26 de abril de 2022

Impérios do Mundo

LA JÉRUSALEM CÉLESTE
Tapisserie de l'Apocalypse
[Château d'Angers, France, c. 1375]
Eternos moradores do luzente, | Estelífero Polo e claro Assento: | Se do grande valor da forte gente | De Luso não perdeis o pensamento, | Deveis de ter sabido claramente | Como é dos Fados grandes certo intento | Que por ela se esqueçam os humanos | De Assírios, Persas, Gregos e Romanos.
Luís de Camões, Os Lusíadas, 1572 (I, 24)
… depois dos três impérios dos Assírios, Persas e Gregos que já passaram, e depois do quarto, que ainda hoje dura, que é o Romano, há de haver um novo e melhor Império que há de ser o quinto e último.
Padre António Vieira, História do Futuro, 1653-1661 (I, i )
Grécia, Roma, Cristandade, | Europa – os quatro se vão | Para onde vai toda idade. | Quem vem viver a verdade | Que morreu D. Sebastião?
Fernando Pessoa, Mensagem, 1936 (III, i, 2.º, 5)

Da Terceira Roma à Nova Jerusalém...

Quando durante a Revolução Neolítica os caçadores-recoletores nómadas se tornaram agricultores-pastores sedentários, o processo embrionário de formação dos impérios começou a perfilar-se no horizonte. Se nos cingirmos à visão bíblica judaico-cristã, ter-se-iam sucedido quatro grandes entidades políticas de dimensão territorial crescente, identificadas com o Assírio-Babilónico, o Medo-Persa, o Greco-Macedónico e o Romano-Bizantino. Outros se lhe seguiram ao longo dos séculos, mas nenhum deles conseguiu conquistar o domínio almejado e inequívoco de Quinto Império do mundo.

A literatura épico-profético-lusitana de Luís de Camões, do P.e António Vieira e Fernando Pessoa olharam para os vastos domínios dos reinos e senhorios de Portugal e Algarves, de Aquém e Além-Mar em África, da Guiné, Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia como globais, sem abranger todavia os vinte e quatro fusos horários da esfera terrestre. Nem o império católico dos filipes hispânicos onde o sol nunca se punha, nem o napoleónico do imperador dos franceses, nem o império anglicano de sua majestade britânica lograram erigir nos seus tempos áureos de conquista eurocêntrica do mundo.   

Os impérios centrais eurasiáticos autocratas altamente belicistas dos alemães, dos austro-húngaros, dos otomanos turcos e dos ortodoxos russos ruíram durante a Grande Guerra, seguidos na geração imediata da queda do eixo imperial germano-italiano-nipónico no final da Segunda Guerra Mundial. O tempo dos impérios parecia ter desaparecido de vez do horizonte planetário global na passagem do segundo para o terceiro milénios, sobretudo a partir do derrube do Muro de Berlim e da subsequente implosão interna do império soviético e do universo da cintura-tampão de países-satélites.

Nos dias de hoje, o sonho delirante do ideado patriarca da alma russa, a real e a imaginária, o candidato presumido a senhor absoluto de toda a Rússia, grande, pequena e branca, empenhou-se na tarefa providencial de recuperar a grandeza imperial de superpotência muito perdida. O predador-vencedor/perdedor continua a sua cruzada de reunir as parcelas sumidas da miríade de entidades multinacionais anexadas pela força das armas no decurso dos séculos. Triste César este de pacotilha, ocupante de ruínas alçadas numa terra queimada, devastada mas nunca subtraída à vontade indomável dos povos.

O novo grão-duque de Moscóvia, o novo czar sem coroa do Kremlin, o novo soberano redentor da Rus eslava, ambiciona ativar a titularia imperial herdada do passado e tornar-se o potentado supremo da urbe humana globalizada, o messiânico conquistador do Quinto Império. Moscovo, já considerada a Terceira Roma terrestre, passaria a ser também uma legítima e merecida Nova Jerusalém celestial, a cabeça bicéfala do ambicionado Império do Mundo. Delírios do novo déspota enlouquecido que nos calhou na rifa. Cuidado com ele que anda por aí às claras a atazanar-nos o juízo.

