19 de junho de 2022

Haruki Murakami e a fabulosa crónica do pássaro de corda

「近所の木立からまるでねじでも巻くようなギイイッという規則的な鳥の声が聞こえた。我々はその鳥を「ねじまき鳥」と呼んでいた。クミコがそう名付けた。本当の名前も知らなければ姿も見たことが無い、毎日近所の木立にやってきては、我々の属する静かな世界のねじを巻く
村上春樹、『ねじまき鳥クロニクル』(1994-1995)

O impacto causado pela leitura dum novo título de Haruki Murakami resulta sempre numa aventura difícil de explanar. As palavras existem mas fogem-nos quando tentamos fazê-lo de modo claro e eficaz. O mais mediático criador nipónico de histórias dos nossos dias quiçá de todos os tempos não foge à regra nesta fabulosa Crónica do pássaro de corda (1994-1995), tida por alguns como a sua obra maior. Sou incapaz de o afirmar com uma certeza absoluta, inexistente no universo das imagens verbais desenhadas com engenho e arte. Cada leitor é um mundo subjetivo único, capaz de se apossar a seu modo das potencialidades estéticas dum objeto de criatividade plástica e de albergar em si a faculdade inalienável de as julgar a seu bel-prazer. A fórmula mais circunspecta de resolver o dilema talvez resida na ideia de que o melhor ainda está para vir. A ver vamos.   

Estruturalmente, este romance foi ideado como uma trilogia. As seis centenas e picos de páginas que a conformam estão reunidas em três livros numerados e com subtítulos distintos  La gazza ladra (de junho a julho de 1984); O pássaro profeta (de julho a outubro de 1984); O caçador de pássaros (de outubro de 1984 a dezembro de 1985) , que conheceram uma existência autónoma aquando do seu lançamento no país de origem. A edição num único volume continua a parecer-me uma solução mais adequada. A versão reduzida em tamanho de bolso equivale também ao formato ideal para suprir a falta de espaço para alojar os tomos escritos com palavras impressas. Os interesses comerciais dos editores mantêm-se de pé sem beliscaduras visíveis e o interesse dos leitores é aumentada sem perderem o fio condutor da história com hiatos desnecessários de permeio.

Se se tivesse de caraterizar a totalidade deste mega relato a uma só palavra, esta penderia sem reserva para as imediações do insólito. O manancial de casos detetados capítulo a capítulo é inesgotável. A órbita genérica do Estranho impõe-se como uma realidade ubíqua, contrariando a tendência instintiva do leitor transpor as estremas do estritamente natural, apesar do aviso do cronista nos arrastar para a esfera perene duma realidade verosímil questionável. As ligações subliminares ao distópico ano de 1984 orwelliano já andam no ar a funcionarem como percursoras do icónico 1Q84 murakamiano. Nesta quase fábula gizada na véspera dum novo milénio, o autor nipónico não evoluíra ainda para a concreção clara das manifestações do sobrenatural, a despeito de subsistirem algumas dúvidas nas etapas finais de cada um dos retábulos do tríptico, logo abafadas pelas hipóteses oníricas levantadas pelo protagonista.

A série de eventos bizarros, atípicos, chocantes, singulares e incríveis arrolados no testemunho datado abre com o telefonema erótico duma voz feminina anónima, cuja identidade ficará por revelar até ao final da crónica ocorrido dezoito meses mais tarde. Enquanto a abertura de La gazza ladra de Rossini soa na rádiodá-se notícia do sumiço do gato que o casal Toru e Kumiko Okada possuía no seu apartamento de Tóquio. Prossegue um pouco depois com a partida inesperada da própria mulher para parte incerta e por motivos que o evoluir dos factos narrados irá avançando de forma pouco clara. O felino acaba por regressar a casa tão inesperadamente como partira o mesmo não acontecendo no período de tempo narrado com a dona. A mediar estas ausências e na ânsia de as desvendar desenrola-se a rotina do jovem assistente jurídico desempregado cuja vivência regista por escrito para memória futura sua ou deleite estético nosso.

Lidas as três partes do livro, tenho outro em lista de espera. Mas não será de imediato que o vou abrir e visitar. É forçoso haver, pelo menos, umas férias de permeio. Uma pausa estratégica ocupada com outros cenários imagéticos. As situações enigmáticas com que por vezes nos vamos deparando também necessitam de descanso. A normalidade do dia a dia agradece. Imitar um pouco o herói obscuro da crónica por si lavrada e descer ao poço sem água para alumiar as trevas do nosso inconsciente. Seguir de perto a postura do jovem cronista marcado com uma mancha na cara e tentar preencher os abismos labirínticos que habitam dentro de nós. Pegar num taco de basebol defensivo e substituir no jardim da casa abandonada a ave de pedra incapaz de voar por um pássaro de corda capaz de separar o sonho da realidade. Vê-lo chegar todos os dias dum arvoredo próximo e ouvi-lo trinar um canto constante e estridente. Senti-lo a enrolar mecanicamente os parafusos do nosso pequeno e pacato mundo à procura duma energia vital, cósmica e universal.

EPÍGRAFE
«Vindo do arvoredo ali próximo chegava até nós o canto constante, estridente, de um pássaro que parecia estar a dar corda a algum mecanismo. Chamávamos-lhe o pássaro de corda. Foi Kumiko que se lembrou de lhe chamar assim. Não sabíamos ao certo o seu verdadeiro nome nem tão-pouco que aspeto tinha. Mas isso tanto fazia ao pássaro de corda. Todos os dias vinha até ao arvoredo perto de casa e punha-se a dar corda ao nosso pequeno e pacato mundo.»
Haruki Murakami, Crónica do pássaro de corda (Lx, CdL: Ⅰ, 11)

2 comentários:

  1. Um texto muito interessante, Prof, que desperta o apetite para ler este título que a criatividade literária do autor torna sugestivo. Fiz o intervalo da leitura de Murakami após as 634 páginas de "Kafka à beira-mar" e ainda não regressei, pois o cruzamento do insólito com o fantástico torna, na realidade, a sua leitura num exercício de intensa concentração...

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    1. Artur Henrique Ribeiro Gonçalves
      Ernestina Santos Esta «Crónica do pássaro de corda» não ultrapassa os limites do Estranho definidos por Todorov na sua definição teórica dos géneros do Fantástico. Exige, todavia, uma leitura espaçada e tanto quanto possível tranquila. Por isso só regressarei à sua companhia lá mais para a frente, depois dum descanso retemperador de forças contabilizado em alguns meses. O eterno candidato ao Nobel da literatura que me perdoe. A talho de foice, devo dizer que o «Kafka à beira-mar» continua a ser um dos meus preferidos.

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