25 de novembro de 2019

Eugène e as histórias peregrinas do rinoceronte Ganda e do cornaca Ossem

« C'est l'histoire d'un rhinoceros admiré par un sultan et deux rois. Un pachyderme qui a fait le tour du monde et qui a été dessiné par un des plus grands artistes de tous les temps ! Cette histoire se passe il y a fort longtemps : 1515. En ce temps-là, l'Europe explore le globe. L'Inde, cette contrée lointaine et mystérieuse, fascine particulièrement les navigateurs. »
Eugène, Ganda (2018)
Quando em 1488 Bartolomeu Dias dobrou o cabo da Boa Esperança, acabava de abrir as portas à rota das especiarias muito almejada e que Vasco da Gama traçaria em 1498. Portugal dava assim os primei-ros passos como potência marítima hegemónica e pioneiro da globali-zaçãoOs monarcas da Casa de Avis foram exímios nos expedientes diplomáticos de dar visibilidade ao poder político, económico e cientí-fico que então detinham. A oferta aos grandes potentados europeus de exemplares exóticos da flora e da fauna provenientes dos novos domínios integrados na Coroa foi um deles. Os elefantes e rinoceron-tes levaram a palma a todos os demais. A lista é vasta. Alguns torna-ram-se protagonistas de ficções de sucesso editorial garantido. José Saramago contou-nos as peripécias vividas por Salomão n'A viagem do elefante (2008), o paquiderme que D. João III enviou ao sobrinho, o Arquiduque Maximiliano da Áustria. Catherine Clément revela nas Dix mille guitares (2011) as memórias autobiográficas do rinoceronte Bada de D. Sebastião, para nos darem conta das suas deslocações insólitas pelo velho continente, que o levariam às cortes de Filipe II de Espanha, Rodolfo II da Alemanha e Cristina da Suécia.

O filão foi aproveitado recentemente por Eugène Meltz, dramaturgo e romancista romeno estabelecido no cantão suíço de Vaud, quando se propôs contar a história de Ganda (2018), o rinoceronte indiano que D. Manuel I integrara na embaixada enviada em 1516 ao papa Leão X. Apesar de ter obtido um sucesso relativo nos países francófonos, a crónica ficcionada de sucessos acontecidos encontra-se ainda por traduzir noutros idiomas, o que torna a sua divulgação internacional particularmente reduzida, como será o caso do mundo lusófono onde grande parte da ação decorre. A notícia do livro foi-me dada por uma amiga bretã de longa data que o vira numa livraria de Rennes e mo ofereceria pouco depois em Florença, como prenda muito especial de aniversário. As voltas que um texto literário dá até se entregar de braços abertos a quem o quer receber. E aqui o tenho entre mãos à espera que revele as minhas impressões de leitura.

Distinguem-se os cronistas dos romancistas nos recursos seguidos para manter viva a memória coletiva dos povos. Os primeiros engran-decem/menosprezam os eventos ocorridos, segundo os interesses estratégicos dos reinos e repúblicas envolvidas no relato. Os segun-dos servem-se a seu bel-prazer dos dados recolhidos nos anais oficiais e adaptam-nos ao sabor da pena, para cabal deleite do leitor e proveito do autor. A objetividade ilusória do registo estatal dá lugar à subjetividade real do escrito literário. A odisseia do rinoceronte diplo-mata inicia-se em Goa e termina abruptamente no golfo de Génova, com passagem efémera por Lisboa. Depois de ter vencido as águas oceânicas do Índico e do Atlântico, soçobra nas águas marítimas do Mediterrâneo, sem ter visto o Bispo de Roma no Vaticano, a quem fora enviado pelo Rei de Portugal. A peregrinação do unicórnio Ganda por meio mundo é partilhada pelo cornaca Ossem, que com ele termina abruptamente os seus dias sem honra nem glória, longe da sua amada Hildegarde, mas isso são já contas doutro rosário ou doutros contos por contar.

