23 de fevereiro de 2020

As serpentinas coloridas do Rei Momo

M  O  M  O
"The Fool"
[from an 18th century minchiate playing card deck].
Γένος Νύκτας
Νὺξ δ᾽ ἔτεκεν στυγερόν τε Μόρον καὶ Κῆρα μέλαιναν καὶ Θάνατον, τέκε δ᾽ Ὕπνον, ἔτικτε δὲ φῦλον Ὀνείρων· - οὔ τινι κοιμηθεῖσα θεὰ τέκε Νὺξ ἐρεβεννή, - δεύτερον αὖ Μῶμον καὶ Ὀιζὺν ἀλγινόεσσαν Ἑσπερίδας θ᾽, ᾗς μῆλα πέρην κλυτοῦ Ὠκεανοῖο χρύσεα καλὰ μέλουσι φέροντά τε δένδρεα καρπόν.
Ησίοδος - Θεογονία (211-216)

Contam-nos os mitos helénicos registados pela tradição escrita e oral ser Momo a personificação do Sarcasmo. Hesíodo diz na Teogonia tratar-se duma divindade primordial dos escritores e poetas, filha da Noite e irmã das Hespérides, as fiéis guardiãs do jardim dos pomos de ouro ou dos Imortais. Luciano lembra no Hermotimus a avaliação trocista proferida contra as criações de Atena, Poseidon e Hefesto na qualidade de jurado dum concurso de deuses. Filóstrato ridiculariza nas Epístolas as infidelidades de Zeus para com Hera, pelo que se viu exilada do Monte Olimpo.

Um dos lances mais marcantes da sua faceta etiológica situa-se entre duas querelas armadas mítico-lendárias do mundo antigo: a Guerra de Tebas e a Guerra de Troia. Sem se ter batido em nenhuma delas, criticou a primeira e causou a segunda. Aconselhou Zeus a abandonar o plano de fulminar os mortais através dum contínuo bélico artificial. Para diminuir o excesso de população, bastava criar uma mulher muito bela que levasse as nações a baterem-se pela sua posse e assim se destruírem. Helena de Argos nasceu e preparou a entrada de Menelau e Páris em cena.   

Quando o mais belo soldado romano passou a desfilar nas Saturnais, com uma coroa na cabeça, uma máscara a tapar-lhe o rosto e um boneco na mão a simbolizar a loucura, a subida do Rei Momo ao trono das folias acabava de surgir. As festividades rituais dedicadas a Saturno, o deus das colheitas, resistiram aos caprichos do tempo e converteram-se aos poucos nas atuais batalhas de flor do Entrudo. Na sua aparição anual, empunha o cetro do poder real e brinda-nos com mãos-cheias de serpentinas coloridas de papel a celebrar o efémero reinado de três dias.

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A realeza portuguesa foi mandada para o caixote de lixo da História na primeira década de novecentos. A coisa pública que lhe sucedeu só guardou no seu calendário de festividades toleradas quatro cabeças coroadas dum reino fingido de faz-de-conta. Tolera-as em duas únicas ocasiões e sem direito a feriado civil ou religiosoOs Reis Magos em janeiro e o Rei Momo em fevereiro/março. O ouro, incenso e mirra da tríade natalícia foi substituída pelos confetti do monarca carnavalesco. Tudo muito q.b. Noblesse oblige. E assim a lenda se fez fábula e o mito contramito.

19 de fevereiro de 2020

George Steiner, fragmentos imaginados dum pergaminho um pouco queimado

GEORGE STEINER The Kenyon Review; Gambier V ol. 34, Ediç. 3,  (Summer 2012): 3-31,205.
“These aphorismic fragments have turned up on one of the charred scrolls recently unearthed in what is thought to have been a private library in a villa in Herculaneum. Linguistic evidence and the tenor of argument point to the late second century BC. Some scholars have put forward the name of Epicharnus of Agra. But virtually nothing is known of this moralist and rhetorician (if that is what he was). At several points, moreover, the condition of the papyrus makes decipherment conjectural.”
Toda a literatura antiga que até nós chegou é fragmentária. O minús-culo pico visível duma imensa montanha submersa nas profundezas oceânicas. Feito de muitos restos e muitíssimas lacunas é o acervo cultural escrito produzido entre os rios Tigre e Eufrates e na bacia do mar Mediterrâneo. Isto só para referir as mais destacadas fontes matriciais do mundo ocidental. A volubilidade irónica dos fados quis que o fogo tivesse preservado as obras sumérias e acádias da biblioteca de Nínive e condenado as gregas e  latinas da biblioteca de Alexandria. Na mesopotâmica, transformou-as em milhares de placas de argila cozida; na helenística, reduziu-as a uma infinidade de partículas de cinza volátil.

