29 de agosto de 2024

Haruki Murakami, o país cyberpunk das maravilhas e o fim do mundo surrealista

私は死ぬこと自体はそんなに怖くはなかった。ウィリアム・シェイクスピアが言っているように、今年死ねば来年はもう死なないのだ。考えようによっては実に簡単なことだ。しかし死んだあとで頭蓋骨を棚に並べられて火箸でこんこんと叩かれるというのはどうもあまり気がすすまなかった。死んだあとまで、自分の中から何かをひっぱりだされることを考えただけで私の気は|滅《め》|入《い》った。生きることは決して容易なことではないけれど、それは私が私自身の裁量でやりくりしていることなのだ。だからそれはそれでかまわない。『ワーロック』のヘンリー・フォンダと同じだ。しかし死んだあとくらいは、静かにそっと寝かせておいてほしかった。私は大昔のエジプトの王様が死んだあとでピラミッドの中に閉じこもりたがった理由がよくわかるような気がした。
村上春樹 「世界の終りとハードボイルド・ワンダーランド」(1985)

Haruki Murakami é um fabulista singular. Cada vez me convenço mais disso. A escassa meia dúzia de romances que passou pelo meu crivo de leitor atento leva-me a esta convicção, apesar de ainda desconhecer grande parte da sua já vasta criação literária. Viajou comigo estas férias de verão O impiedoso país das maravilhas e o fim do mundo (1985), cujo título, por si, não foge à regra aludida, por nos remeter para um amplo cenário de sugestões insólitas comprovativas das suspeitas referidas.

Se tivéssemos de selecionar uma palavra-chave para caraterizar a totalidade do relato, a escolha do vocábulo estranho seria de longe o eleito, tanto por ser um dos mais repetidos e flexionados pelas instâncias produtoras de discurso, como pela essência dos eventos reportados ou vividos pelos agentes centrais/laterais que lhes dão visibilidade ou protagonismo. Se entretanto nos deslocarmos do campo lexical para o semântico dos géneros poéticos, o caso muda de figuraA mera explicação natural das singularidades instadas fracassa em todas as linhas, surgindo de modo irreversível e imediato a premência de recorrer à aceitação sobrenatural do maravilhoso, a rondar de muito perto a esfera alotópica da ficção científica. Tzvetan Todorov e Umberto Eco definem muito bem as etiquetas teóricas acima apontadas.

A estranheza dominante nas cinco centenas e meia de páginas de texto nasce logo na capa do livro, cuja dualidade ecoa depois de o abrirmos e esbarrarmos com uma lídima história paralela dum dois em um, repartida alternadamente pelo país das maravilhas e pelo fim do mundo, a ocuparem nessa ordem vinte capítulos ímpares e outros tantos pares. Em ambos os casos, temos um narrador anónimo de primeira pessoa a partilhar as aventuras surreais por si passadas com um punhado de figurantes também carentes dum nome próprio. Tal como nos contos infantis, limitam-se a ser designados pelo aspeto físico ou ação laboral: Professor, Rapariga Gordinha, Bibliotecária, Calmeirão e Minorca, Guardião, Leitor de Sonhos, Coronel, Sombra, Encarregado da Central Elétrica, Homens e Mulheres.

Sem querer revelar os meandros labirínticos da intriga, digamos que entre os Programadores do Sistema e os Semióticos da Fábrica, com os Invisíveis de permeio, o destino do jovem sujeito de enunciação de Tóquio vai-se traçando numa aproximação-fusão paulatina com o repórter dos eventos ancorados na Cidade dos unicórnios de pelagem multicolorida nas estações quentes e dourada nas frias. As pistas ténues, subtis, suaves, discretas, imperceptíveis, distribuídas às mãos cheias no decorrer do duplo ato narrativo e efetuadas em momentos diferentes, recuperam o ponto de ligação perdido no final da viagem forçada do velho mundo real consciente para o novo mundo imaginado pelo subconsciente do herói/anti-herói relator dos dois cronótopos efabulados.

