1 de novembro de 2014

Os arrepios da terra

João Glama Stroberle, Alegoria ao Terramoto de 1755

Bruxas & terramotos

A bruxa tem os cristais guardados nos bolsos fundos da saia, deles sentindo na carne a brasa gelada e a cintilação cega, que lhe chameja o corpo. Inspira com precaução o ar, toma-lhe o gosto a salitre, fareja-o, nele detetando o enxofre, o húmus contaminado pelo revolvimento que em breve há de vir das entranhas das terras, das águas sulfurosas e das pedras que ali já fez secar as fontes.

Depois de se ter debatido noites seguidas com os próprios poderes e presságios, delirando com a febre alta que provoca convulsões e lhe repuxa as feições, a bruxa nas suas alucinações viu ruir Lisboa, escutou o urro imenso subida das entranhas da terra, os gritos aterrados das pessoas em fuga pelas ruas em chamas, ouviu os estertores das que ficaram estendidas, esmagadas debaixo do estuque e das lajes, dos mármores dos palácios, dos altares e santos das igrejas, deu conta do pavor daqueles que eram tragados pelas fendas enormes que se abriam no chão a engolir tudo, casas e carros, e também aqueles que tombavam, tropeçando nos escombros.

Sentiu o estômago revoltado pelo intenso cheiro a vulcão recolhido que andava no ar espesso de fumo acre, a fundo lodoso de rio, a chuva envenenada, ao sal ácidos das ondas de um mar revoltoso. Procurou em vão defender-se das queimaduras das cinzas que tombavam do alto, como se fossem neve parda, escaldante. E quando finalmente voltou a si, aterrada, reuniu os poucos haveres numa trouxa, guardou dentro dela, também, as cartas de adivinhar futuros, os cristais nos bolsos da saia imunda, embrulhou-se na manta de lã cardada, abandonou a cabana de terra batida e saiu da cidade, entregando-se ao destino que a guiou, ainda cambaleante, pelos caminhos do Campo Pequeno…

Maria Teresa Horta, As luzes de Leonor (2011: 32-33)

3 comentários:

  1. Um excerto brilhante, de um livro que ainda não li... É uma descrição aterradora de um terramoto pintada de visões coloridas pelos olhos de uma bruxa... ou de alguém que consegue ver mais que o seu semelhante, com os dons premonitórios dos animais em situações catastróficas! Uma sugestão de leitura fascinante! Lembra-me excertos do romance de Clara Pinto Correia, "Os mensageiros secundários", que se reveste de uma aura mágica na descrição de fenómenos secundários que avisam sobre acontecimentos trágicos como terramotos...

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    1. A leitura do livro impõe-se, muito lenta, para que a prosa poética associada à poesia integral que lhe dão corpo dure, dure, dure. Mil e cinquenta páginas dum prazer completo...

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  2. Um fantástico excerto de uma obra ímpar!

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