31 de maio de 2024

Mario Vargas Llosa e os misticismos lupanares da casa verde do prazer

«Tanto deseaban mujer y diversión nocturna estos ingratos, que al fin el cielo ("el diablo, el maldito cachudo", dice el padre García) acabó por darles gusto. Y así fue que apareció, bulliciosa y frívola, nocturna, la Casa Verde.»
Mario Vargas Llosa, La casa verde (1966)
O mais complexo romance de Mário Vargas Llosa, La casa verde (1966), é, também ele, o segundo da sua longa produção literária. Senti uma certa dificuldade inicial na decifração da sua estrutura interna, singularidade desconhecida, insignificante ou inexistente na restante obra publicada em datas posteriores. Felizmente para os seus futuros leitores, que as experiências laboratoriais de escrita desenvolvidas no espaço europeu e americano na primeira metade do século passado foram deixadas pelo caminho. Assim o tivessem feito outros criadores de histórias fingidas, para se aproximarem mais das histórias de vidas reais com que nos cruzamos todos os dias.   

Depois de ter lido e relido de modo continuado e paciente os longos períodos e parágrafos preambulares, de ter escrutinado por tentativa e defeito as possíveis técnicas romanescas exploradas pelo ainda jovem ficcionista peruano, a luz começou a surgir ao fundo do túnel e as principais coordenadas compositivas começaram a emergir uma a uma da penumbra em que as havia encontrado mergulhadas nos trechos de abertura do relato. Ultrapassados esses obstáculos para vencer o labirinto discursivo desenhado cuidadosamente com régua e compasso, entreguei-me ao encadeamento de avanços e recuos cronotópicos na confluência entrecruzada persistente de memórias, sucessos, peripécias, episódios, casos, eventos, repartidos por cinco secções devidamente assinaladas, cada uma delas encabeçada por um prólogo, seguidas por três/quatro unidades diegéticas distintas e culminando com um epílogo catalizador de toda a fabulação, de idêntico modo partilhado pelos núcleos narrativos referidos.

No frenesim de saltitar duns fragmentos romanescos para outros, na oscilação constante entre si, acabamos por identificar três polos-base que unificam todo o processo imagético em curso, consubstanciado nas figuras de Don Anselmo, do Sargento Lituma e do bandido Fushía, nada que os folhetins radiofónicos ou as novelas televisivas não conheçam e pratiquem à exaustão. Com a ação centrada nos palcos cénicos na cidade de Piura, sita no deserto da costa norte do Peru, e em Santa María de Nieve, povoado estabelecido no seio da floresta equatorial banhada pelas bacias hidrográficas do Maranhão e Amazonas, o destino destas três figuras-charneira desenvolve-se ao longo dumas quatro décadas em perfeita simbiose com os demais intervenientes da trama, cujos nomes seria fastidioso registar. É neste ambiente primitivo que o destino da Casa Verde (o bordel que empresta o nome à obra) se vai traçando, linha após linha, página após página, sequência após sequência.

Superado o bloqueio preliminar aludido, a viagem visual outorgada pela veia criativa dum dos mais galardoados autores atuais até pode ser descrita como agradável. O esquema rígido, idealizado como se fosse uma poesia submetida às regras mais rígidas duma poética prescritiva clássica avessa a qualquer tipo de desvio estilístico, acabou por ampliar o proveito e deleite obtido no final do trajeto. Fecha-se o livro e ficamos com a sensação de ter perpassado o olhar por um grande retábulo representativo dum mundo ignoto, por uma pluralidade de painéis de vidas pintadas numa missão de monjas, numa guarnição militar numa ilha fluvial, num selva tropical ou num bairro problemático do antigo Império Inca, ainda habitado pelos nativos Huambisas, Aguarunas e Shapras, em guerrilha tenaz com os conquistadores cristãos oriundos do outro lado do mar. Moldura exótica para o nosso olhar quotidiano habituado a outros horizontes mais restritos de eventos que a literatura, com a sua capacidade de pintar com palavras os universos construídos na nossa imaginação, nos presenteia a cada momento.

27 de maio de 2024

Sinestesias perfumadas

Aromas, Odores, Cheiros, Fragrâncias

Maio é considerado o mês da flores, mas como se diz que Portugal é um jardim à beira-mar plantado, digamos haver também por aqui um imenso canteiro vicejante durante todas as estações do ano. Uma paleta matizada de eflúvios, aromas, odores, cheiros, exalações e fragrâncias luminosas, numa sinestesia perfumada de cores, formas e olores mil, catalisadoras de todos os sentidos com sentido.