Os avanços científicos aflorados dispensam a antecipação dum porvir vindouro mais ou menos distante do nosso universo de referências. Tudo se passa nos nossos dias, naqueles que balizaram a escrita e publicação da obra, já lá vão cerca de quatro décadas, numa época em que o Japão e a aldeia global já desenhara cenários distópicos pautados pelos ditames da alta tecnologia. A inventiva literária tem explorado esse filão de associar a cibernética e o punk alternativo, de criar interfaces funcionais entre os computadores e o sistema nervoso interno. Em linhas gerais, o grande mestre das letras nipónicas ensaia nesta ficção a sua forma pessoal de encarar o subgénero diegético do cyberpunk. Fá-lo através das vozes sem nome das personagens que lhe dão vida e nos representam a todos nós. O protagonista é submetido sem para isso ter sido ouvido numa dessas experiências aberrantes e o resultado deixa-se ver no testemunho que nos legou. No final das suas peregrinações pelos subterrâneos pós-modernos, em que viveu mergulhado os seus 35 anos de idade, conquista pela primeira vez o ensejo de exercer o livre-arbítrio, de escolher um dos dois mundos retratados. Os leitores, todavia, terão de esperar até às últimas palavras por si proferidas. Respeitemos-lhe a vontade e saibamos lê-lo sem interrupções até então.

EPÍGRAFE
«Não era propriamente a ideia da morte que me aterrorizava. Como disse William Shakespeare: "Morre este ano e não terás de morrer no próximo." De um certo ponto de vista, convenhamos que a coisa  parecia muito simples. No entanto, a ideia de que, depois de morto, a minha cabeça seria colocada numa prateleira e alvo de pequenos toques dados com pinças não me entusiasmava. Mais: deprimia-me pensar que, uma vez morto, alguém pudesse extrair algo dentro de mim. A vida não é fácil, mas uma pessoa sempre pode ir gerindo o seu destino de acordo com a sua consciência. Como acontece com a personagem de Henry Fonda no filme O homem das pistolas de ouro. Ao menos gostaria que me deixassem descansar em paz. Julguei compreender o desejo manifestado pelos faraós do Antigo Egito, no sentido de serem enterrados no interior das pirâmides.»
Haruki Murakami, O impiedoso país das maravilhas e o fim do mundo (Lx, CdL: L1, cap. 5, p.74)

23 de agosto de 2024

As presas escravas do homem lobo

Anónimo, c. 1570-1580
(Coleção Berardo)
«Sendo embora limitada a utilização comercial em larga escala do trabalho es-cravo, o recurso aos escravos estava generalizado dentro da maioria das socie-dades africanas. A existência deste grande número de escravos era sinal de que havia um dinâmico mercado interno de escravos, e comércio intracontinental dos mesmos. Portanto, muito antes da abertura das rotas da África Ocidental-Atlântico existia um comércio interno e externo de escravos. Através do norte e para leste, já se fazia exportação de escravos em grande número para fora de África pelo menos seis séculos antes da chegada dos Portugueses.»
Herbert S. Klein, O comércio atlântico de escravos.
Quatro séculos de comércio esclavagista (1999)

Homo homini lupus 

A escravatura não foi um monopólio exclusivo de Portugal, Europa ou Ocidente. Inscrita na mais profunda herança genética da humanidade, a sua presença está atestada desde que existem registos escritos, havendo indícios que seria praticada muitíssimo antes, nos alvores da civilização, talvez na transição da fase dos caçadores-recoletores nómadas para a dos agricultores-pastores sedentários. Passou pela Suméria, polis gregas, Roma e demais potentados mesopotâmicos e mediterrânicos, atravessou toda a medievalidade cristã e islâmica, tendo chegado aos tempos modernos, no velho e nos novos mundos descobertos e conquistados.

