30 de dezembro de 2024

Elena Ferrante, histórias do tempo intermédio de quem vai e de quem fica

«Andarsene. Filar via definitivamente, lontano dalla vita che avevamo speri-mentato fin dalla nascita. Insediarsi in territori ben organizzati dove davvero tutto era possibile. Me l'ero battuta infatti. Ma solo per scoprire, nel decenno a venire, che mi ero sbagliata, che si trattava di una catena con anelli sempre più grandi: il rione rimandava alla città, la città all'italia, l'Italia all'europa, l'europa a tutto il pianeta. E oggi la vedo cosi: non è il rione a essere malato, non è Napoli, è il globo terrestre, è l'universo, o gli universi. E l'abilità consiste nel nascondere e nascondersi lo stato vero delle cose.»
Elena Ferrante, Storia di chi fugge e di chi resta (2013)

Na natureza, um rio inicia sempre o seu curso numa nascente e corre depois a maior ou menor velocidade para a foz. Tudo começa, regra geral, no alto duma montanha e termina invariavelmente numa zona baixa junto ao mar. Entre o partir e o chegar, vai ganhando caudal com os eventuais afluentes encontrados no caminho. Na literatura, os chamados romans fleuve também traçam percursos semelhantes, sobretudo naqueles em que se traça com todo o vagar disponível do mundo o nascimento-vida-morte duma personagem ou dum conjunto delas, ligadas entre si por um qualquer tipo de amizade, rivalidade ou camaradagem, em que os laços de sangue por vezes presentes desempenham um papel muito variado.

É o que se passa, de certo modo, com as duas amigas retratadas por Elena Ferrante na Tetralogia Napolitana. O grande rio narrativo formado pelos itinerários de Lila Cerrullo e de Lena Greco encontra no seu trajeto uma ou várias ilhas de permeio que o subdivide em dois braços discursivos autónomos, repartidos alternadamente por diversos capítulos. Tanto o caudal central como os laterais recebem outros riachos menores, constituídos pelas vidas individuais/coletivas dos vários núcleos familiares presentes na saga. Rios e afluentes surgem devagar na «infância» e «adolescência» das heroínas [vol. i], ampliam-se na «juventude» [vol. ii], particularizam-se no «tempo intermédio» [vol. iii] e caminham a passos largos para a «maturidade» e «velhice» [vol. iv]. Esse destino final, porém, só o conheceremos quando abrirmos a etapa final da saga, aquela em que a morte talvez visite uma das figuras nucleares, que só pode a da narrada, já que a narratária se terá de manter viva para manter a coerência realista até então seguida sem a atraiçoar.

Fiquemos, entretanto, na História de quem vai e de quem fica (2013), i.e., na história paralela da narradora-protagonista, que se mudou para Florença depois de casada, e na história da deuteragonista-narrada, que ficou em Nápoles nesta terceira fase da série. As suspeitas de se tratar duma espécie de autobiografia da autora avolumam-se a cada passo, ínvias de aferir, por se ignorar a sua identidade. Esta não ousa revelar as suas coordenadas pessoais, talvez por temer um confronto com os nomes/apelidos dados às personagens maiores/menores da ficção por si urdida, aquelas que, por definição, tanto lhes faria serem chamados dum modo ou doutro. Tão pouco se fica a saber de ciência segura em que bairro da periferia napolitano situou o núcleo central da ação. Dizem tratar-se de Rione Luzzatti, um subúrbio pouco turístico que não me recordo de ver referido no livro. Lapso meu, por certo, ou fantasia de alguns visitantes da cidade, prováveis exploradores do tal túnel-fronteira que o isolará decisivamente da restante teia urbana.