Dizem os memoriais escritos que o tratador do paquiderme asiático seria um nobre indiano caído em desgraça. O Sultão Muzzafar II de Guzarate livrou-se da sua presença, enviando-o para Goa como seu embaixador junto do Grão-Cão das Índias. E pouco mais se adianta nos relatos dignos de crédito que até nós chegaram. A ficção faz tábua rasa desse testemunho e inventa uma verdade alternativa para colmatar lacunas detetadas e processar dados apreendidos pela rama. Afonso de Albuquerque é promovido a Vice-Rei e Ossem de Cambaia é rebaixado à casta de intocável. A fantasia toma conta do discurso com a roupagem da paródia a resvalar para o anedótico e o burlesco instala-se. Salva-se a figura de Ganda, que Albrecht Dürer imortalizou numa xilografia gravada em Nuremberg que depois espa-lhou às mãos largas por toda a parte. O primeiro rinoceronte a pisar terras europeias está também representado numa das guaritas da Torre de Belém e numa gárgula do Mosteiro de Alcobaça. Ninguém por essas esculturas de calcário erodido pela voragem dos séculos. Quem gostar do tom caricatural de chacota, motejo, troça, zombaria, mofa, escárnio ou qualquer outro termo de perfil anedótico capaz de provocar o riso, terá ainda vê-lo desenhado com palavras impressas nas páginas dum romance quase pícaro ou de amor e aventuras pe-regrinas. É escolher uma das hipóteses disponíveis ou abraçá-las naturalmente a todas.

19 de novembro de 2019

O sentido dos sentidos

            Jan Steen, The Village School  (c. 1665)           
... Mais servira, se não fora | para tão longo amor tão curta a vida.
Camões, Sete anos de pastor Jacob servia 
Sem régua nem batuta...
Quando for grande quero ser professor para poder dar reguadas nos meninos. Depois cresci e acabei por ser professor sem poder bater nos meninos. Os castigos físicos tinham acabado. A criançada já não tinha de dar a mão à palmatória e conhecer a menina dos cinco olhos, não podia sentir o toque cego do báculo pedagógico. Agora, passados os anos, diz-se por aí que a prática punitiva se inverteu e são os meninos que começam a agredir os professores. Tendências de moda com o habitual exagero das más-línguas à mistura.

Quando deixar de ter alunos ao redor vou começar a cantar. Meu dito meu feito. Afastei a ideia de cantar a solo e pus-me a cantar a vozes. Para trás ficaram as aulas de canto coral da infância com solfejos gaguejados e escalas maltratadas ao piano. Pobres teclas. Agora toco as do portátil que as máquinas de escrever já eram. O canto veio ter até mim quando a docência se foi. A aprendizagem é longa e a vida curta. Os ensaios do coro são feitos de repetições. Canta-se e recanta-se até que pegue. Sem réguas nem batutas punitivas.
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Sete vidas tivesse para viver, sete vidas viveria, sete vezes e outras tantas ou mais ainda voltaria sempre, sem descanso, a tentar dar um sentido novo aos sentidos, qual sinfonia de cores, cocktail de sons, paleta de odores. Uma verdadeira sinfonia de sentidos com sentido. Gostos sinestésicos que não passam pelas papilas gustativas. Fica--me nesta vida que ainda me vai restando o tal gosto imperecível pelos livros impressos a cheirar a tinta. A musicalidade policromada das palavras contadas nas histórias acontecidas ou imaginadas.

    Jean-Honoré Fragonard, La leçon de musique (1769)    

13 de novembro de 2019

Pascal Mercier: comboio noturno para Lisboa no rasto do ourives das palavras

Das Leben ist nich das, was wir leben; es ist das, was wir uns vorstellen zu leben
Pascal Mercier, Nachtzug nach Lissabon (2007)
Ofereceram-me as imitações de vida imaginadas por Pascal Mercier no Comboio noturno para Lisboa (2007)  cinco anos*, quando estava de passagem não programada num hospital. Adiei então a sua leitura imediata, porque à época me apetecia mais ouvir histórias contadas por palavras ditas do que decifrá-las por palavras escritas. Só voltei ao seu convívio algum tempo depois, já na tranquilidade do lar, entregue a uma recuperação sossegada e sem sobressaltos. Fi-lo sem grande entusiasmo. A viagem de revisitação ao passado duma cidade e dum país, marcados ainda pelas sombras percetíveis da ação governativa do ditador de Santa Comba, soou-me um pouco a falso. As deambulações encetadas por um professor suíço de línguas clássicas, no rasto dum desconhecido escritor português, pareceram-me pouco convincentes. O mal-estar existencial sentido pelo médico antifascista e patriota, que salva um esbirro do regime e é tido como traidor pelos resistentes, esboça um cenário de repre-sentação histórica pouco credível. A minha prática de leitor atento tem-me transmitido a ideia, talvez errada, de serem pouco habituais os toques de ironia trágica no país dos brandos costumes, mais propenso a outros efeitos estéticos de dimensão dramática. 