Muito do comércio atlântico de escravos deveu-se à estreita parceria dos traficantes europeus com os negociadores africanos. Os panos, armas e álcool, cedidos pelos primeiros, eram trocados por homens, mulheres e crianças, capturados pelos segundos nas tribos rivais. Ficavam todos a ganhar em termos políticos, económicos e sociais, refletido nos milhões de seres humanos enviados para as colónias americanas e estados independentes ali criados. Nas vésperas da guerra civil, o número atingia a cifra astronómica de quatro milhões de negros destituídos de liberdade e em absoluta dependência dos senhores esclavagistas.     

Ganha aqui força a conhecida locução latina homo homini lupus (= o homem é o lobo do homem), parafraseada, comentada e adaptada, entre outros, por Plauto, Séneca, Erasmo, Rabelais ou Hobbes. Nesta sentença da sabedoria milenar, não cabe separar os lobos bons dos maus. No que toca ao esclavagismo, todos os homens trazem em si a semente do bem e do mal. A cor da pele, o local de origem, a convicção religiosa, são perfeitamente irrelevantes. Todos eles a conheceram, exerceram e defenderam. Todos eles resistiram a ferro e fogo à sua abolição. Muitos continuam a segui-la na calada da noite ou das teias policiais.

Comemora-se hoje o Dia Internacional em Memória do Tráfico de Escravos e da sua Abolição, data da Revolução de São Domingos, no Haiti, em 1791. O processo começou cedo e acabou tarde. O embrião da erradicação global deste flagelo será seguido pelas potências coloniais europeias muito depois. Os britânicos marcaram o ponto de partida em 1834 e os portugueses em 1869. Curiosamente, as ex-colónias só o terão feito ulteriormente. A Lei Áurea Brasileira, v.gr., teria de esperar até 1888 para ver a luz do dia. Digamos que as forças conservadoras se haviam mudado de armas e bagagens para o outro lado do mar oceano.

16 de agosto de 2024

Gabriel García Márquez e os exercícios da memória de nos vermos em agosto

 

«Había repetido aquel viaje cada 16 de agosto a la misma hora, con el mismo taxi y la misma florista, bajo el sol de fuego del mismo cementerio indigente, para poner un ramo de gladiolos frescos en la tumba de su madre. A partir de ese momento no tenía nada que hacer hasta las nueve de la mañana del día siguiente, cuando salía el primer transbordador de regreso.»
Gabriel García Márquez, En agosto nos vemos (2024)

Quando ninguém esperava que tal pudesse acontecer, soou entre nós a notícia que um dos expoentes máximos das letras hispânicas e universais tinha deixado inédita uma derradeira obra, que a Penguin Randon House prometia publicar a 6 de março, dia de aniversário do autor. O anúncio, divulgado nos finais de dezembro passado, deixou todos os amantes de livros ávidos por ter nas mãos essa lídima prenda de Natal de Gabriel García Márquez, o prometedor do En agosto nos vemos (2024). Pensei desde logo numa hipotética travessia da fronteira para adquirir, in situ, um original ainda a cheirar a tinta e no linguajar nativo do seu criador. Sem muitas delongas de permeio, deparei-me com um exemplar a chamar por mim no expositor dos mais recentes lançamentos da Fnac aqui do burgo. Surpresas que as livrarias e livreiros às vezes nos dão, a porem-nos literalmente de boca aberta e de olhos arregalados.  

Senti uma estranha dificuldade de começar a ler a escassa centena de páginas deste romance/novela ou mero conto, por se tratar ‒ tanto quanto se sabe ‒ das últimas palavras compostas por Gabo. Uma emoção profunda, semelhante à experimentada aquando da divulgação também póstuma das Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas (2014) de José Saramago, com a agravante, neste caso, de terem chegado até nós inacabadas e reduzidas a três únicos capítulos. Sorte a nossa de termos agora ao nosso inteiro dispor um texto completo, editado e anotado por Cristóbal Pera, e rematado com um Prólogo de Rodrigo e Gonzalo García Barcha, filhos do escritor.