Intencionalmente ou não, Elena-Ferrante/Greco omite o título dos dois romances que a criadora interna da crónica napolitana compôs. Em contrapartida, não se coíbe de registar os ecos das críticas então tecidas a seu respeito, as elogiosas e as hostis, idênticas às que atualmente se veem registadas nos meios de comunicação com expressão global a propósito da obra que temos entre mãos. Uma autorreferência disfarçada volta a ser uma conjetura muito forte a ter em atenção. Pouco importa. O sucesso editorial dos dois corpos literários resulta uma realidade inquestionável, com caminho aberto à tradução e à divulgação fora das lindes italianas. Em literatura, tudo é simultaneamente um ser/não-ser indissociáveis em todas as linhas. Os resultados plasmados na receção duma obra depende de muitas subjetividades, entre as quais sobressaem as expressas pelos leitores, as únicas entidades capazes de transformar um bestseller numa obra-prima. Contemos com essa realidade.  
EPÍGRAFE
«Ir embora, isso sim. Pirarmo-nos dali para sempre, para longe da vida que havíamos vivido desde que nascêramos. Fixar-nos em  sítios bem organizados onde tudo fosse realmente possível. Eu conseguira pôr-me a andar. Mas viera a descobrir, nas décadas que se seguiram, que me enganara, que se tratava duma  corrente cujos elos eram cada vez maiores: o bairro remetia para a cidade, a cidade para a Itália, a Itália para a Europa, a Europa parta todo o planeta. E hoje vejo as coisas assim: não é o bairro que está doente, não é Nápoles, é o globo terrestre, é o universo, ou os universos.» 
Elena Ferrante, História de quem vai e de quem fica,. Lisboa, Relógio d'Água (19)

24 de dezembro de 2024

500 anos do nascimento de Luís Vaz de Camões e da morte de Vasco da Gama

Vasco da Gama & Luís de Camões
Medalha do quarto centenário da descoberta o caminho marítimo da Índia

Vasco da Gama morreu na véspera de Natal de 1524, o ano que se convencio-nou aceitar para o nascimento de Camões. As duas vidas tocaram-se (quase).
Frederico Lourenço, Camões. Uma antologia (2024)

Alfa & Ómega

Num dia como hoje, há precisamente 500 anos, morria em Cochim Vasco da Gama (1469-1524), o navegador lusíada que fez a ligação marítima entre Portugal e a Índia (1498), locais onde vira a luz do dia pela primeira e última vez. Jaz no subcoro da igreja do Mosteiro dos Jerónimos em Lisboa, a par de Luís de Camões (1524-1580), em dois monumentais túmulos neomanuelinos criados pelo escultor Costa Mota ali colocados em 1880, o Almirante-Mor dos Mares da Índia no lado norte e o Príncipe dos Poetas Portugueses no lado sul.

Na véspera do Natal, celebra-se uma das festividades litúrgicas mais significativas do catolicismo de raiz ocidental, o nascimento dum pregador religioso judeu que estaria na origem do Cristianismo. Não se sabe de ciência certa o local e data da efeméride, havendo alguns mesmo que duvidam ter tido uma existência real, mas isso são contas doutro rosário. Festeja-se e pronto. Presépios alusivos, pinheiros natalícios, sapatinhos na chaminé, prendas a granel, iluminações citadinas e o diabo a sete às custa do Menino Jesus.

Diz-se por aí que Cervantes e Shakespeare terão morrido a 23 de abril de 1616. Diz-se mas erradamente, dado que, à época, Madrid já se regia pelo novo calendário gregoriano, enquanto Londres se mantinha no velho calendário juliano, separados entre si por 10 dias. Acasos à parte, o alfa de Camões e o ómega de Gama têm uma margem de veracidade maior, dado que se prescinde da indicação dum dia exato e se refere apenas ao ano de 1524, aquele em que o vate terá sido dado à luz do dia e o nauta a viu pela derradeira vez.

Ignoro se existe um plano comemorativo do trespasse do descobridor de rotas oceânicas. Provavelmente será tão envergonhado e insípido como o dedicado ao advento do trovador de cantos épicos. É que tanto um como outro continuam a ser tão ostracizados pelos órgãos da cultura, como se fossem personae non gratae nesta res publica de casos e casinhos efetivos e efabulados pelos artífices de polémicas feitas à medida da clientela política da altura. É pena, porque datas similares só se voltarão a repetir daqui a meio milénio e nenhum de nós estará cá para as testemunhar pessoalmente. É certo e sabido.

18 de dezembro de 2024

Olhares d'el-Rei Dom Sebastião olhados por Cristóvão de Morais

Dom Sebastião (c. 1571-1574)
Cristóvão de Morais
[Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga]

Olhem para mim! ‒ parece dizer-nos Dom Sebastião (1554-1578) ‒, sou rei desde os 3 anos de idade e, mais dia menos dia, vou ser imperador do mundo. Portugal e Algarves d'Aquém e d'Além-Mar em África não me chegam como reinos há muito herdados pela Graça de Deus. Os Senhorios da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia são só o início dum Quinto Império que a dimensão dos territórios antanho dominados por Assírios, Persas, Gregos e Romanos nunca alcançaram.