Reuterswärd – Non-Violence – New York City (2012)

23 de abril de 2022

Jorge Luis Borges e o absurdo das leituras obrigatórias e entediantes

                  The Closure Library Authors - 2011                  

No Dia Mundial do Livro...

«Creo que la frase “lectura obligatoria” es un contrasentido; la lectura no debe ser obligatoria. ¿Debemos hablar de placer obligatorio? ¿Por qué? El placer no es obligatorio, el placer es algo buscado. ¡Felicidad obligatoria! La felicidad también la buscamos. Yo he sido profesor de literatura inglesa durante veinte años en la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires y siempre les aconsejé a mis estudiantes: si un libro les aburre, déjenlo; no lo lean porque es famoso, no lean un libro porque es moderno, no lean un libro porque es antiguo. Si un libro es tedioso para ustedes, déjenlo; aunque ese libro sea el Paraíso Perdido —para mí no es tedioso— o el Quijote —que para mí tampoco es tedioso—. Pero si hay un libro tedioso para ustedes, no lo lean; ese libro no ha sido escrito para ustedes. La lectura debe ser una de las formas de la felicidad, de modo que yo aconsejaría a esos posibles lectores de mi testamento —que no pienso escribir—, yo les aconsejaría que leyeran mucho, que no se dejaran asustar por la reputación de los autores, que sigan buscando una felicidad personal, un goce personal. Es el único modo de leer.»

Jorge Luis Borges ‒ Borges para millonesEntrevista realizada en la Biblioteca Nacional en 1979

DANTE ‒ CERVANTES  GOETHE  SHAKESPEARE  MOLIÈRE  CAMÕES

18 de abril de 2022

O bailado das abreviaturas

ΧΡΤΟ
Χριστος

Do qui-ró-tau-ómicron ao xis-pê-tê-ó...

Dizem os decifradores especializados da língua corresponder uma abreviatura a uma letra ou a um conjunto de letras que fazem parte duma palavra e a representam na escrita. Analisando ao pormenor a associação de grafemas constitutivas da unidade lexical XPTO, fica-se na dúvida do seu real/original sentido, ou da razão específica da sua utilização, quando nos referimos a algo de excecional relevância.

Poder-se-ia também tratar das letras ou sílabas iniciais de várias palavras usadas para formar uma única cadeia fónica, formando ou não novas palavras com a designação de acrónimos e siglas. XPTO pertenceria assim à segunda categoria considerada. A presença duma só vogal impede a sua leitura como um nome comum, só admitindo a sua soletração seguida letra a letra como xis-pê-tê-ó.

Terminologias gramaticais à parte, a palavra ou quase palavra caiu no goto dos falantes, que passou a usá-la como adjetivo invariável em género e número, fazendo tábua rasa da sua etimologia. Neste bailado atual de abreviaturas, só os manuais descodificadores dos mecanismos metalinguísticos nos podem elucidar com conhecimento de causa do seu real e efetivo significado simbólico multissecular.   

Afinal, as quatro letras do vocábulo da moda dever-se-iam soletrar qui-ró-tau-ómicron, já que se referem à forma monografada do nome de Cristo, o Ungido, na sua versão grega de ΧΡΙΣΤΟΣ, Χριστος, ΧΡισΤΟς ou simplesmente ΧΡΤΟ. Aqui como em muitas outras verbalizações, as aparências iludem. As palavras nascem, crescem e morrem ou ganham novos sentidos. Inexoravelmente. 

13 de abril de 2022

Os olhares do menino das bolas de sabão olhados por Édouard Manet

Édouard Manet
« Les bulles de savon » 
(1867)
[Lisboa - Museu Calouste Gulbenkian]

Perdi a noção do tempo em que olhei para o olhar atento do menino das bolas de sabão, captado há mais de século e meio pela paleta impressionista de Édouard Manet, agora exposto para quem o quer olhar numa sala bem iluminada do Museu Calouste Gulbenkian de Lisboa. A efemeridade dum olhar e duma bola de sabão ficaram congeladas num instantâneo pintado a óleo sobre tela, a demonstrar o quanto a Arte tem o condão de perpetuar um momento igual a tantos outros, como se fosse de facto único e irrepetível. 