Resisto à tentação de resumir aqui neste espaço cada uma das seis partes da história. Seria uma traição inqualificável para todos aqueles que a queiram desfrutar sem a intervenção gratuita de terceiros. Limito-me a remeter para um dos parágrafos iniciais do relato acima transcrito em forma de epígrafe ou para a sinopse registada na contracapa do volume que me abriu as portas para este rito anual de Ana Magdalena Bach ao túmulo da mãe. Faço-o também em termos simbólicos num 16 de agosto, muito embora as visitas da protagonista tenham terminado há cerca duma década, coincidindo, grosso modo, com o decesso do próprio obreiro da resenha estival.

A notícia destas visitas sazonais em dia certo ao cemitério duma ilha caribenha desconhecida esteve em risco de não ver a luz do dia. O enfraquecimento das capacidades mentais do novelista colombiano exigiu-lhe um derradeiro exercício de memória para levar a tarefa a bom termo, sem prescindir para tal do perfecionismo de escrita tão bem conhecido de todos. Por diversas vezes, manifestou a vontade de destruir cada uma das várias versões já compostas, por não terem atingido o desenho final almejado. Aproximava-se, assim, de Virgílio, que, nas vésperas da morte, sentindo-se sem forças para rever a Eneida (19 AEC), deixou instruções para que o poema fosse queimado, por não ter atingido a perfeição por si exigida. Felizmente para todos nós que os últimos desejos destes dois criadores de heróis da imaginação foram ignorados por familiares e amigos. A uns e outros só podemos endereçar o nosso mais sentido agradecimento. Mantiveram ainda mais vivo o legado poético do seu estro artístico. Como terá dito o próprio Gabriel García Márquez: la memoria es a la vez mi materia prima y mi herramienta. Sin ella, no hay nada. 

David de las Heras, cobertura da capa

12 de agosto de 2024

Tráficos de fronteira

JR – Picnic – 2017

TROCAS POR TROCAS

Em meados de setenta, uma ida a Espanha continuava a ser uma aventura cheia de burocracias. Os cravos de abril tinham arrumado de vez as manigâncias mais cabeludas do tempo da outra senhora, mas ainda havia muitas arestas a limar. Os passaportes continuavam de pedra e cal a ser exigidos sem exceção a todos os viandantes raianos, acompanhado da licença militar para os homens em idade de reserva, devidamente controlados dum lado e doutro da fronteira. Trâmites legais rigorosos que a adesão à CEE e ao espaço Schengen aligeirou drasticamente. Realidade que para as gerações nascidas nos dias de hoje lhes parece pertencer à mais pura ficção.

Numa ocasião, deixei os salvo-condutos em casa e foi-me vedado varar o Guadiana. Nesses antanhos, uma peseta valia seis tostões e as compras no lado de saíam mais em conta do que do lado de . Ilusões que o euro desfaria sem pena nem compaixão na viragem do milénio. Sentado ali à espera do regresso da minha cara-metade, anotei o tráfego dos ferrys de serviço: toalhas, tabaco e café para lá; duralexes, chocolates e perfumes para cá. Registei ainda a ida de esfregonas e baldes com flores pintadas para Ayamonte e a vinda de trapeadoras y baldes sin flores pintadas para VRSA. Trocas por trocas, um motivo floral a mais ou a menos faz a diferença.

7 de agosto de 2024

Identidades partilhadas nas Janelas Verdes e na Imprensa Nacional

«Países desde há muito independentes, Portugal e Espanha partilham no entanto uma familiaridade de séculos, que não decorre apenas da contiguidade geográfica, mas foi forjada por relações dinásticas, ligações económicas, laços políticos e estreitas afinidades linguísticas, resultantes da sua pertença comum ao mesmo tronco da cultura latina [...] As peças do Museu Nacional de Arte Antiga expõe agora ao público contam uma parte dessa história, através de obras de arte compradas por igrejas, conventos e mosteiros, ou reunidas em coleções que permanecem até hoje por estudar a fundo. Do século xiv ao início do século xx, estão aqui presentes as grandes correntes da pintura espanhola, cada época representada pelos artistas mais emblemáticos do seu tempo.»
Pedro Adão e Silva, Identidades partilhadas
Lisboa: MNAA - IN, 2023, p. 7
«A exposição dá conta dos estreitos laços que uniram os dois países ao longo da história, e fá-lo através de obras que são o resultado desse movimento humano e artístico. O catálogo proporciona, de resto, uma investigação sobre as características específicas desse intercâmbio artístico e as apropriações de elementos italianos e flamengos daí resultantes, bem como sobre o processo de reelaboração desses elementos de modo a torná-los próprios. Esta exposição implicou também a participação duma série de obras, algumas inéditas e outras às quais foi alterada a atribuição, que contribuem, de um modo notável, para o conhecimento dos pintores espanhóis e que demonstram a presença de artistas espanhóis em Portugal.»
Miquel Iceta i Llorens, Identidades partilhadas
Lisboa: MNAA - IN, 2023, p. 9