Olhem-no, como eu o estou a olhar agora! diz-nos o galgo de caça d'O Desejado, muito compenetrado do seu papel ‒, o derradeiro Cavaleiro-Cruzado da Cristandade a terras da Moirama já está de espada em punho e de armadura engalanado. Levar-me-á com ele ou estou aqui só como figura de decoração num quadro de aparato maneirista. Olho-o e quase lhe beijo a mão, mas o olhar majestático do meu soberano já está virado para outros horizontes distantes, onde o olhar dum canis lupus familiaris não seria muito bem olhada.

Olhem-no, pronto para partir para Marrocos! ‒ sugere-nos o olhar artístico de Cristóvão Morais, ao retratar a meio corpo O Encoberto na flor da idade, que nunca chegou a abandonar, teria então 17 anos (ou talvez 20) e finar-se-ia ingloriamente no campo de batalha de Alcácer-Quibir aos 24 anos. O bisneto por partida dupla, a materna e a paterna, de Dom Manuel Primeiro, não regressaria vivo de Marrocos, à procura duma grandeza sonhada, logo convertida em pesadelo para todos aqueles que seguiram e lhe sobreviveram.    

O olhar enigmático e distante do único monarca lusitano morto a terçar armas continua a olhar-nos como uma das joias maiores expostas destacadamente no Museu de Arte Antiga de Lisboa, ali mesmo às Janelas Verdes. Diz-se também que o seu corpo remido se encontra sepultado no Convento de Santa Maria de Belém, o Mosteiro dos Jerónimos, num túmulo monumental, mas, aí, o seu olhar real não se deixa olhar por ninguém. Só o podemos imaginar com algum esforço, com o poder dos mitos e contramitos nos concedem.

12 de dezembro de 2024

Javier Marías, todas as almas cruzadas numa passagem fugaz por Oxford

 
«Dos de los tres han muerto desde que me fui de Oxford, y eso me hace pensar, supersticiosamente, que quizá esperaron a que yo llegara y consumiera mi tiempo allí para darme ocasión de conocerlos y para que ahora pueda hablar de ellos. Puede, por tanto, que —siempre supersticiosamente— esté obligado a hablar de ellos. No murieron hasta que yo dejé de tratarlos. De haber seguido en sus vidas y en Oxford (de haber seguido en sus vidas cotidianamente), tal vez aún estuvieran vivos.»
Javier Marías, Todas las almas (1989)

Javier Marías abre abruptamente a crónica memorialista da voz enunciadora do Todas as almas (1989) com a notícia de dois dos seus três companheiros de Oxford terem partido para a tal viagem sem regresso, aquela que nos espera a todos no final do nosso ciclo vital. Ficamos sem saber a sua identidade imediata, nem sequer nos são revelados os laços de maior/menor intimidade que os ligaria no seu convívio de dois anos que estabelecera enquanto conferencista, tradutor e professor de literatura espanhola do pós-guerra na mais antiga universidade do mundo anglófono. Terá sabido da ocorrência já em Madrid, após ter deixado a cidade, comprometendo-se, então, a falar um pouco nas três centenas de páginas do relato, distribuídas pelas dezassete secções/capítulos não numerados do testemunho retrospetivo composto em modo de romance.

A revelação da trindade de amigos anunciada logo na primeira frase da exposição será efetivada nos seus derradeiros parágrafos. Até à divulgação final dos seus nomes do sobrevivente e dos falecidos ‒, vão sendo fornecidas pistas para a resolução satisfatória do enigma, assentes nos muitos fragmentos de vida com que o relator teve ensejo de se cruzar durante a sua passagem efémera por terras insulares de além-Mancha. A história do viajante do tempo, os avistamentos fortuitos com a mulher que fumava na estação de Didcot, o encontro com o homem coxo e o cão deficienteNo seu intento de esmiuçar com precisão clínica as idiossincrasias britânicas, não faltou também ao académico recenseador assunto para caricaturar de modo mordaz as perturbações por si sentidas naquele mundo fora do mundo doado pela instituição oxoniense. Colegas, colégios, costumes, cerimónias, tradições, rivalidades, maledicências. A ironia campeia, o sarcasmo impõe-se, a farsa triunfa.