A estreia mundial da versão filmada trouxe-me à memória o romance que havia esquecido por completo, abandonado à sua sorte num re-canto menos frequentado da minha biblioteca caseira. Deixei escapar a projeção da película no grande ecrã e protelei o seu visionamento para daqui a alguns anos numa qualquer sessão televisiva**. É que as adaptações ao cinema de obras literárias são sempre muito duvido-sas e redutoras das potencialidades poéticas contidas nas páginas dum livro***. Preferi correr o risco de relê-lo com um olhar mais favo-rável e distante no tempo, sem preconceitos, como se estivesse a fazê-lo pela primeira vez. O resultado foi dececionante. A impressão negativa com que ficara da anterior abordagem voltou a instalar-se. Visão muito pessoal que não invalida a opinião contrária de todos aqueles que converteram o relato num sucesso editorial à escala global, num bestseller traduzido para os mais diversas línguas e com muitos outros a preparar a sua entrada em cena. As leis imutáveis do livre-arbítrio põem-se ao serviço de todos e garantem-lhes que em literatura ninguém é obrigado a partilhar as preferências | rejeições alheias. A potencial qualidade duma obra depende em grande parte dos olhos que a contemplam. As mãos que as talharam estão com-pletamente subordinadas a esta realidade. 

Em linhas gerais e traços breves, a viagem noturna para a capital dum império extinto fez-se por comboio, porque o protagonista sentiu um impulso inadiável de ouvir ao vivo a sonoridade melodiosa do idioma português, tão diferente da do alemão materno, e dado o trajeto feito por avião ser muito rápido e anular as perspetivas de distanciamento. Norteou-o, ainda, o propósito firme de partir à descoberta, em Lisboa, do autor duma nova vida pautada por uma nova linguagem, anuncia-da sugestivamente n’Um Ourives das Palavras, título dum livro en-contrado por acaso numa livraria de Berna. Peter Bieri assume o pseudónimo literário de Pascal Mercier e insere um ensaio de cariz filosófico na estrutura discursiva dum romance de pesquisa da palavra, da sua natureza, plasmada em todas as suas dimensões. A palavra moribunda de Deus, pronunciada em nome do amor e ódio, da vida e morte, do crime e castigo, a palavra imaginada pela poesia impressa em forma de letra ou feita de sons articulados. Palavras do passado a renovarem as palavras do presente. Os textos intercalados no tecido narrativo, repartidos por cartas, diários, reflexões e aponta-mentos de vária ordem, aludem à ditadura das palavras erradas e à liberdade das certas, ao silêncio do mundo antes da invenção das palavras, à vertigem causada ao homem quando perde a memória das línguas e das palavras que as conformam. No início era a palavra e no final a sua ausência. O sonho do fim do mundo é também, por esta via, o pesadelo dum mundo sem palavras

A verdade judicativa dum relatório crítico de leitura é sempre falível. A verdade absoluta é uma falácia. Todas as interpretações são poten-cialmente válidas. As nossas não fogem à regra. Sugeriria uma visita confiante a cada livro que se nos atravesse no caminho e uma saída rápida se a sensação de desconforto se instalar. E depois há tanto livro por aí à procura de leitores...

NOTAS
(*) Atualizando os dados, recebi o livro em junho de 2008 e publiquei este texto no Pátio de Letras em maio de 2013. (**) O projeto de visionar o filme numa sessão televisiva acaba de se concretizar agora mesmo, seis anos depois da sua estreia mundial. (***) A adaptação cine-matográfica cumpre a função de contar uma história num espaço reduzido de tempo, poupando-nos assim às partes menos apetecíveis do romance que lhe serviu de suporte. Vê-se bem e convida a uma releitura atenta do original para arrumar as ideias. Talvez o faça um dia destes...

9 de novembro de 2019

Cavalo de Troia & Urso de Berlim

The Trojan Horse & The Buddy Bear

    Das muralhas de Troia ao muro de Berlim    

Dizem os velhos mitos helénicos, convertidos em lendas e epopeias, terem as muralhas de Ílion sido vencidas pelos Aqueus, depois de as terem cercado ininterruptamente durante dez anos. A conquista e destruição da pólis pelas forças aliadas de Agamémnon terá sido possível com a ajuda dum artefacto de madeira imaginado pela astúcia de Ulisses, o conhecido Cavalo de Troia. Segundo se julga saber, passados mais de três milénios sobre a contenda travada entre gregos e troianos (c. 1250 AEC), o aparato inventado pelo rei de Ítaca mais não seria do que uma espécie de aríete, construído com forma de animal, ou um mero navio de guerra, chamado «cavalo do mar», em cujo interior viajariam as forças beligerantes. No caso também provável da destruição da urbe se dever a um sismo, a escolha dum equídeo dever-se-ia ao facto de Poseidon ser o deus dos cavalos, dos oceanos e dos terramotos. Entre tantas versões duma mesma história, cada um siga a que mais lhe agradar.