As minhas memórias olfativas enviam-me para as emações intensas da maresia atlântica, das flores do verde pino, dos eucaliptos e das laranjeiras estremenhas, do musgo nos presépios natalícios e da terra molhada depois duma chuvada há muito esperada. De vez em vez, até me recordo dos vapores sulfurosos das termas da minha infância. Flashes fugazes que o tempo traz e leva a cada momento.

E quem fala de flores fala de pólens fala também de alergias, de coça-coça e de espirra-espirra. É que afinal não há bela sem senão. Olhá-las e cheirá-las tem os seus prós e contras bem definidos. Bálsamo e lenitivo para os olhos, espinhos e abrolhos para o nariz. Só nos resta recorrer às naturezas mortas com vida duma Josefa d'Óbidos a cheirar a verniz sem os efeitos nefastos dos jardins.

22 de maio de 2024

Seis autores, seis obras, seis aberturas

SEIS NOMES POR ORDEM ALFABÉTICA
Hélia Correia - João Aguiar - José Saramago - Lídia Jorge - Maria Velho da Costa - Mário de Carvalho

A assinalar o Dia do Autor Português

1. Hélia Correia, Montedemo (1983)

Mais tarde alguns lembraram que tudo começou naquele domingo seco em que a terra tremeu. Coisa sem importância, num instante seco sentida noutro instante acalmada, nem mesmo Irene a tonta pensou que lhe servisse de mote em pregaçãoUm tremor ligeirinho no afrouxar da noite, hora de moribundos e de bêbedos, todos pensando que se balouçavam em líquidos maternos, quentes e protetores. Os outros, muito poucos, que estavam acordados: mulheres suspensas do tossir das crias, velhos apunhalados por insónias, tinham ficado em dúvida se fora realmente o chão que se ondeara numa sacudidela ou se tontura provocada por um sangue de repente engrossado ao de cima dos olhos. O padre chegou mesmo a confessar que achara muito estranho terem tocado os sinos apenas com aquele abanãozico. Mas a manhã nasceu radiosa e gelada, e o próprio mar parecia tão sem peso, tão dançarino e limpo de pecado que o assunto passou ao esquecimento.

2. João Aguiar, Navegador solitário (1996)

Eu hoje faço quinze anos mas era melhor que não os fizesse. Tive um dia lixado e pra começar o meu velho obrigou-me a trabalhar no restaurante a servir os almoços e eu nunca gosto de lá trabalhar mas no dia dos anos é pior que nos outros dias e depois a velha não me deixou sair à noite com o Angelino e a outra malta porque apareceram visitas e no fim de tudo ainda tive de começar a escrever esta merda de diário ou lá como lhe chamam e eu não gosto nada de escrever não me importo de ler porque há a Bola e há os livros de caubóis mas escrever isso é mesmo contra vontade porque é uma chatice e a gente ainda tem de pôr vírgulas mas eu vírgulas não vou nessa não ponho que se lixe.

3. José Saramago, Memorial do convento (1982)

D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou. se murmura na corte, dentro e fora do palácio, que a rainha, provavelmente, tem a madre seca, insinuação muito resguardada de orelhas e bocas delatoras e que só entre íntimos se confia. Que caiba a culpa ao rei, nem pensar, primeiro porque a esterilidade não é mal dos homens, das mulheres sim, por isso são repudiadas tantas vezes, e segundo, material prova, se necessária ela fosse, porque abundam no reino bastardos da real semente e ainda agora a procissão vai na praça. Além disso, quem se extenua a implorar ao céu um filho não é o rei, mas a rainha, e também por duas razões. A primeira razão é que um rei, e ainda mais se de Portugal for, não pede o que unicamente está em seu poder dar, a segunda razão porque sendo a mulher, naturalmente, vaso de receber, há de ser naturalmente suplicante, tanto em novenas organizadas como em orações ocasionais. Mas nem a persistência do rei, que, salvo dificultação canónica ou impedimento fisiológico, duas vezes por semana cumpre vigorosamente o seu dever real e conjugal, nem a paciência e humildade da rainha que, a mais das preces, se sacrifica a uma imobilidade total. depois de retirar-se de si e da cama o esposo, para que se não perturbem em seu gerativo acomodamento os líquidos comuns, escassos os seus por falta de estímulo e tempo, e cristianíssima retenção moral, pródigos os do soberano, como se espera de um homem que ainda não fez vinte e dois anos, nem isto nem aquilo fizeram inchar até hoje a barriga de D. Maria Ana. Mas Deus é grande.