O contacto casual com mendigos, pedintes e vagabundos, antigos espiões e segredos familiares mal guardados, antiquários, livreiros, alfarrabistas, conhecidos e desconhecidos, alterna com um convívio mais estreito com a amante ocasional, o marido traído e o confidente e amigo desses tempos de missão universitária dum estrangeiro anódino na cidade do mundo onde menos se trabalha. Palavras suas proferidas na primeira pessoa, como aliás em toda a resenha de factos acontecidos num passado relativamente recente. Ensejo para entrar em conexão com a obra de dois obscuros cultores de novelas de terror e fantasia, o já esquecido Arthur Machen, tradutor, crítico literário, jornalista e ator de teatro galês, e o obscuro John Gawsworth, escritor britânico, pretenso rei de Redonda, ilha remota do Caribe. Episódios soltos, registados um pouco ao acaso, sem a preocupação de lhes dar uma sequência cronológica precisa no cômputo geral do informe deste caderno de notas especial.

A contracapa da Alfaguara faz eco da equívoca identificação do narrador e autor do livro desde a sua publicação, hipótese de tal guisa insistente que levou o ficcionista a refutá-la posteriormente, no arranque da Negra espalda del tiempo (1998), título que registei na minha memória de leitor curioso de enveredar pelas sendas das falsas novelas, as tais que se situam na fronteira imprecisa entre os factos acontecidos e os inventados. Mais tarde ou mais cedo, ainda o vou encontrar por aí, para uma visita curiosa e esclarecedora da polémica. Convergências/divergências que não cabem aqui esmiuçar, digamos que o hipotético cunho biográfico do novelista se restringe a um período de tempo muito breve. Depois de regressar ao país natal, muitas outras histórias passíveis de serem efabuladas terá vivido, representadas pelo ator que as encarnou, até partir de vez como as almas aludidas no seu mister docente em terras inglesas. Mais uma vítima do Covid, mais uma que nos deixou precocemente com muitas memórias para lembrar e contar. Ironias trágicas da condição humana que a criatividade artística não pode evitar.

6 de dezembro de 2024

Sinestesias miradas

Vincent van Gogh

De sterrennacht | A noite estrelada (1889)

[NY, Museum of Modern Art - MoMA]
Olhares, Visões, Prismas, Miragens 
Dizem que Vicent van Gogh era daltónico. O mesmo se diz também de Leonardo da Vinci, Miguel Ângelo, Tintoretto, Claude Monet, Paul Cezanne ou Andy Warhol. Outros haveria decerto a apontar, se esse modo especial de olhar o mundo perturbasse o jeito como os seus adeptos olham essas sinestesias de cores pintadas a óleo, guache, pastel, aguarela e acrílico nas telas, tábuas, frescos que nos legaram.

Como teria o grande mestre neerlandês colorido A noite estrelada, se não sofresse da alegada anomalia genética de visionar as diferentes frequências de luz refletida nos corpos? Como seria o sorriso da Mona Lisa, se a paleta cromática do seu criador tivesse sido outra? Por certo não atrairiam as multidões habituais no MoMA e no Louvre. Um se muitíssimo longo, inexistente na mancha gráfica que o regista.

As outras suposições fantasiosas para os demais gestores de cores elencados seria igualmente incomensurável. Os fitares, enfoques, prismas e miragens planas vistas com profundidade imaginada pelo engenho e arte da perspetiva. Perceções combinatórias de natureza sensorial distinta, que os espreitares atentos conseguem enxergar nos espaços cobertos com todas as matizes presentes no arco-íris. 

Olhar distorcida da Mona Lisa de Leonardo da Vinci

1 de dezembro de 2024

Do branco-azul real ao verde-rubro republicano da bandeira em riste

Silva e Sousa, A querela da bandeira (1910)
            «Guerra Junqueiro e Teófilo Braga»            

Registam com esmero didático os manuais escolares oficiais, bem como os guias de pretensa divulgação popular ou de duvidosa cultura histórica, corresponder o verde da bandeira nacional à esperança do povo português e o vermelho à coragem por si manifestada em batalha. Informações patrióticas que os leitores comuns aceitam de ânimo leve, sem pestanejar, como se se tratasse de verdades axiomáticas, e que não se cansam de repetir à tripa forra para memória futura.