Uma exposição temporária de arte visita-se, regra geral, uma única vez, podendo, todavia, ser repetida numa ou noutra ocasião especial, quando o interesse despertado a tal convide e as possibilidades de o fazer assim o permitam. Em ambos os cenários, o contacto com as telas exibidas é limitado. Um catálogo, em contrapartida, folheia-se, olha-se, aprecia-se, tantas vezes quantas as desejadas a qualquer hora do dia ou época do ano. É o que se passa com estas Idades Partilhadas (2023-2024), que, depois de terem revelado ao público visitante do Museu Nacional de Arte Antiga das Janelas Verdes a «Pintura espanhola em Portugal», criada desde a origem medieval dos dois países peninsulares até à atualidade, se encontra agora compilada, comentada e contextualizada nas páginas copiosamente ilustradas do volume preparado pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda. Abro-o, vejo-o e admiro-o.

O desenho estrutural do repositório impresso da mostra patenteada em Lisboa é inaugurado com dois prefácios redigidos pelos ministros ibéricos da cultura, Pedro Adão e Silva e Miquel Iceta i Llorens, logo seguido de quatro ensaios assinados por outros tantos académicos luso-hispânicos. Palavras de circunstância usuais nestes espaços, mas, mesmo assim, plenas todas elas dum forte cariz informativo e fino pendor artístico para visitas e leitores. Assim, enquanto Fernando Bouza descreve as relações históricas de Portugal e Espanha (sécs. xv-xix), no Entre elos e rejeições, Benito Navarrete Prieto centra-se no Século de Ouro e no cânone ibérico, nas designadas Identidades partilhadas, homónimas do designativo genérico do certame. Por seu lado, Joaquim Oliveira Caetano releva o contributo espanhol para a pintura portuguesa, num Cruzar a fronteira, ao passo que Ramiro A. Gonçalves se encarrega de traçar algumas notas sobre a presença de pintura espanhola em coleções privadas lisboetas (sécs. xviii-xx), no Entre permanências e ausências.

A resenha exaustiva neste espaço da totalidade das oitenta e duas peças reunidas na maior pinacoteca nacional resulta impraticável. O mesmo se diga para a identificação das três dezenas de críticos de arte que tornaram público o produto da sua investigação, centrada na meia centena de pintores representados na coleção e distribuídos cronologicamente por seis núcleos temáticos, a saber: [1] Gótico e Primeiro Renascimento, [2] Maneirismo, [3] Retrato de Corte, [4] Primeiro Naturalismo, [5] Barroco, [6] Academia e Romantismo. De mencionar, mesmo assim, os nomes sonantes de Luís de Morales, El Greco, Alonso Sanches Coello, José de Ribera ou Murillo, para além dum retrato elaborado na oficina de Velázquez, ou, ainda, os contributos de Vasco Pereira Lusitano, Baltazar Gomes Figueira e Josefa de Óbidos, três criadores portugueses bem conhecidos com formação pictórica sevilhana.

