“Memory is the seamstress, and a capricious one at that. Memory runs her needle in and out, up and down, hither and thither. We know not what comes next, or what follows after. Thus, the most ordinary movement in the world, such as sitting down at a table and pulling the inkstand towards one, may agitate a thousand odd, disconnected fragments, now bright, now dim, hanging and bobbing and dipping and flaunting, like the underlinen of a family of fourteen on a line in a gale of wind.”
Entrei no universo imagético de Virgínia Woolf há duas décadas e de modo indireto. Fi-lo através das longas e iteradas alusões ao Orlando: uma biografia (1928), traçadas nas seis dezenas e meia de páginas dum conto de Lídia Jorge sobre o desejo, cujo nome partilha com a antologia que o aloja, «O Belo Adormecido» (2004). Deste primeiro contacto com o icónico romance da ficcionista britânica, vieram-me de imediato à mente ecos remotos doutros relatos igualmente centrados num insólito virado para a esfera explícita do maravilhoso puro, com um destaque especial para os cenários sobrenaturais pintados por Oscar Wilde no Retrato de Dorian Gray. Um encontro fortuito com uma edição de bolso dum dos textos pioneiros da pós-modernidade europeia permitiu-me conhecer a história singular desse/a lord/lady sui generis, nascido/a nos finais da era isabelina e ainda vivo/a e de boa saúde à data da publicação do livro. Tinha então 36 anos de idade e testemunhara a substituição dinástica dos Tudor pelos Stuart, na passagem da centúria de quinhentos para a de seiscentos, e ter atravessado como se nada fosse a república efémera instituída pelo Protetorado Britânico e os sucessivos reinados dos Hanôver, Saxe-Coburgo-Gota e Windsor.
O caráter prodigioso no trajeto existencial do biografado capaz de impressionar os leitores está, pois, ancorado em dois polos axiais que percorrem os seis capítulos da crónica: a mudança enigmática de sexo do aristocrata inglês e a sua misteriosa longevidade de mais de 300 anos bem contados. Tudo acontece dum modo inesperado e sem obedecer a uma regra espectável de causa-efeito. As varinhas de condão dos contos tradicionais estão ausentes na totalidade da sua tessitura textual. Tudo se passa com a maior tranquilidade. A barreira racional entre o natural e o sobrenatural só se verifica fora da mancha gráfica do livro. No seu interior tudo é possível e aceite sem reboliços. A beleza e graciosidade masculina/feminina não é retratada numa tela como o fez o dramaturgo e romancista irlandês já referido. Tão pouco recorre a uma pele de onagro para satisfação dos desejos do seu proprietário, como Balzac idealizou em La peau de chagrin (1831), ou duma campainha mágica capaz de eliminar à distância um riquíssimo funcionário chinês, como Eça de Queiroz gizou n'O Mandarim (1880). As palavras escritas são mais do que suficientes para a criadora inglesa em apreço. A alotopia instala-se lentamente na fábula e mantém-se de pedra e cal até ao seu derradeiro ponto final.
O mundo alternativo plasmado nesta resenha memorialista, aquele que nos permite aceitar que a nossa condição de seres viventes é diferente daquilo que é, ou seja, que se pode passar por artes de berliques e berloques desconhecidos da condição de homem para a de mulher, sem recorrer a nenhuma intervenção cirúrgica e terapia hormonal, ou de manter uma eterna juventude, sem se submeter à voragem insaciável dos dias, semanas, meses, anos e séculos. O senso comum obriga-nos a separar os eventos trazidos à colação num duplo fluxo temporal da realidade factual e do imaginário fictício. Os sucessivos espíritos de época sucedem-se paulatinamente uns aos outros, modelando simultaneamente o perfil do protagonista na dimensão cronotópica desenhada pela História e pela Literatura. A verdade, a franqueza e a honestidade, o vício, o crime e a miséria, o amor, nascimento e morte tidos pelas pessoas anónimas/nomeadas coetâneas dos reis e rainhas, nobres e plebeus, amos e serviçais, funcionam como autênticos mestres da personagem desenhada com engenho e arte pela entidade demiúrgica que lhe deu vida nas laudas impressas duma efabulação de faz-de-conta.
As aventuras e desventuras, as conquistas e derrotas, as viagens e pousadas, recebidas, descritas e vividas em ambientes urbanos e rurais, constituem as peças-chave com que se vai erigindo o percurso labiríntico do/a herói/heroína da trama. Jornal fingido de múltiplas leituras, nem sempre claras, é considerado pelos seus exegetas como o produto diegético mais acessível composto pela sua artífice. Avaliação difícil de confirmar por quem não conhece a totalidade da sua obra, como é o meu caso. Não descarto a hipótese de preencher esta lacuna, caso detete algum título seu numa próxima visita a uma livraria. A ver vamos. Entretanto, não me coíbo de expressar a minha vontade de ver a performance de Tilda Swinton no écran (1992), gorada que está, a possibilidade de ver a de Isabelle Huppert no palco (1993), atrizes aludidas por Lídia Jorge na mise en abyme literária referida. As intenções estão tomadas. Assim os fados que nos dizem dirigir os passos me permitam concretizá-los quando para aí estiverem voltados.
Que bela aula de Literatura, Prof! Faz-me constatar com tristeza que a minha memória continua a atraiçoar-me, pois do livro os aspetos mais expressivos já se me escaparam... Há que reler ambos, tanto Orlando, como o conto de Lídia Jorge. Que bela aula de Literatura, Prof! Faz-me constatar com tristeza que a minha memória continua a atraiçoar-me, pois do livro os aspetos mais expressivos já se me escaparam... Há que reler ambos, tanto Orlando, como o conto de Lídia Jorge.
ResponderEliminar