De vez em quando, surge a hipótese de recuperar um ou outro texto perdido num qualquer achado inesperado. Um verso aqui, uma frase ali, uma única palavra acolá no meio de muitas outras caladas para sempre. A grande esperança atual dos amantes incondicionais da herança clássica é a de verem desvendados os mistérios escondidos nos mais de 1800 papiros carbonizados descobertos em 1752 nas ruínas de Herculano. George Steiner acrescenta-lhes um rolo fictício encontrado recentemente na biblioteca privada duma villa dessa cidade romana subterrada pelas lavas incandescentes do Vesúvio em 79 EC e comenta os oito aforismos atribuídos a um tal Epicarno de Agra, um orador moralista que terá vivido no Séc. II AEC. Depois, reúne o produto dessa reflexão na The Kenyon Review, num artigo a que dá o título sugestivo de Fragments (Somewhat Charred) (2012).

Nesses fragmentos de fragmentos um pouco queimados, o escoliasta franco-americano encontra um conjunto de sentenças breves de decifração algo conjetural, a que empresta uma interpretação muito pessoal. Baseado na erudição que a vida lhe outorgou, confronta o papel do silêncio e da claridade que antecedem o ribombar do trovão, questiona o modo como a amizade pode ser a assassina do amor, assinala o abismo estabelecido entre a desigualdade da esco-laridade e a raridade do talento, equaciona a realidade ontológica e substantiva do mal, avalia o poder ilimitado do dinheiro, alerta para o risco de seguir à letra os preceitos despóticos das religiões organi-zadas, destaca o fascínio inebriante exercido pelo canto e a música na psique humana, conclui com uma abordagem muito sentida à imortalidade dos deuses, à mortalidade dos homens e ao estatuto privilegiado dos heróis e dos seres excecionalmente virtuosos peran-te a singularidade da morte.

Nos parágrafos finais do artigo partilhado com uma vintena doutros mais numa revista de referência académica de prestígio reconhecido, também eles fragmentos de visões individuais tornadas públicas, o ensaísta detém-se com algum pormenor nas misérias da velhice, no atrofiamento da mente, na liberdade de escolher a morte, seja pelo suicídio puro e duro, seja pelo recurso à eutanásia, permitindo assim que o espírito consciente de quem parte volte livre para os elementos a que pertenceNuma altura em que se debate tão acaloradamente entre nós a despenalização da morte medicamente assistida, possam estes aforismos atribuídos ao Epicarno de Agra imaginado por George Steiner servir de ponto de partida real para reflexões pessoais clarificadoras, realçadas com a lucidez sempre sábia da razão.   

16 de fevereiro de 2020

Mapas e territórios de vida e morte


J'ai décidé de me faire euthanasier...

Il se tourna vers son fils, le regarda droit dans les yeux. « Ça me paraissait mieux de te prévenir, et je ne me voyais pas t'en parler au téléphone. Je me suis adressé à une organisation, en Suisse. J'ai décidé de me faire euthanasier ».