4. Lídia Jorge, O dia dos prodígios (1980)

Um personagem levantou-se e disse. Isto é uma história. E eu disse. Sim. É uma história. Por isso podem ficar tranquilos nos seus postos. A todos atribuirei os eventos previstos, sem que nada sobrevenha de definitivamente grave. Outro ainda disse. E falamos todos ao mesmo tempo. E eu disse. Seria bom para que ficasse bem claro o desentendimento. Mas será mais eloquente. Para os que creem nas palavras. Que se entenda o que cada um diz. Entrem devagar. Enquanto um pensa, fala e se move, aguardem os outros a sua vez. O breve tempo de uma demonstração.

5. Maria Velho da Costa, Casas pardas (1977) 

Que lindo dia, que lindo dia, margaridinhas de olho de oiro palmeirando mínimas os canteiros na berma da rua, tráfego, gentes, tudo vestido de roupa lavada, do bruto azul das nove, pressa limpa, pressa boa, deixai-me em paz e ao meu passo manso, cabeça azoada de vozes de toda a noite fechada a ver se aprendo, leixai toda a esperança de onde vos tendes lavado e para onde ides, fugidos, correntes e determinados, ganhá-lo, ganhá-lo, ‒ ganho, se o houver para mim, será aqui nesta clareza do não cegado de saltos de retina entre as noites cerradas, || Era já noite cerrada dizia o filho p’ra mãe debaixo daquela arcada passava-se a noite bem, Canta o resto, canta Lala, Agora, Zizinha, deixe-me as fitas do avental, credo, que seca, olhe a sua mãezinha que vem lá, O pai deixa, || E esta ovação clara do dia passar passando, passo leve e ar já quente, rudo tão recorte contra azul, o peito aliviado, a vista ardente a ver exatíssimo contorno de tudo, prédios, este rosa de tinta esgarçada com varandas, verde aquele pintado agora, e os elétricos que são a cor da cidade que agride, amarela a tinir a esta minha hora visionária do visível, carregadora ambulante do sétimo sentido que é o ouvido-dizer, Há num carro de bois que atravessa a cidade com hortaliça todas as madrugadas, há, disse o Amigo.

6. Mário de Carvalho, «Ignotus Deus» IN A inaudita guerra da avenida Gago Coutinho (1983)

Na semana de Pentecostes, faleceu quase toda a irmandade, de uma morte serena, mui natural. Os mais dos frades deixaram a vida com um sorriso suave, o corpo tranquilo expelindo fragrâncias olorosas. Aos dois sobreviventes, Frei Abel e Frei Domingos, nem roçou suspeita de epidemia, perante uma morte assim tão simples, tão sem sofrer. Fora servido o Senhor chamar a si os seus servos, e com brandura o fez, concedendo-lhes um trespasse em santidade, sem convulsões e sofrimentos das carnes e das almas, que cilícios e penitências e disciplinas haviam já macerado avonde.

17 de maio de 2024

O status mata-frio do capote alentejano

capote alentejano castanho

Não, não é o capote que tive, usei e perdi nos anos 70, mas não desdenharia que fosse meu. Esta foto saquei-a na Net. Aquele que em tempos vesti novinho em folha foi-se de vez há uma eternidade. Gasto, coçado, puído.

Lembro-me com frequência daquele capote alentejano trazido por mão amiga diretamente de Elvas. Ter-me-á custado a módica quantia de 65$00, uns meros 0,32€ impensáveis nos dias que agora correm a grande velocidade.

Durante dois/três anos letivos, serviu-me de traje académico, numa altura em que a capa e batina estavam tacitamente vedadas em Lisboa. Adaptei-o consoante a necessidade do momento a cobertor, toalha e almofada.

Desisti de adotar um de novo igual ao de então. Nunca vi nenhum aqui por estas bandas meridionais. Pesados, quentes, incómodos. Os modelos das vestimentas atuais seguem outros padrões. Europeus, mundiais, globais.

O status mata-frio do capote afirma que a chuva forte molha o capote e quem anda de capote no verão ou é pobre ou ladrão, i.e, se quem tem capa sempre escapa, então com gabão escapa ou não e com capote escapa a galope.

13 de maio de 2024

Ilustre desconhecido com nome de rua

Arte vintage de soldados de brinquedo

Passei com caráter permanente os primeiros dezoito anos da minha vida na rua Capitão Filipe de Sousa, ilustre desconhecido com nome inscrito na toponímia citadina. Nessas duas décadas incompletas, nunca me questionei quem seria esse oficial. Hoje em dia continuo na mesma. Por mais que o procure no Dr. Google, a situação persiste imutável, sem satisfazer a minha curiosidade tardia. Sem dúvida, alguém importante terá sido, para nomear artéria urbana que à data fazia a ligação Lisboa–Porto.

