“It is an illusion that youth is happy, an illusion of those who have lost it; but the young know they are wretched for they are full of the truthless ideal which have been instilled into them, and each time they come in contact with the real, they are bruised and wounded. It looks as if they were victims of a conspiracy; for the books they read, ideal by the necessity of selection, and the conversation of their elders, who look back upon the past through a rosy haze of forgetfulness, prepare them for an unreal life. They must discover for themselves that all they have read and all they have been told are lies, lies, lies; and each discovery is another nail driven into the body on the cross of life.”
Aproveitei o uso forçado da máscara social antivírus, peguei numa remanente desses tempos conturbados e folheei um dos romances mais marcantes da minha adolescência, um relato de aprendizagem iniciática, a Servidão humana (1915) de W. Somerset Maugham, com alguns toques autobiográficos facilmente detetáveis do autor. Reli-o numa assentada como o fizera na primeira vez. As palavras escritas há mais dum século por um dos mestres da ficção literária voltaram a apoderar-se de mim. Não necessariamente pelas mesmas razões que então me terão prendido, mas pelo poder que nesses dois momentos tiveram de me despertar para a história do homem e do sentido da vida, sintetizada na fábula do rei oriental e inscrita num esfarrapado tapete persa. Fi-lo num volume resgatado da poeira dum alfarrabista, idêntico ao que um empréstimo malsucedido me fizera perder irremediavelmente há uma porção de anos. Aquele que eu havia lido nos meus verdes anos tinha-o adquirido, se a memória não me falha, na feira do livro de Lisboa. Este que agora tenho comigo foi-me oferecido pela minha filha mais velha, quando soube de tristeza que me havia causado a perda da edição sublinhada e anotada nos finais da década de 60.
A eleição do melhor livro da nossa vida depende da altura em que o fizermos, das perguntas que nessa altura nos colocarmos e das respostas então obtidas. O mesmo se poderá dizer para a arte, a música, o cinema. Paradoxalmente, é mais fácil fazê-lo aos 20 anos do que aos 70. Há muito mais à frente ainda para descobrir, mas muito pouco ainda para escrutinar. Dos inúmeros exemplares depositados na minha biblioteca pessoal e dos que passaram a ocupar outras estantes desconhecidas, resisti à vontade de os voltar a ler. Este Bildungsroman de Philip Carey continua a ser de longe uma das poucas exceções a essa recusa visceral. Alguma razão haverá. Provavelmente por continuar a ser o mais carregado de desafios significativos, de revelações feitas e a fazer, por estar ancorado no longo processo de formação do autor/narrador-protagonista, com o qual, mutatis mutandi, me continuo a identificar.
Recordo ter sentido como minha a desilusão vivida pelo jovem órfão retratado ao comprovar a ineficácia da misericórdia divina. Orara fervorosamente ao altíssimo para que o curasse do pé boto com que nascera e vira gorado esse seu desejo tão pungente, apesar de o ter feito com toda a credulidade exigida pelos textos sagrados. Ironicamente, o pedido que a fé genuína duma criança não obtivera de Deus, seria de certo modo alcançado pela ação da ciência cirúrgica no final do relato. A descrença no sobrenatural metafísico instala-se na história fingida contada como se fosse verdadeira e ajudou-me também a mim a acompanhar esse movimento irreversível de libertação do transcendente religioso até ao momento presente. O deleite e proveito da leitura manifesta-se muitas vezes com estas pequenas coisas, sempre com efeito duradouro.
De navegação em navegação pelas águas virtuais da Net, avistei a primeira versão filmada do texto impresso, dirigido em 1934 por John Cromwell, com Leslie Howard e Bette Davis nos principais papéis. Na presença do original contado em letras de forma, fui obrigado a considerar esta transposição duma narrativa emblemática para o grande ecrã como um fracasso completo. Restringe-se ao amor/ódio representado pelos heróis/anti-heróis que dão corpo à sequência central do drama, omitindo todas as fases que a antecedem e transformando significativamente as seguintes. Privilegia a parte sórdida do romance e apaga todos os momentos que ajudaram o biografado a encontrar um equilíbrio emocional no final do seu processo de formação pessoal. A pintura, a filosofia, a literatura, o teatro, a religião. Os tais elementos que me sensibilizaram então como leitor sedento de seguir pistas modelares de aprendizagem e permitem agora fazer um balanço adequado. Aqueles que me permitem nos dias que correm afirmar que o livro de eleição dos meus verdes anos deixou de ser o mais significativo da minha curta vida para se tornar num dos mais importantes na idade madura, aquela em que a separação absoluta entre o real e o imaginário se inviabiliza definitivamente.