozart parece ganhar aos pontos à faceta jocosa  de Rossini.

Na visão dada por Saint-Saëns na suíte instrumental Le carnaval des animaux (1886) uma clara ausência de miados, rugidos, zurros, bramidos ou chilreios violadores da ordem clássica imposta pelos ditames canónicos da harmonização académica. Dizem os registos que até nós chegaram ter o musicista gaulês sido criticado por ter comprometido o remate da Troisième symphonie ao votar-se a uma fantasia zoológica de menor dimensão artística. Sem se opor a essa opinião, o compositor justificou-se com o caráter divertido da tarefa. Censuras à parte, expressou a ideia de serem os risos, sorrisos e risadas carnavalescas, provas provadas de alegria, deleite e prazer, numa clara afirmação de ser adequado a uma terça-feira gorda ou a todos os demais dias do ano ou géneros musicais.

8 de fevereiro de 2024

André Belo, histórias de Marco Tulio Catizone, o rei Sebastião de Veneza

« Pour qui a grandi dans le " roman national " portugais, le roi Sébastien est un des monarques les plus connus d'une longue lignée. C'est un personnage d'envergure proverbiale, présent dans des romans, des chansons ou des histoires tentées d'ironie, comme celle qui évoque son retour à Lisbonne par un matin brumeux sur l'estuaire du Tage. Cette intimité collective avec le nom d'un roi ayant régné il y a quatre-cent cinquante ans vient du rôle historique de celui-ci dans la fin de la dynastie des Avis mais, surtout, de l'investissement mythique dont il a été l'objet au fil des siècles. »
André Belo, Le roi Sébastien de Venise (2023)

El-Rei Dom Sebastião (1574-1578) é de longe um dos mais populares monarcas portugueses. Nasceu órfão de pai e foi abandonado pela mãe aos quatro meses de vida. Subiu formalmente ao trono com três anos de idade e tomou as rédeas do poder aos catorze. Morreu sem honra nem glória com vinte e quatro em Alcácer-Quibir, para onde partira solteiro e sem descendentes declarados que o substituíssem à frente dos destinos do reino que queria universal e acabaria absorvido pelo império castelhano do tio. Esta a história que contam os manuais de história oficiais. A versão tradicional que seguiu o seu destino trágico no Norte de África trilhou todavia os sendeiros que propiciariam a gestação do mais consistente e duradouro mito/contramito da cultura nacional, o Sebastianismo. Aquele que fora apelidado o Desejado, passou a ser designado o Encoberto. O malogrado neto de Dom João III e Carlos V, o sobrinho de Filipe II, teria sobrevivido ao desastre marroquino e andaria por aí perdido à espera do melhor momento para se revelar como o senhor legítimo dos desígnios lusitanos.

A desdita do último cavaleiro cruzado com vocação messiânica dos tempos modernos atravessou fronteiras e conquistou os principais géneros/subgéneros da criação artística e ensaística. Foi cantado e representado nos palcos líricos e dramáticos, lido e recitado nas epopeias em verso e em prosa, foi estudado comentado um pouco por todo o lado à escala local e global. Por mais duma vez, as andanças académicas, os impulsos da curiosidade ou os apelos do puro lazer levaram-me a privar com uma ou outra dessas obras. A última a chegar à minha presença foi-me enviada de Rennes por uma amiga de longa data, que a viu exposta com grande destaque numa livraria central da capital da Bretanha. Trata-se da versão francesa da tese de André Belo, Morte e ficção do Rei Dom Sebastião (2021), publicado pelas Éditions Chandeigne, com o título bem mais sugestivo de Le roi Sébastien de Venise, histoire d'une rumeur (2023). Li-o de cabo a rabo com o espanto sempre estampado no rosto à medida que ia tomando conhecimento desses tais rumores desenvolvidos nas três centenas de páginas do livro. À distância de quatro séculos e meio de devir histórico, torna-se particularmente difícil entender o modo como as pretensões do «Rei de Veneza» acolhessem tantos partidários, apesar da manifesta fragilidade dos argumentos apresentados em sua defesa.

A recusa de aceitar a morte do jovem paladino da cristã em terra de mouros, o filho de príncipes e neto de reis e imperadores, levou os súbditos fiéis a acalentarem a tese que estaria vivo e se refugiara num local seguro, de onde galoparia num cavalo branco, numa manhã de nevoeiro, para recuperar o reino que lhe fora arrebatado. De pouco serviu aos incrédulos o reconhecimento do corpo do soberano logo após a batalha e a sua trasladação de Alcácer-Quibir para Ceuta (1578) e Lisboa (1582), onde ainda hoje repousa num mausoléu monumental erigido no Mosteiro dos Jerónimos (1682). A lenda do Adormecido começa a ganhar forma, encorajando os mais audazes a darem asas à imaginação e a converterem-se num ápice no providencial messias salvador que regressava aos seus domínios europeus e resgatar para a Casa de Avis trono arrebatado pelos Áustrias Castelhanos. A História regista as pretensões de quatro desses aventureiros, conhecidos por Rei de Penamacor (1584), Rei da Ericeira (1585), Rei do Madrigal (1590) e Rei de Veneza (1598-1603). É deste último, precisamente, que trata o volume agora dado à estampa e aqui trazido à baila.

