「私は死ぬこと自体はそんなに怖くはなかった。ウィリアム・シェイクスピアが言っているように、今年死ねば来年はもう死なないのだ。考えようによっては実に簡単なことだ。しかし死んだあとで頭蓋骨を棚に並べられて火箸でこんこんと叩かれるというのはどうもあまり気がすすまなかった。死んだあとまで、自分の中から何かをひっぱりだされることを考えただけで私の気は|滅《め》|入《い》った。生きることは決して容易なことではないけれど、それは私が私自身の裁量でやりくりしていることなのだ。だからそれはそれでかまわない。『ワーロック』のヘンリー・フォンダと同じだ。しかし死んだあとくらいは、静かにそっと寝かせておいてほしかった。私は大昔のエジプトの王様が死んだあとでピラミッドの中に閉じこもりたがった理由がよくわかるような気がした。」村上春樹 「世界の終りとハードボイルド・ワンダーランド」(1985)
Haruki Murakami é um fabulista singular. Cada vez me convenço mais disso. A escassa meia dúzia de romances que já passou pelo meu crivo de leitor atento leva-me a esta convicção, apesar de ainda desconhecer grande parte da sua já vasta criação literária. Viajou comigo estas férias de verão O impiedoso país das maravilhas e o fim do mundo (1985), cujo título, só por si, não foge à regra aludida, por nos remeter para um amplo cenário de sugestões insólitas comprovativas das suspeitas referidas.
Se tivéssemos de selecionar uma palavra-chave para caraterizar a totalidade do relato, a escolha do vocábulo estranho seria de longe o eleito, tanto por ser um dos mais repetidos e flexionados pelas instâncias produtoras de discurso, como pela essência dos eventos reportados ou vividos pelos agentes centrais/laterais que lhes dão visibilidade ou protagonismo. Se entretanto nos deslocarmos do campo lexical para o semântico dos géneros poéticos, o caso muda de figura. A mera explicação natural das singularidades instadas fracassa em todas as linhas, surgindo de modo irreversível e imediato a premência de recorrer à aceitação sobrenatural do maravilhoso, a rondar de muito perto a esfera alotópica da ficção científica. Tzvetan Todorov e Umberto Eco definem muito bem as etiquetas teóricas acima apontadas.
A estranheza dominante nas cinco centenas e meia de páginas de texto nasce logo na capa do livro, cuja dualidade ecoa depois de o abrirmos e esbarrarmos com uma lídima história paralela dum dois em um, repartida alternadamente pelo país das maravilhas e pelo fim do mundo, a ocuparem nessa ordem vinte capítulos ímpares e outros tantos pares. Em ambos os casos, temos um narrador anónimo de primeira pessoa a partilhar as aventuras surreais por si passadas com um punhado de figurantes também carentes dum nome próprio. Tal como nos contos infantis, limitam-se a ser designados pelo aspeto físico ou ação laboral: Professor, Rapariga Gordinha, Bibliotecária, Calmeirão e Minorca, Guardião, Leitor de Sonhos, Coronel, Sombra, Encarregado da Central Elétrica, Homens e Mulheres.
Sem querer revelar os meandros labirínticos da intriga, digamos que entre os Programadores do Sistema e os Semióticos da Fábrica, com os Invisíveis de permeio, o destino do jovem sujeito de enunciação de Tóquio vai-se traçando numa aproximação-fusão paulatina com o repórter dos eventos ancorados na Cidade dos unicórnios de pelagem multicolorida nas estações quentes e dourada nas frias. As pistas ténues, subtis, suaves, discretas, imperceptíveis, distribuídas às mãos cheias no decorrer do duplo ato narrativo e efetuadas em momentos diferentes, recuperam o ponto de ligação perdido no final da viagem forçada do velho mundo real consciente para o novo mundo imaginado pelo subconsciente do herói/anti-herói relator dos dois cronótopos efabulados.
Os avanços científicos aflorados dispensam a antecipação dum porvir vindouro mais ou menos distante do nosso universo de referências. Tudo se passa nos nossos dias, naqueles que balizaram a escrita e publicação da obra, já lá vão cerca de quatro décadas, numa época em que o Japão e a aldeia global já desenhara cenários distópicos pautados pelos ditames da alta tecnologia. A inventiva literária tem explorado esse filão de associar a cibernética e o punk alternativo, de criar interfaces funcionais entre os computadores e o sistema nervoso interno. Em linhas gerais, o grande mestre das letras nipónicas ensaia nesta ficção a sua forma pessoal de encarar o subgénero diegético do cyberpunk. Fá-lo através das vozes sem nome das personagens que lhe dão vida e nos representam a todos nós. O protagonista é submetido sem para isso ter sido ouvido numa dessas experiências aberrantes e o resultado deixa-se ver no testemunho que nos legou. No final das suas peregrinações pelos subterrâneos pós-modernos, em que viveu mergulhado os seus 35 anos de idade, conquista pela primeira vez o ensejo de exercer o livre-arbítrio, de escolher um dos dois mundos retratados. Os leitores, todavia, terão de esperar até às últimas palavras por si proferidas. Respeitemos-lhe a vontade e saibamos lê-lo sem interrupções até então.