Olhar alheio aos olhares que o olham, como se o mais solene do olhar fosse olhar uma bola de sabão. E quem se deixa olhar sem retribuir o olhar continua a atrair os olhares de quem se sente atraído pela força imperiosa de todas as cores convocadas por Édouard Manet em França nesse já distante ano de 1867. Fragilidade cintilante feita para ser lançado ao ar e aí pairar por instantes. Efemeridade que o olhar do mestre das luzes nos dispensou de olhar nesta captação mágica dum momento oferecido à eternidade.

8 de abril de 2022

Mario Vargas Llosa, os tempos duros guatemaltecos durante a guerra fria

«Luego de una breve pausa, Bernays continuó: Arévalo quisiera hacer de Gua-temala una democracia, como los Estados Unidos, país que admira y tiene como modelo. Los soñadores suelen ser peligrosos, y en este sentido el doctor Arévalo lo es. Su proyecto no tiene la menor posibilidad de realizarse. ¿Cómo se podría convertir en una democracia moderna un país de tres millones de ha-bitantes, el setenta por ciento de los cuales son indios analfabetos que apenas han salido del paganismo, o todavía siguen en él, y donde por cada médico debe de haber tres o cuatro chamanes? En el que, de otra parte, la minoría blan-ca, conformada por latifundistas racistas y explotadores, desprecia a los indios y los trata como a esclavos.»

Teresa de Jesús queixa-se nas páginas autobiográficas do Libro de la vida (1588) dos tiempos recios* que então se viviam no mundo hispânico. A futura beata, santa e doutora da Igreja Católica referia-se às ações persecutórias efetuadas pela Inquisição em 1559, que levaram ao arresto do arcebispo Bartolomé Carranza de Toledo, à execução num auto-de-fé em Valladolid do clérigo Agustín de Cazalla e à publicação do Índice de libros prohibidos do inquisidor geral Fernando de Valdés. Mario Vargas Llosa inspira-se neste período conturbado quinhentista e transfere para o corpo romanesco dos Tempos duros (2019) os sucessos violentos que configuraram o golpe militar auspiciado pelos EUA e executado pelo coronel Carlos Castillo Armas, que levaram à renúncia do presidente Jacobo Árbenz da Guatemala em 1954.

Nos tempos agitados (récios/duros) que vivemos atualmente, apetece pouco falar de conflitos bélicos, sobretudo quando se trata da invasão de forças estrangeiras a um país soberano detentor dum governo legítimo sancionado pela vontade popular. O Nobel da Literatura 2010 fê-lo nas vésperas da crise pandémica revelada nos finais de 2019 e da agressão russa sem quartel ao território ucraniano em 2022. Mal sonhava então como as lições mal aprendidas do devir histórico estão sempre ao dispor dos déspotas, autocratas e tiranos de primeiro ou de segundo plano. A propensão do fabulador peruano para os relatos de factos reais é antigo, tendo assumido neste caso a variante bem sua conhecida duma novela de dictador(es), máxime no tratamento narrativo dado dezanove anos antes em La fiesta del chivo.

O leitmotiv novelesco assenta na história duma mentira gizada pela propaganda política, registada nos manuais oficiais de História como uma verdade absoluta. Os fake news da época espalharam aos quatro ventos a acusação que o regime guatemalteco alentava a entrada do comunismo soviético no continente e a invasão libertadora do país começa a ser delineada. Uma inverdade denunciada desde o início da ficção e mantida até ao final. Então como agora, a contrainformação posta ao serviço do poder instituído e dos interesses multinacionais no seu melhor são avaliados à exaustão nesta crónica-saga de golpes e contragolpes sucessivos, perpetrados sempre em nome do povo. Neste caso concreto, evidencia-se o papel assumido pela United Fruit norte-americana na conspiração orquestrada sob a batuta experiente da CIA e a conivência superior de Eisenhower.