Marco Tullio Catizone, o legítimo nome do falsário calabrês, sustentou a sua pretensão durante cinco longos anos. Os primeiros rumores começaram a surgir nas vésperas da morte de Filipe II de Castela e conheceram o seu desfecho espectável um quarto de século após o insucesso trágico da Batalha dos Três Reis. De fantasia em fantasia, de prisão em prisão, de processo em processo, a confissão obtida sob tortura confirma a acusação do crime de lesa-majestade, cometido por usurpação de identidade, falsificação de assinatura e insígnias reais, ditando a amputação da mão direita, a execução na forca, o esquartejamento e a exposição pública da cabeça e do membro decepado. Mais uma vez e após a leitura exaustiva de todas as peripécias aliadas à fraude sebástica, torna-se particularmente difícil de entender que as diferenças físicas detetadas, a incompetência linguística do português e a ausência duma memória credível tenha tido tão pouco peso no desmascaramento imediato do embusteiro. Outros tempos, outras vontades, outros interesses políticos jogados à escala das potências hegemónicas de então. Os pormenores mais recônditos deste episódio insólito vivido na passagem da centúria de quinhentos para a de seiscentos são minuciosamente dissecados pelo espírito académico de André Belo, cujos resultados registados em livro poderão ser consultados em dois idiomas recentemente publicados. Aproveitemo-los se, de facto, a matéria tratada continuar a povoar o nossos imaginário individual e coletivo.

Marco Tullio Catizone
[Madrid - Museo del Prado]

« Le faux Sébastien était un homme originaire de Calabre, identifié à partir du procès de Naples sous le nom de Marco Tullio Catizone; s'il a avoué son nom devant le vice-roi de Naples et lors du procès de Sanlúcar, il est à chaque fois revenu sur ses aveux. Pourtant, il ne ressemblait pas au roi Sébastien, sa mémoire était lacunaire et il maitrisait très mal la langure portugaise.»
André Belo, Le roi Sébastien de Venise (2023)

2 de fevereiro de 2024

Cadeira, sede e cátedra

 SĒDĒS  ΚΑΘΈΔΡΑ 
[Cadeira de D. José Manoel da Câmara, 2.º Cardeal Patriarca de Lisboa]

Sés & Catedrais

Se alguma vez nos perguntarmos qual o tamanho mínimo exigido a uma igreja cristã para deixar de se chamar e ascender à categoria de Catedral, a resposta é fácil de dar. As sés e as catedrais não se medem a palmo, a passo ou a metro. Basta possuírem uma cadeira para o bispo, o arcebispo ou o patriarca se sentarem. quem lhe chame trono, mas basta chamar-lhe cadeira ou, se preferirmos, recorrermos às etimologias clássicas de «sede» (< lat. sēdēs) ou «cátedra» (< gr. καϑέδρα), e daí a derivação para Sé e Catedral. Escusado será dizer que a associação Sé-Catedral, muitas vezes usada, se torna inútil por redundante.

O tamanho das palavras tem muito pouco ou nada a ver com a dimensão das entidades a que se referem. Por definição e enquanto unidades linguísticas, são arbitrárias, convencionais e imotivadas. A dimensão das sés/catedrais portuguesas deve-se a fatores de ordem estética e espaçotemporal. A localização periférica do país face ao eixo central europeu fez com que a arte gótica tenha chegado ao seu extremo ocidental quando as sedes diocesanas já tinham sido erigidas segundo os padrões da arte românica. A grandiosidade das Domus Dei de além-Pirenéus é transferida para os mosteiros e abadias que por aqui se foram construindo.

A originalidade das nossas sés/catedrais medievais está intimamente associada ao período histórico vigente à data da sua edificação. A designada Reconquista Cristã Peninsular (718-1492) condicionou o levantamento arquitetónico secular e religioso do Reino, bem patente nas igrejas-fortaleza que lhes serviram de modelo como sedes episcopais então criadas ou restauradas. A robustez românica das torres, muralhas, ameias, merlões e seteiras bélicas a substituir a fragilidade gótica das flechas, rosáceas, vitrais, varandins, janelões artísticos. E assim se juntou o útil ao agradável, como diz o ditado que a verdade dos séculos lá vai confirmando.

Sé Velha de Coimbra
[Igreja-Fortaleza]