Reclamam os monárquicos empedernidos da junção republicana destas duas cores, tão pouco ortodoxa em termos heráldicos, reivindicando a reposição da harmonia multissecular da união real do branco e azul usada desde o tempo dos Borgonhas fundadores. Guerras de alecrim e manjerona transferidas para a tessitura simbólica do estandarte do país, em que todos esbracejam e ninguém tem razão, caricaturado por Silva e Sousa na «Querela da Bandeira» ocorrida em 1910.

Consta que no tempo da restauração dinástica de 1640, o pendão de Dom João IV estava ornado com uma bordadura azul sobre fundo branco. Longe ainda da adoção do campo partido bicolor que os Braganças aprovaram em 1822 e Dona Maria II passou a usar em 1834, após a vitória final dos Liberais sobre os Absolutistas e a sua reposição no trono real de Portugal e Algarves. Uma tradição, afinal, bastante recente, que num cômputo benevolente não atinge a cifra redonda duma centúria.

Arredados de vez os mitos enganosos das origens e clamados os contramitos reveladores da verdade. Digamos que a cruz azul em fundo branco, usado pelo Conde Dom Henrique, se referiria à sua dupla condição de cruzado e capetíngio, intimamente associado ao poder político francês. Por seu lado, o verde-rubro atual mais não representava do que as cores dos ideias, partidos e instituições que haviam realizado a revolução, decerto com bravura e anseio de dias melhores republicanos, está bem de ver.

A nova Bandeira Nacional

26 de novembro de 2024

Elena Ferrante, histórias da juventude e do novo nome da amiga napolitana

«Non abbiamo sbagliato niente, Lina, dobbiamo solo chiarire un po' di cose. Tu non ti chiami più Cerullo. Tu sei la signora Carracci e devi fare quello che ti dico io. Lo so, non sei pratica, non sai cos'è il commercio, ti pensi che i soldi li trovo per terra. Ma non è così. I soldi li devo far crescere. Hai disegnato le scarpe, tuo padre e tuo fratello sanno faticare bene, ma voi tre insieme non siete in grado di far crescere i soldi. I Solara sì, e allora - stammi bene a sentire - non me ne fotte niente se quella gente non ti piace. Marcello fa schifo pure a me, e quando ti guarda anche solo di sguincio, quando penso alle cose che ha detto di te, mi viene voglia di ficcarli un coltello nella pancia. Ma se mi serve per far crescere i soldi, allora diventa il migliore amico che ho.»
Elena Ferrante, Storia del nuovo cognome (2012)

E a saga das duas amigas continua. Quando Lila se casou com o primogénito de Dom Achille, o papão dos contos infantis que tinham povoado o seu imaginário meninil, adotou o apelido do marido. Trocou o Cerrullo paterno pelo Carracci conjugal. Assim se justifica o sentido dado por Elena Ferrante à História do novo nome (2012), o segundo ato da Tetralogia Napolitana, aquele que trata da juventude da narradora e da narratária internas do romance, coprotagonistas também elas do mesmo. Retomei a leitura desta dupla peregrinação biográfica pouco depois de ter atravessado os anos iniciais de amizade de Lenù e Lina, as figuras centrais retratadas. Fi-lo apesar dos reparos que me foram fazendo, a alertar-me para o facto de se tratar dum longo relato memorialista de grande sucesso editorial, assente numa linguagem do dia a dia, sem grandes créditos literários atestados. Registei os anticorpos tecidos a seu respeito e prossegui a minha viagem retrospetiva sem problemas de transcurso.

