Laterais: folhas de rosto d'Os Lusíadas (1572 ) e das Flores de Música (1620) Centro: gravura alemã dos «Jerónimos» (1650) e «Painel do Infante» (c. 1450) Inferior: anotação musical dum Tento de Manuel Rodrigues Coelho |
TESE MARÍTIMA«A força atrativa do Atlântico, esse grande mar povoado de tempestades e de mistérios, foi a alma da Nação e foi com ele que se escreveu a história de Portugal.»Jorge Dias, Os elementos fundamentais da cultura portuguesa (1950)
Espinhosa tarefa essa de estabelecer os elementos fundamentais duma determinada cultura, sobretudo se se referir a uma realidade multissecular como é o caso da nossa. Jorge Dias ousou fazê-lo em 1950, quando apresentou no I Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, realizado em Washington, uma tese subordinada a essa temática na secção de antropologia cultural. Identificou as dificuldades sentidas e centrou o resultado do seu trabalho na força atrativa do grande mar oceano, exercida desde na configuração da personalidade-base do país, que sintetiza em quatro pilares ou formas de pensar do génio criador português e canaliza para a criação literária, arquitetónica, pictórica e musical. Ei-los.
O edifício identitário nacional tem como suporte poético máximo Os Lusíadas (1572) de Luís de Camões. Assente nos dez cantos de oitavas decassilábicas, a grande viagem de descoberta do caminho marítimo para a Índia justifica perfeitamente a linha central de raciocínio seguido pelo etnólogo na sua comunicação. Vasco da Gama é erguido à categoria de herói épico, desenhado à maneira dos seus antecessores gregos e romanos, assume o comando da expedição, encarrega-se de relatar aos seus anfitriões orientais as glórias pretéritas do povo luso por si representado e prepara naquele tempo histórico ali vivido a revelação antecipada das muitas glórias vindouras a efetuar nos quatro cantos da terra e do mar.
A celebração das expedições às terras dos Algarves, Guiné, Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, feitas nos mares oceanos ocidentais e orientais no período áureo das navegações, encontra-se exaltado em pedra no Mosteiro dos Jerónimos (1501-1601), entendido como padrão comemorativo da expansão marítima global efetuada sob a égide da Casa de Avis. Os elementos evocativos dos novos mundos visitados encontra-se copiosamente representada no complexo monumental de Belém, rendido ao manuelino então predominante e replicada em muitos outros edifícios de traça sacra e civil dessa e doutras épocas. É o caso dos túmulos escolhidos pelo revivalismo romântico para os túmulos do poeta e navegador festejados ali sepultados.
A ereção da ilustre casa lusitana prossegue com o Políptico (c. 1470) de Nuno Gonçalves, atualmente exposto nas Janelas Verdes no Museu Nacional de Arte Antiga. A eleição desta obra paradigmática da cultura portuguesa deve-se ao facto de no designado painel do Infante se encontrar a alegada figura de D. Henrique, o grande impulsionador da política das viagens marítimas, por isso mesmo cognominado o Navegador. Tudo seria perfeito se se desse o caso do enigmático homem do chapeirão ser o elemento mais famoso da Ínclita Geração. Polémicas à parte, parece não caber dúvidas que o Senhor de Sagres se encontra representado numa das tábuas quatrocentistas. Soluções alternativas credíveis não faltam.
O mais intrigante pilar indicado pelo conferencista na capital federal dos Estados Unidos da América, em meados do século passado, assenta nas Flores de Música (1620) de Manuel Rodrigues Coelho. A questão que de imediato se coloca é detetar a presença do mar nos Tentos para órgão, cravo e arpa ali coligidos pelo mestre de capela alentejano das catedrais de Badajoz, Elvas e Lisboa. A resposta só se poderá obter através da audição atenta das peças e à visão das respetivas partituras. A sucessão de subidas/descidas presentes nas composições perfeitamente visíveis na ondulação sistemática das notações musicais orientadoras da execução/navegação harmoniosa das melodias instrumentais ali desenhadas com engenho e arte.
À distância de sete décadas e meia de ter sido proferida, a tese marítima de Jorge Dias continua a ser editada, lida e comentada nos nossos dias. Mantém-se atual, apesar de não poder ser entendida dogmaticamente como uma constante perene da cultura portuguesa. A presença do mar foi muito discreta nos períodos limítrofes do Renascimento-Maneirismo-Barroco que moldaram a nossa idade dourada. Desempenhou um papel muito discreto nos tempos medievais e assim permanece nos contemporâneos. Outros pilares teriam de ser evidenciados, na certeza, porém, de se encontrarem forçosamente na sombra dos traçados pelo espírito criador lusitano do nosso devir histórico pretérito a apontar para o vindouro.
Jorge Dias, Os elementos fundamentais da cultura portuguesa. Lx: INCM, 1950 |
Não conhecia. Fico grato ao meu estimado amigo Artur, por abrir mais esta perspectiva da lusitanidade!
ResponderEliminarMuito interessante.
ResponderEliminarDesconhecia, claro.
A tese marítima é antiga e polémica, pelo que já caiu um pouco no esquecimento. Pessoalmente, acho-a interessante, mas, de forma alguma, uma constante da nossa cultura.
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