A rua da minha infância e adolescência foi palco de muitos préstitos solenes da mais diversa ordem. Por ela peregrinavam em datas precisas os fiéis devotos das aparições de Fátima, por ela passavam em alegre parada circense as estrelas maiores e menores do Arriola Paramés, por ela desfilavam em vistoso cortejo cavaleiros, toureiros, peões de brega e forcados das corridas à antiga portuguesa, por ela marchavam os recrutas de RI5 rumo à carreira de tiro situada nas aforas da cidade termal da rainha.

À janela da casa dos meus verdes anos, recordo os romeiros dum santuário mariano estremenho, revejo os elefantes, lantejoulas, palhaços, faz-tudos e festões do maior espetáculo do mundo, relembro os coches de gala a caminho da praça de touros, revivo os passos ritmados dos futuros combatentes das guerras africanas. Na rua com nome dum ilustre desconhecido rememoro os trajetos de aparato que por ali se fizeram só desconheço os percursos de vida do militar que lhe deu nome.

A singularidade de saber o nome e o posto dum ilustre desconhecido remete-me para os efeitos perversos da efemeridade da fama. Igualam a glória do momento de tantos famosos virtuais fabricados pelas redes sociais a usurparem o espaço devido aos notáveis reais atirados para um nimbo forçado. Vivem no reino do império minuto, tão depressa erguido como caído. Estrelas-cadentes fugazes duma noite serena de verão, meteoritos celestiais incendiados em contacto vertiginoso com a atmosfera terrestre.

ADENDA
Afinal as informações sobre o ilustre desconhecido com nome de rua andavam por aí perdidas à espera que alguém as encontrasse e revelasse. Esse alguém é um velho colega/amigo de longa data com residência numa acolhedora Casa da Ginja, que merece a pena visitar frequentemente em formado virtual dum blogue concebido como uma gaveta de memórias.

CABO DA VILA
O Rol dos Confessados, de 1656, fala-se no Cabo da Vila, com 20 fogos e, em 1792, referem a rua que vai para o cabo da Vila, no foro imposto em umas casas e que paga Matias da Silva, desta vila, á confraria do Rosário.
No «Livro do lançamento das décimas do ano económico de 1844 a 1845» é já mencionada a como rua. 
Em 20 de Novembro de 1857 é intimado Ricardo da Silva Ribas a abrir a vala que recebe as águas do agueiro da Júlia, porque deterioram a rua do Cabo da Vila, e em 2 de Dezembro a Câmara deu parte ao engenheiro Mousinho (Luiz da Silva Mousinho de Albuquerque?) da obstrução do Pontão do Cabo da Vila,obrigando as águas a correrem por esta rua e pela do Jardim, danificando-as.
Em 1889 ainda assim é denominada. Na sessão da Câmara compareceu o proprietário Caetano Policarpo, oferecendo-se para calçar o agueiro público [14] que passa junto da sua casa, na rua do Cabo da Vila, «pondo-se assim em estado de asseio a não prejudicar a saúde pública.
A vereação, em sessão de 13 de Maio de 1890, a requerimento de 33 cidadãos, deliberou «que fosse denominada a rua do Cabo da Vila, rua Capitão Felipe de Sousa, perpetuando o nome do valente capitão do exército do Ultramar, Caetano Felipe de Sousa, natural desta vila, que faleceu em acção na Guiné, defendendo, ali os direitos da Nação Portuguesa». [15] 
Rui Forsado, As ruas das Caldas (achegas para uma toponímia caldense).
Caldas da Rainha: Tipografia da Gazeta das Caldas, 1968 (pp. 14-15)

9 de maio de 2024

Cafés e cafetarias na Europa de Steiner

Εὐρώπη | Eúrṓpē

A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. Não há cafés antigos ou definidores em Moscovo, que é já um subúrbio da Ásia. Poucos em Inglaterra, após um breve período em que estiveram na moda, no século XVIII. Nenhuns na América do Norte, para lá do posto avançado galicano de Nova Orleães. Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da «ideia de Europa».

George Steiner, A Ideia de Europa (2006: 26)

NOTA
A celebrar a Europa no dia que lhe é dedicado

8 de maio de 2024

Escudetes em cruz e besantes em aspa com estrelas de sete pontas aos cantos

Morabitino de Ouro de Dom Sancho I

[Lisboa - Museu da Moeda]

Estalou tempos uma polémica sobre a configuração das quinas na rosa-dos-ventos da Praça do Império em Lisboa. Mais uma a juntar às muitas a que o brasão de armas português anda associado, com direito a validação certificada pelo Polígrafo SIC. Desconheço se o reposicionamento respeitou a cronologia da expansão portuguesa representada no mapa (1418-1525), i.e., com os escudetes laterais e central direitos, com as pontas voltadas para baixo, tal como a heráldica oficial os colocou em 1482-1485, no reinado de D. João II.