Catalogado desde logo como um bestseller, vertido para uma trintena de idiomas e publicado nos mais diversos quadrantes geográficos, dificilmente o podemos inserir no grupo cimeiro almejado por todos das obras-primas intemporais do engenho artístico feito com palavras. É que se os primeiros se leem de cabo a rabo numa assentada, quase sem conseguirmos parar para respirar, a leitura dos segundos faz-se também de ponta a ponta, muitas vezes mais por dever que por prazer. Nestes casos extremos, ficamos com a sensação do final se achar nos confins dum mundo ignoto, muito para além do horizonte dos eventos visíveis. Muito melhor será navegar nas águas cristalinas dos livros de referência pessoal, aqueles em que nos obrigamos a percorrer muito lentamente, para retardar a chegada inevitável ao termo, certos, porém, que, mais tarde ou mais cedo, voltaremos à sua companhia uma e várias vezes, na íntegra ou parcelarmenteO maior obstáculo reside no facto destes últimos serem difíceis de encontrar e quase nunca coincidirem com os mais vendidos ou louvados.

A hipotética aurea mediocritas horaciana, convocada pela misteriosa autora deste roteiro conexo de vidas napolitanas, remete-nos para um universo igual a tantos outros na sua diversidade. O fio condutor decorre entre o enlace/separação da amiga genial, a inspiradora do título desta segunda etapa da série novelesca, gizada com muitos acertos/desacertos intermédios, namoros encetados/terminados, em polifonia complementar com outras tantas uniões circunstanciais de cônjuges/amantes ocasionais ou permanentes, mescladas com um sem-número de traições-rancores-escaramuças, em paralelo com uma mão-cheia de amores/desamores cruzados, todos eles envoltos numa larga rede de mexericos, boatos e diz-que-disse, plasmados num bairro sem nome conhecido, subúrbio da cidade capital da Campânia e populosa metrópole da Itália. Nada de mais que um conjunto de existências não comporte em qualquer parte do mundo.

O teor dos oito cadernos contidos na caixa de metal confiada pela filha mal-casada do sapateiro à filha do porteiro da câmara municipal, acrescidos com algumas conversas e confidências avulso, bem como dos testemunhos presenciais, a entidade narrativa reconstrói com precisão milimétrica os eventos ocorridos na distante década de sessenta, assegurando, assim, o estatuto de revelação pessoal credível a tocar a omnisciência. No final da retrospetiva, a emissora interna confidencia ter escrito e publicado o seu primeiro romance, focado num episódio marcante da sua vida. Recorre então a uma voz de terceira pessoa, para afastar a subjetividade presente na série napolitana. A dúvida que se instala é a de saber até que ponto esta Elena Greco da ficção não esconde a verdadeira Elena Ferrante da capa do livro. Determinar se a realidade e a imaginação não andam mais uma vez de mãos dadas. Quem sabe se a continuação da leitura dos restantes tomos desta tetralogia que pretendo fazer ‒ malgrado a pretensa superficialidade argumentativa de que é acusada ‒ não me dará pistas para lhe dar cobertura, conquanto meramente especulativas.


«Não errámos nada, Lina, só temos de esclarecer algumas coisas. Tu já não te chamas Cerullo. És a senhora Carracci e deves fazer aquilo que eu te digo. Bem sei que não es prática, não sabes o que é o comércio, pensas que eu encontro o dinheiro no chão. Mas não é assim. O dinheiro tenho de ganhá-lo todos os dias, tenho de pô-lo onde possa crescer. Tu desenhaste os sapatos, o teu pai e o teu irmão sabem trabalhar bem, mas os três juntos não são capazes de fazer crescer o dinheiro. Os Solara sim, por isso - e ouve bem o que te digo - estou-me nas tintas se tu não gostas daquela gente. O Marcello também a mim mete nojo, e quando olha para ti, mesmo só de esguelha, quando penso nas coisas que ele disse de ti, dá-me vontade de lhe cravar uma faca na barriga. Mas se me é útil para fazer crescer o dinheiro, então passa a ser o melhor amigo que tenho.» (29-30)

20 de novembro de 2024

Pilares marítimos da cultura portuguesa

Laterais: folhas de rosto d'Os Lusíadas (1572 ) e das Flores de Música (1620)
C
entro: gravura alemã dos «Jerónimos» (1650) e «Painel do Infante» (c. 1450)
Inferior: anotação musical dum Tento de Manuel Rodrigues Coelho

TESE MARÍTIMA
«A força atrativa do Atlântico, esse grande mar povoado de tempestades e de mistérios, foi a alma da Nação e foi com ele que se escreveu a história de Portugal.»
Jorge Dias, Os elementos fundamentais da cultura portuguesa (1950)

Espinhosa tarefa essa de estabelecer os elementos fundamentais duma determinada cultura, sobretudo se se referir a uma realidade multissecular como é o caso da nossa. Jorge Dias ousou fazê-lo em 1950, quando apresentou no I Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, realizado em Washington, uma tese subordinada a essa temática na secção de antropologia cultural. Identificou as dificuldades sentidas e centrou o resultado do seu trabalho na força atrativa do grande mar oceano, exercida desde na configuração da personalidade-base do país, que sintetiza em quatro pilares ou formas de pensar do génio criador português e canaliza para a criação literária, arquitetónica, pictórica e musical. Ei-los.