Toda a criação artística é intrinsecamente subjetiva, por muito que os seus obreiros apresentem os factos relatados como genuinamente objetivos. O romance histórico não foge a essa premissa axiomática. As figuras reais vestem o manto diáfano da fantasia e reduzem-se a atores ilusórios de faz-de-conta, ora como paladino dos mais altos ideais de vida, ora de meras caricaturas da espécie humana. É neste processo de transfiguração literária, que aquele sujeito sinistro, meio tísico e ridículo de coronelzeco magricela, com olhos de rato, bigodito mosca hitleriano e cabelo quase rapado nos é apresentado. Entre o Antes e o Depois do regime legal da Revolução de Outubro de 1944 e o fraudulento da alegada Revolução Libertária de 1954, o tal ditador centro-americano conhecido por Cara de Hacha ou CaCa acaba por ceder o protagonismo à sua queridaapodada de Miss Guatemala.

O magnicídio do caudilho autoritário em 1957, três anos após ter sido plebiscitado como candidato único à presidência guatemalteca, podia ter posto um ponto final no relato, mas prossegue com mais alguns episódios, aflorados com uma veracidade duvidosa ou pouco clara, a preencher algumas parcelas de tempo que se aproximam da data de publicação do romance, quando a Casa Branca ainda era ocupada por Trump. O fabulador e ex-candidato peruano vencido nas urnas não se satisfaz com o relato duma crónica ficcionada dum golpe de estado sangrento, completando a sua versão dos factos com muitas mentiras e invenções exigidas pela criação poética, as tais que traçam a raia entre o real e o imaginário. Pula o período de terror pautado pela Guerra Fria e centra-se nas guerras quentes, mornas e de todas as temperaturas dos nossos dias, aquelas que a ambição do homo sapiens nos tem vindo a habituar desde que surgiu à face da terra. 

Rufino Tamayo, Dualidad (1964)

NOTA
Vd. Santa Teresa de Jesús, Libro da la vida. Salamanca: 1588. Cap. 33, § 5: «También comenzó aquí el demonio, de una persona en otra, procurar se entendiese que había yo visto alguna revelación en este negocio, e iban a mí con mucho miedo a decirme que andaban los tiempos recios y que podría ser me levantasen algo y fuesen a los inquisidores.»

4 de abril de 2022

La gazza ladra di Gioachino Rossini e gli spaghetti di Haruki Murakami

Música, apenas música

ABERTURAS

Estava na cozinha a vigiar o esparguete ao lume, quando tocou o telefone. Ao mesmo tempo ia assobiando a abertura da ópera La Gazza Ladra de Rossini, que estava a tocar numa estação de rádio em FM. O fundo musical perfeito para cozinhar massa.

Senti-me tentado a ignorar o toque, uma vez que o esparguete estava quase pronto e Claudio Abbado se aprestava para conduzir a Orquestra Filarmónica de Londres ao auge da intensidade dramática. Por fim, não tive outro remédio senão atender. Podia ser alguém conhecido a querer entrar em contacto comigo por causa de uma nova proposta de trabalho. Baixei o gás, fui até à sala e levantei o auscultador.

peço dez minutos do teu tempo disse uma mulher do outro lado da linha.

Costumo ser bom a reconhecer uma pessoa pela voz, mas confesso que nunca tinha ouvido aquela.

– Desculpe, mas com quem é que deseja falar? – perguntei educadamente.

­Contigo, é óbvio. Dez minutos. Dá-me apenas dez minutos do teu tempo. Vais ver que conseguimos entender-nos na perfeição. – A mulher tinha uma voz suave e profunda, mas, tirando isso, impossível de descrever.

– Entender-nos?

– Entender-nos no que toca aos sentimentos um do outro.

Meti a cabeça através da porta e espreitei para dentro da cozinha. Uma nuvem de vapor branco saía da panela com a massa ao lume e Abbado continuava a dirigir La Gazza Ladra.

– Vai ter de me desculpar, mas tenho o esparguete quase pronto. Importa-se de ligar mais tarde?

Haruki Murakami, Crónica do pássaro de corda (1997, 1998)
[Lisboa, Casa das Letras, 2006, cap.1., p. 7]