Dizem as tradicionais etimologias facilitistas, disfarçadas de verdades imediatas, que o Urso de Berlim derivaria do alemão Bär («urso», [bɛəʳ]), idêntico à sílaba inicial do topónimo (Berlin, [bɜːˈlɪn]). Por isso estaria representado na bandeira e no brasão de armas da grande metrópole estadual e federal germânica e profusamente espalhado em tudo o que é sítio público nos mais diversos formatos. Outra hipótese mais rigorosa defende que todos os nomes de lugares terminados em -in têm uma raiz eslava, passando os seus moradores a serem os habitantes das «terras pantanosas» (berl-/birl + -in). Em termos históricos, a designação da cidade foi-lhe outorgada pelo guerreiro saxão Albrecht I de Brandenburg, o Urso, que a conquistou em meados do século XIIEtimologias e onomásticas à parte, diga-se que a capital da RFA deve o seu atual estatuto à queda do Muro de Berlim, faz no dia de hoje precisamente 30 anos, efeméride celebrada por toda a parte com a pompa e circunstância merecidas.
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As muralhas de Troia e o muro de Berlim estão separados por quase 3300 anos de devir histórico. Entre a entrada vitoriosa do cavalo de madeira pela cidade de Príamo adentro e o final do cativeiro da cidade dos terrenos alagados, cresceram os mitos e contramitos ancestrais micénicos que estiveram na génese da cultura e civilização europeia. O rapto de Helena ativou o pacto dos heróis gregos que a resgataram de Páris e devolveram a Menelau. O império de mil anos prometido por Hitler desfez-se em doze e dividiu o velho continente em dois blocos antagónicos. Os reis rivais da antiga Helénia juntaram-se para vencer o inimigo comum que os ameaçava. Os berlinenses orientais derrubaram as barreiras de cimento armado que dividia a antiga Germânia ao meio e deram as mãos aos berlinenses ocidentais que se encontravam do outro lado da cortina de ferro ou da vergonha. A unificação da Alemanha é também ela uma unificação da Europa. De toda a gente que nela vive, dizem que unida na diversidade.

4 de novembro de 2019

To brexit or not to brexit that is the nub...

Nostalgic Britain

Wentworth Wooden Puzzle Collage
Dura brexit, sed brexit...
O neologismo inglês BREXIT foi posto a votação pública em 2016 pela Porto Editora como palavra do ano. Foi derrotado pela mediática «geringonça» parlamentar portuguesa. O resultado era previsível no contexto político nacional em que a corrida ao cobiçado prémio foi disputada. A vencedora manteve-se bem viva quatro anos. A vencida lá continua de pedra e cal até sair vitoriosa vá-se lá saber quando. Como repetiria Júlio Caio César em bom latim kikerista se voltasse a pisar essas terras remotas de bárbaros insulares: veni, vidi, vici.

Acrónimo da moda a nível global composto por duas palavras latinas (br- < Britannia = província romana: 43AEC-410EC + exit = saída) sofre agora uma espécie de síndrome da pilha alcalina americana de longa duração Duracell, que dura dura dura, ou do automóvel nipónico Toyota, que veio para ficar. Esta ideia de dizer que se quer sair sem arredar de facto o pé donde se está até já deu origem ao verbo TO BREXIT (brexitar = adiar), i.e., uma forma renovada e reforçada de «procrastinar». Mantém-se a raiz latina e facilita-se a soletração.

Dizem as estatísticas que 56,7% do léxico britânico nasceu no Latio, convertendo o inglês na mais românica das línguas germânicas. A culpa terá sido de Roma que conquistou a Britânia e partiu e da Normandia que conquistou a Inglaterra e ficou. Dieu et mon droit vai dizendo o lema do ainda Reino Unido. Nostalgia saudosista insular, definida, à boa maneira de Dom Duarte de Avis & Lencastre no Leal Conselheiro, de se estar onde não se está ou de se estar com quem não se está. E se de facto assim não for, Honni soit qui mal y pense...