O edifício identitário nacional tem como suporte poético máximo Os Lusíadas (1572) de Luís de Camões. Assente nos dez cantos de oitavas decassilábicas, a grande viagem de descoberta do caminho marítimo para a Índia justifica perfeitamente a linha central de raciocínio seguido pelo etnólogo na sua comunicação. Vasco da Gama é erguido à categoria de herói épico, desenhado à maneira dos seus antecessores gregos e romanos, assume o comando da expedição, encarrega-se de relatar aos seus anfitriões orientais as glórias pretéritas do povo luso por si representado e prepara naquele tempo histórico ali vivido a revelação antecipada das muitas glórias vindouras a efetuar nos quatro cantos da terra e do mar.

A celebração das expedições às terras dos Algarves, Guiné, Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, feitas nos mares oceanos ocidentais e orientais no período áureo das navegações, encontra-se exaltado em pedra no Mosteiro dos Jerónimos (1501-1601), entendido como padrão comemorativo da expansão marítima global efetuada sob a égide da Casa de Avis. Os elementos evocativos dos novos mundos visitados encontra-se copiosamente representada no complexo monumental de Belém, rendido ao manuelino então predominante e replicada em muitos outros edifícios de traça sacra e civil dessa e doutras épocas. É o caso dos túmulos escolhidos pelo revivalismo romântico para os túmulos do poeta e navegador festejados ali sepultados.

A ereção da ilustre casa lusitana prossegue com o Políptico (c. 1470) de Nuno Gonçalves, atualmente exposto nas Janelas Verdes no Museu Nacional de Arte Antiga. A eleição desta obra paradigmática da cultura portuguesa deve-se ao facto de no designado painel do Infante se encontrar a alegada figura de D. Henrique, o grande impulsionador da política das viagens marítimas, por isso mesmo cognominado o Navegador. Tudo seria perfeito se se desse o caso do enigmático homem do chapeirão ser o elemento mais famoso da Ínclita Geração. Polémicas à parte, parece não caber dúvidas que o Senhor de Sagres se encontra representado numa das tábuas quatrocentistas. Soluções alternativas credíveis não faltam.

O mais intrigante pilar indicado pelo conferencista na capital federal dos Estados Unidos da América, em meados do século passado, assenta nas Flores de Música (1620) de Manuel Rodrigues CoelhoA questão que de imediato se coloca é detetar a presença do mar nos Tentos para órgão, cravo e arpa ali coligidos pelo mestre de capela alentejano das catedrais de Badajoz, Elvas e Lisboa. A resposta só se poderá obter através da audição atenta das peças e à visão das respetivas partituras. A sucessão de subidas/descidas presentes nas composições perfeitamente visíveis na ondulação sistemática das notações musicais orientadoras da execução/navegação harmoniosa das melodias instrumentais ali desenhadas com engenho e arte.

À distância de sete décadas e meia de ter sido proferida, a tese marítima de Jorge Dias continua a ser editada, lida e comentada nos nossos dias. Mantém-se atual, apesar de não poder ser entendida dogmaticamente como uma constante perene da cultura portuguesa. A presença do mar foi muito discreta nos períodos limítrofes do Renascimento-Maneirismo-Barroco que moldaram a nossa idade dourada. Desempenhou um papel muito discreto nos tempos medievais e assim permanece nos contemporâneos. Outros pilares teriam de ser evidenciados, na certeza, porém, de se encontrarem forçosamente na sombra dos traçados pelo espírito criador lusitano do nosso devir histórico pretérito a apontar para o vindouro.

Jorge Dias, Os elementos fundamentais da cultura portuguesa. Lx: INCM, 1950