Jed ne réagit pas immédiatement, ce qui laissa le temps à son père de développer son argumentation, laquelle se résumait au fait qu'il en avait marre de vivre.
« Tu n'es pas bien ici ? » demanda enfin son fils d'une voix tremblante.
Si, il était très bien ici, il n'aurait pas pu être mieux, mais ce qu'il fallait qu'il se mette dans la tête c'est qu'il ne pouvait plus être bien nulle part, qu'il ne pouvait plus être bien dans la vie en général (il commençait à s'énerver, son débit devenait fort et presque colérique, mais le vieux chanteur avait de toute façon sombré dans l'assoupissement, tout était très calme dans la pièce). S'il devait encore continuer il allait falloir lui changer son anus artificiel, enfin il trouvait que ça commençait à suffire, cette plaisanterie. Et puis il avait mal, il n'en pouvait plus, il souffrait trop.
« Ils ne te donnent pas de morphine ? » s'étonna Jed.
Oh si on lui donnait de la morphine, autant qu'il en voulait évidemment, ils préféraient que les pensionnaires se tiennent tranquilles, mais est-ce que c'était une vie, d'être constamment sous l'emprise de la morphine ?
À vrai dire Jed pensait que oui, que c'était même une vie particulièrement enviable, sans soucis, sans responsabilités, sans désirs ni sans craintes, proche de la vie des plantes, où l'on pouvait jouir de la caresse modérée du soleil et de la brise. Il soupçonnait pourtant que son père aurait du mal à partager ce point de vue. C'était un ancien chef d'entreprise, un homme actif, ces gens-là ont souvent des problèmes avec la drogue, se dit-il.

« Et puis d'ailleurs, en quoi est-ce que ça te regarde ? » lança agressivement son père (Jed prit alors conscience qu'il n'écoutait plus, depuis un certain temps déjà, les récriminations du vieillard). Il hésita, tergiversa avant de répondre que si, quand même, en un sens, il avait l'impression que ça le regardait un peu. « Déjà, être un enfant de suicidé, ce n'est pas très drôle... » ajouta-t-il. Son père accusa le coup, se tassa sur lui-même avant de répondre avec violence : « Ça n'a rien à voir ! »

10 de fevereiro de 2020

Peter Shafft: a caçada real do sol dramatizada em palco, tela e livro

"OLD MARTIN: Save you all. My name is Martin. I'm a soldier of Spain and that’s it. Most of my life I’ve spent fighting for land, treasure and the cross. I’m worth millions. Soon I’ll be dead and they’ll bury me out here in Peru, the land I helped ruin as a boy. This story is about ruin. Ruin and gold. More gold than any of you will ever see even if you work in a counting house. I’m going to tell you how one hundred and sixty-seven men conquered an empire of twenty-four million. And then things that no one has ever told: things to make you groan and cry out I’m lying. And perhaps I am. The air of Peru is cold and sour like in a vault, and wits turn easier here even than in Europe. But grant me this: I saw him closer than anyone, and had cause only to love him. He was my altar, my bright image of salvation. Francisco Pizarro! Time was when I’d have died for him, or for any worship."
Peter Shaffer, The Royal Hunt of the Sun (1969)
Decorria o primeiro ano da década de 70 quando vi num ecrã gigante dum cinema de Lisboa a versão filmada por Irving Lerner da história do Atahualpa Capac, Senhor dos Quatro Quartos, Divisões ou Regiões do Mundo, Rei da Terra e do Céu, filho do Sol e da Lua. Esqueci-me do nome da sala e da data exata em que ocorreu. Lembro-me perfeitamente do impacto que aquela hora e meia me causara e de ter adquirido então a versão escrita da peça de Peter Shaffer que estivera na sua origemA caçada real do sol (estreada nos palcos ingleses em 1966 e nas telas americanas em 1969), ainda permanece viva hoje em dia nas minhas memórias, a meio século de distância da projeção do filme e da leitura do livro.

Voltei à companhia das duas versões da história do 14.º Sapa Inca depois de ter terminado a leitura do mais recente grand prix du roman de l'Académie française, atribuído a Laurent Binet com o Civilizations (2019). A visão ucrónica deste fabulista francófono difere em muito da visão canónica dos dois fabulistas anglófonos. O senhor do maior império andino da época pré-colombiana nunca abandonou o território americano que o vira nascer entre 1497 e 1500, nunca lhe passou pela cabeça cruzar o vasto mar atlântico em 1531,  conquistar grande parte do continente europeu e governar essa Quinta Região com pulso de ferro, até que a morte o levasse desta vida em 1547, no preciso ano em que Cervantes era dado à luz em Alcalá de Henares. O destino de Ataw Wallpa de Tahuantinsuyu, o Ditoso na Guerra, o Galo Feliz, a Ave da Fortuna, foi mesmo capturado e executado na cidade de Cajamarca em 1533, a mando de Francisco Pizarro, o conquistador castelhano do Peru.

