18 de março de 2016

Michel Houellebecq, as cumplicidades dialéticas do mapa e do território

« Le contraste était frappant : alors que la photo satellite ne laissait apparaître qu’une soupe de verts plus ou moins uniformes parsemée de vagues taches bleues, la carte développait un fascinant lacis de départementales, de routes pittoresques, de points de vue, de forêts, de lacs et de cols. Au-dessus des deux agrandissements, en capitales noires, figurait le titre de l’exposition : "LA CARTE EST PLUS INTÉRESSANTE QUE LE TERRITOIRE" »
Michel Houellebecq, La Carte et le Territoire (2010)
Ouvi falar pela primeira vez de Michel Houellebecq meia dúzia de anos a propósito d’O mapa e o território (2010) e dos ecos que até nós chegaram da atribuição polémica do Prix Goncourt à obra. O nome do autor ficou-me no ouvido, até pela sonoridade algo exótica que o acompanha e pela forma singular de o registar. Umas férias de verão projetadas para Rennes aconselharam-me a aguardar para então a sua aquisição in loco. Fi-lo na livraria Le Failler da rua Saint-Georges. Veio acompanhado dos restantes romances publicados. Cu-riosamente, agora acabei de lê-lo, de cabo-a-rabo e num-só-fôlego. Em último lugar. O proveito e deleite experimentado em anteriores viagens repetiu-se.

O argumento central da história é revelado na contracapa da edição de bolso que tenho entre mãos. Especula-se aí que se o relato tivesse sido confiado ao protagonista, Jed Martin, este tê-lo-ia iniciado pelas peripécias associadas à avaria do esquentador do apartamento parisiense em que vivia à época. Falaria depois do pai arquiteto e das inúmeras consoadas solitárias de Natal que celebravam juntos. Referir-se-ia, também, ao seu primeiro encontro com Olga, uma beldade russa que encontrara na primeira exposição fotográfica que fizera a partir dos mapas rodoviários publicados pela Michelin. Tudo isto a anteceder o sucesso mundial que viria alguns anos mais tarde a obter com um conjunto de retratos a óleo de figuras públicas de renome internacional, entre as quais a do escritor Michel Houellebecq. Mencionaria, ainda, a ajuda preciosa que prestara ao comissário Jasselin para desvendar os enigmas dum crime cometido com grande atrocidades e com repercussões mediáticas. O resumo termina aí impedindo-me de prosseguir a análise abusiva dos fios da trama urdidos no texto. Vistas bem as coisas, o esquema autobiográfico sugerido na paráfrase corresponde ipsis verbis ao seguido na versão original parafraseada. Brincadeiras publicitárias que apetece consignar para que constem.

Lidos os livros que compõem o corpus em apreço do criador de situações possíveis dos nossos dias e dos vindouros, sinto-me apto a considerar o derradeiro da lista visitada em ordem acrónica como o mais tranquilo de todos. As temáticas da arte, dinheiro, amor, morte, trabalho, turismo, família já abordadas de modo recorrente nas restantes ocasiões voltam a ser chamadas à colação sem os exageros discursivos com que se habituou a brindar os consumidores da sua escrita. Assinadas as tréguas com o mundo envolvente, o plano escolhido para alimentar hipotéticas celeumas na república das letras assentou arraiais na já aludida presença do autor na tessitura narrativa, com estatuto de coprotagonista duma das suas sequências mais surpreendentes, a descrição física e psíquica completa do próprio Houellebecq feita pelas mãos do sujeito de enunciação interna dos factos narrados. Verosímeis na sua quase totalidade, ficcionados na exposição mórbida da antecipação do seu próprio assassinato, enterro e testamento, efetuada na qualidade de personagem imaginada por uma personalidade real homónima. Oportunidade de dialogar consigo mesmo no interior da fábula no momento preciso da sua conceção. Fantasias existenciais que só o faz-de-conta gerado pela literatura torna possível.

Estratégias de autopromoção garantidas à parte, a verdade é que o fabricante de imagens disfóricas pintadas com palavras tem o condão de nos prender à magia dos sentidos segundos nelas contidos. Só conseguimos parar na presença inevitável do postreiro diacrítico de pontuação grafado na folha de papel que lhe serve de canal. E pomo-nos a conjeturar a configuração dos próximos projetos romanescos a animar uma qualquer rentrée literária e a alimentar o número potencial de bestsellers edificados à escala global. Oportunidade de promover o debate generalizado das principais questões que povoam a nossa realidade quotidiana e ajudam a traçar o verdadeiro perfil da condição humana. Caricatural, absurda, paradoxal. E o problema da eutanásia até pode ser chamado a pisar de novo as tábuas da ribalta. Incómodo, amargo, desagradável. A velhice a atravessar-se-nos neste nosso mapa e território feito por medida para a eterna juventude com anseios de eternidade. Eutopias virtuais transformadas em distopias reais por artes de berliques e berloques magistralmente executadas e postos à nossa inteira disposição. Verdadeiro segredo gritado aos sete ventos para todos aqueles que tiverem bom ouvido e estiverem preparados para ouvi-lo.

3 comentários:

  1. Tenho mesmo que me aventurar pela escrita de Michel Houellebecq!

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  2. Curiosa coincidência, acabei de ler este livro há três dias atrás. É efectivamente o mais tranquilo (e talvez universal) livro de Houellebecq, mas é talvez o mais solitário e aquele em que há menos esperança e fé na felicidade - embora torturando-se a si próprio (literalmente), ele poupa mais os seus leitores do que habitualmente....
    Gostei muito e recomendo.

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  3. Mais uma sugestão avalizada que muito agradeço, Prof. ... a deixar antever a escrita intensa e reveladora de questões importantes da sociedade humana que o autor denuncia com primor.

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