Guardei para o remate desta crónica de quadros olhados/descritos o óleo sobre tela escolhido para ilustrar o cartaz promocional do evento e a capa do repositório impresso. Depois de ter sido visto até há pouco como um original de Clemente Sánchez, este São Sebastião passou agora a ser tido como uma criação maior de Francisco de Zurbarán (1598-1664). As caraterísticas intrínsecas da obra não sofreram o mais pequeno beliscão com esta nova atribuição, mas, ao revés, o seu valor extrínseco de mercado alterou-se de modo exponencial. Lances de qualidade/quantidade que o mundo das artes conhece muito bem. Com a cara e o corpo lavados após o restauro a que foi submetido, o santo oriundo do Convento de Nossa Senhora da Graça, em Lisboa, poderá a partir deste momento ser admirado com outros olhos numa posição de destaque reforçado no MNAA. Palpites de experiência feitos.

  Francisco de Zurbarán, São Sebastião (c. 1634-1636

2 de agosto de 2024

José Afonso, traz outro amigo também...

          José Afonso   

Amigo, maior que o pensamento | Por essa estrada, amigo vem | Por essa estrada, amigo vem | Não percas tempo que o medo | É meu amigo também | Não percas tempo que o medo | É meu amigo também || Em terras, em todas as fronteiras | Seja bem-vindo, quem vier por bem | Seja bem-vindo, quem vier por bem | Se alguém houver, que não queira | Trá-lo contigo, também | Se alguém houver, que não queira | Trá-lo contigo, também || Aqueles, aqueles que ficaram |Em toda a parte, todo o mundo tem | Em toda a parte, todo o mundo tem | Em sonhos me visitaram | Traz outro amigo, também | Em sonhos me visitaram | Traz outro amigo, também.

Vivi em Campo de Ourique na primeira metade dos anos setenta. o disse por aqui uma e outra vez acerca de muitos e variados assuntos. Havia então na rua Saraiva de Carvalho uma pequena mas bem fornecida livraria que eu frequentava sempre que por ali passava na esteira do 28 e um título ou outro me despertava a atenção. Foi na Compasso que descobri a verve satírica de José Martins Garcia no Katafaraum é uma nação (1974), certamente uma das últimas obras publicadas sob o regime da censura estado-novista. Foi ali também que adquiri o ensaio de Manuel Vásquez Montalbán, Joan Manuel Serrat (1972), e, pela mesma altura, duas breves antologias semiclandestinas de José Afonso, comentadas por uma dúzia de figuras com a visibilidade mediática possível na época.

Resgatei esse par de livrinhos dum canto pouco visitado da biblioteca da minha sala. Encontrei-os dispostos a relembrar-me as dezenas de versos compostos em redondilhas maiores e menores traçadas ao gosto popular das baladas, coros, canções, cantares, cantigas, cartas e cantos, registados nas páginas amarelecidas por mais de meio século dum repouso forçado. Faltava-lhes o registo das melodias que acompanhavam essas trovas dos tempos cinzentos anteriores aos cravos de abril, mas essas sei-as eu de cor e salteado à força de tanto as cantar às ocultas e em liberdade. As palavras musicadas do José Afonso são indeléveis, quem as ouve uma só vez fixa-as logo para sempre, de pouco valendo os silêncios impostos de então e os continuados de agora das rádios e das televisões.

No dia em que o grande renovador do modo de cantar entre nós faria 95 anos, não ouço como outrora nenhum dos temas gravados em vinil, fita magnética e ótica digital. O YouTube chegou e lançou pouco a pouco cassetes e discos para trás das costas, convertendo as tradicionais aparelhagens grandemente obsoletas ou perto disso. O audiovisual veio, viu e venceu, a despeito de ter perdido em muito a qualidade de leitura. Abstraí-me desse senão e imaginei-me de novo integrado num grupo de jovens, sentados no chão dum sótão perdido do Chiado, a ouvir alguns dos mais conhecidos baladeiros da época nessa já longínqua tarde de 72/73. A voz e a guitarra de José Afonso ainda hoje me soa na memória, indiferente às muitas horas, minutos e segundos que cabem em meio século.

José Afonso, Cantar de Novo. Tomar: Raiz - Representações, 1970
José Afonso, Poemas. Porto: Livraria Paisagem, 1972