O drama representado em espaço cénico está repartido por dois atos - a Caçada e a Morte -, cabendo a cada um deles doze cenas. Pode-mos ver nesta estrutura as vinte e quatro horas dum dia completo, uma metade regida pelo Sol e outra pela Lua, progenitores míticos do soberano derrotado e marcos da sua submissão e eliminação ao novo poder imposto pelo general vitorioso. O relato é confiado ao velho Martin Ruiz (ausente na película anglo-americana fixada em celulose), que procede a um balanço crítico dos factos ocorridos anos atrás, quando ainda era um jovem pajem ao serviço de Pizarro e servia de intérprete a Atahualpa. Fá-lo como se tivesse encarnado o papel dum verdadeiro corifeu, aquele que empresta alternadamente a voz a dois coros rivais armados, a dos cristãos forasteiros e a dos pagãos nativos.

Lidos os livros e visto o filme, confirmamos que as civilizações são sempre regidas pela força de quem as impõe ou pela resistência de quem as defende, que as noções de correto e incorreto dependem invariavelmente do ponto de vista de quem julga em detrimento de quem é julgado. A imortalidade do filho de deus feito homem defendi-da tanto por Incas como por Castelhanos difere no modo como é explicada pelos dois cultos em presença. Normal para uns, anormal para outros. A sensação de estranheza sentida por uns e por outros só depende da familiaridade que se tenha com o insólito metafísico em presença. À força de o ouvirmos repetir tantas vezes, acabamos por aceitá-lo como uma verdade que não admite contestação. Defen-der a ressurreição dum rei-deus filho do deus-sol é tão credível como defender a ressurreição dum deus-homem parte dum deus-trino sem corpo. O alegado sucesso do primeiro e o comprovado insucesso do segundo se deve atribuir à vontade dessa tal entidade superior transcendente conhecida por Deus a que a imanência do Homem estará submetida. E a vida sucumbe à morte e a morte comanda a vida, enquanto o Sol brilha, rutilante.   

PIZARRO & ATAHUALPA
[Granger Colectio & Brooklim Museum]

3 de fevereiro de 2020

Os carrilhões do Magnânimo

«Em Fanhões parou o cortejo porque os moradores quiseram saber, nome por nome, quem eram os santos que ali iam, pois não é todos os dias que se recebem, ainda que de passagem, visitantes de tal grandeza corporal e espiritual, uma coisa é o quotidiano trânsito dos materiais de construção, outra, poucas semanas há, o intérmino cortejo dos sinos, mais de cem, que hão de rebimbar nas torres de Mafra a imperecível memória destes acontecimentos, outra ainda este panteão sagrado.»
Dizem os anais históricos à boca cheia que o Convento de Mafra foi mandado erigir na sequência dum voto feito por Dom João V de Portugal e Algarves ao Altíssimo se lhe nascesse um filho varão no prazo dum ano. Afinal nasceu-lhe uma filha, mas a palavra dada do rei cumpriu-se à mesma sem voltar atrás.

Dizem as más línguas à boca pequena ou sussurrada que Dona Maria Ana Josefa de Áustria já estaria grávida quando a promessa foi feita. A rainha confessara a frei António de São José já estar de esperanças e este garantira ao soberano a infalibilidade do milagre sem para tal revelar o segredo da confissão.

Dizem os ditos dignos de memória ter o monarca mais rico da época ficado ofendido, quando lhe fizeram ver que os 400 000 réis pedidos pelos fundidores holandeses por um carrilhão era um preço exorbi-tante. O pai da infanta Maria Bárbara de Bragança terá então dito: Não supunha que fosse tão barato; quero dois!

Dizem os jornais escritos e falados que os carrilhões do Magnânimo voltaram a tocar no Real Convento de Mafra, após um silêncio for-çado de quase 20 anos. Os habitantes da vila que se vão habituando à ideia de os ouvirem sempre que as circunstâncias assim o exigirem. É que a festa só agora começou.