Mais recentemente, o Sebastião Bugalho da AD trocou os alhos por bugalhos no discurso de candidatura às eleições para o Parlamento Europeu. Clarificando: contou os sete castelos do escudo português e chamou-lhes quinas. Trocas e baldrocas involuntárias com que se fazem os faits divers mediáticos, as gaffes politiqueiras e os lapsus linguæ discursivos. Mero deslize que nem chega a constituir uma verdadeira polémica digna desse nome. Piada malparida por um jovem comentador televisivo promovido a cabeça-de-lista partidário.

Mitos e contramitos gerados em torno dos símbolos nacionais têm sido recorrentes ao longo dos séculos que inscrevem a sua criação, gestação e fixação atual. As quinas mal contadas pelo aspirante a eurodeputado bem podiam ser nove se nos reportarmos ao brasão atribuído a D. Afonso Henriques e que certamente nunca terá usado na Batalha de Ourique. Os primitivos sinais do rei/reino adotados pela república mais não são do que simples escudetes com um número variável de besantes que o morabitino de D. Sancho I reduz a quatro.

Cinco escudos em cruz e vinte besantes em aspa com quatro estrelas de sete pontas aos cantos assinalam, a ouro, o poder dos Borgonha de cunhar moeda própria. Remontam a uma data incerta próxima da subida ao trono d'O Povoador (1185), cerca de meio século após O Fundador ter terçado armas com as taifas islâmicas do al-Andalus (1139). Sinete pessoal simbólico a afirmar o poder do rei e o prestígio do reino face às demais cabeças coroadas peninsulares, que o devir histórico adaptaria, mutatis mutandi, em emblema nacional do país.

Diz a sabedoria popular que em casa onde não pão todos ralham e ninguém tem razão. por estas bandas de pobretes e alegretes num país à beira-mar plantado, fantasiam-se os momentos de crise com os feitos memoráveis dignos de figurarem para sempre no armorial nacional. Idealiza-se a origem divina da monarquia lusitana com Jesus a coroar o seu primeiro rei e a vencer com a sua égide cinco reis mouros no campo de liça. Cenário milagroso que a atual historiografia afastou de vez, mas o imaginário coletivo teima em repetir e celebrar.

BRASÕES DE DOM AFONSO HENRIQUES

2 de maio de 2024

Olhares do velho sentado no limiar da eternidade olhado por Vincent van Gogh

Vicent van Gogh

Oude man in verdriet - op de drempel van de eeuwigheid  (1890)
[Kröller Müller Museum – Otterlom – Nederland]

EXPRESSIONISMOS OLHADOS E PINTADOS

Olho o «Velho em tristeza no limiar da eternidade» (1890) com o olhar cristalizado, que Vicent van Gogh lhe outorgou a duas dimensões coloridas, nos olhares de quem o olha e é olhado. Olho-o também eu com o olhar emprestado de quem o olhou à distância ou de perto, ao longo dos anos que ali permanece imóvel, sentado à espera que a morte chegue e nunca mais chega. Gloriosa, libertadora, irrepetível.

O velho que é olhado por quem o quer olhar baixa o olhar e não nos quer olhar. Olhar de quem está à espera de partir para outros espaços sem olhares à vista reserva-se o direito de se deixar olhar de olhos tapados. Olha para dentro de si mesmo como ele sabe olhar. Pede a ajuda das mãos. Dedos crispados junto aos olhos selados. Quem o olhar que imagine o que o estará a olhar com um olhar velado.  

Imagino olhá-lo de cabeça levantada e rever o olhar com que o meu avô materno me olharia depois de ter ido ao encontro da eternidade era eu uma criança. Exercício difícil de realizar com o paterno que não cheguei a conhecer. Duro também recriar o olhar do meu pai que não teve tempo de chegar a velho como o velho que olhamos sem ser olhados no Kröller Müller Museum de Otterrlom nos Países Baixos.

Olho e reolho o velho da tela e não me vejo e revejo em tristeza à espera que a morte chegue. Os olhos com que me olho agora são os olhos com que sempre me olhei sem nunca se deixarem olhar olhos nos olhos como se olham os olhos dos outros. Não me quero olhar a ser olhado assim, a imitar os expressionismos olhados e pintados pelo pintor no ano exato em que partiu ao encontro da eternidade.