17 de julho de 2015

Umberto Eco, as ameaças jornalísticas dum número zero inventado

«Non lo nego, ma mio padre mi ha abituato a non prendere le notizie per oro colato. I giornali mentono, gli storici mentono, la televisione oggi mente.»
Umberto Eco, Numero zero (2015)
O sétimo romance de Umberto Eco já está à disposição do leitor nas livrarias da aldeia global e dá pelo nome de Número zero (2015). Tão polémico como os anteriores. Andar pelos labirintos duma biblioteca abacial à procura do mais cobiçado dos livros perdidos de Aristóteles, percorrer à sombra de Foucault os santuários exotéricos da cabala para desvendar os segredos dos templários, naufragar nas águas exóticas dos mares do sul na pista do ponto fixo onde os dias mudam de data, seguir o rasto do Prestes João das Índias para tomar posse dum reino de fantasia utópica prometido por uma epístola imaginária, vasculhar os baús da casa de campo da infância no encalço duma memória perdida, penetrar nos meandros da teoria da conspiração gizada pelos falsos protocolos sionistas de dominação do mundo ocidental, atravessar com uma lupa de inspetor de polícia os mistérios mais recônditos da nossa identidade europeia multissecular. Depois de tudo isto, não contente, o filósofo, medievalista e semiólogo italiano, ensaísta, académico e romancista fabricante de bestsellers garantidos envereda pelos universos atuais da informação manipulada, aquela que nos impede de diferenciar as histórias efetivamente acontecidas das inventadas ao sabor dos interesses mediáticos do momento.

O argumento encontra-se todo sintetizado na contracapa da obra, a toda a largura e comprimento, ocupando vinte e sete linhas bem contadas de texto quase corrido. Está lá tudo. Literalmente o branco no preto. Às vezes pergunto-me, na presença destas práticas editoriais para vender livros, se merece a pena, logo a seguir, ler o que ficou no interior, se já ficou tão pouco por dizer. Os tópicos arrolados remetem-nos para uma frágil história de amor protagonizada por um ghost writer falhado e uma gossip girl inquietante, para as sombras do Gladio, da P2 e da CIA, para o assassínio do Papa Luciani, para os massacres dos terroristas vermelhos e manobras dos serviços secretos, para as chantagens, intrigas e fantasias ignóbeis que fornecem os ingredientes indispensáveis num manual perfeito para promover a venda de jornais. Fiquemo-nos por aqui e entremos no episódio central que serve de pano de fundo à fábula, o fadário do fundador do fascismo após a queda do regime político por si fundado e da libertação subsequente do país.

O tema do sósia é aqui desenvolvido por Umberto Eco do mesmo modo como George Steiner o havia feito n’O transporte para San Cristóbal de A. H. (1979). Adolfo Hitler e Benedito Mussolini não teriam morrido no final da Segunda Guerra Mundial. Teriam sido substituídos por duplos treinados a criar a ilusão de que o führer germânico e o duce italiano continuavam vivos num qualquer local recôndito do mundo, à espera da ocasião adequada para regressarem ao palco das hostilidades e reconstruirem o reich-impero de braço estendido à maneira romana. Reminiscências desse velho mito arturiano do regresso do salvador da lei e da grei num momento de crise nacional profunda, o mesmo que entre nós se transformou no contramito messiânico do sebastianismo. Os pormenores discursivos seguidos por estes dois ficcionistas ficam a cargo dos eventuais interessados em desvendá-los nos originais, sem terem para tal de recorrer aos resumos desmotivantes de conveniência. Digamos que a técnica literária da ucronia* definida pelo obreiro do relato mais recente funciona às mil-maravilhas, permitindo-nos imaginar o hipotético destino do nosso mundo presente se aquilo que de facto aconteceu tivesse acontecido de maneira diferente.

Vivos ou mortos tanto faz. O papel efetivo de mover destinos no eixo europeu duma nova ordem mundial findou nos derradeiros dias de abril de 1945. A memória dos seus líderes foi sendo apagado pelos sobreviventes. Compulsivamente. A catarse à tragédia representada nesses anos está ainda por fazer. As feridas então abertas estão ainda por sarar. A ameaça de futuras catástrofes paira no ar nos dias que correm. As histórias contadas pelos criadores da palavra escrita tentam a todo o custo proceder a essa purificação exigida por todos como necessária. As histórias contadas pelas pessoas sem direito a protagonismo literário recusam-na. Um dia a ablução acontecerá e o sol voltará a brilhar no horizonte com todo o fulgor há tanto tempo almejada pelas gentes. Miragem dum ver para crer que um porvir incerto mais tarde ou mais cedo materializará.

NOTA
* Umberto ECO, «Os mundos da ficção científica», in Sobre os Espelhos e outros ensaios. [1985]. Lisboa: Difel, 1989, p. 202. 

4 comentários:

  1. Muito interessante, deste escritor li há muitos anos atrás O Nome da Rosa, após visualizar o filme, depois iniciei a leitura do Pêndulo do Foucault, mas, não consegui avançar muito... tenho que lá voltar. Qto a esta obra li críticas muito interessantes no JL.

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  2. É interessante.Mas gostei mais de outros livros deste autor : 'O nome da rosa' 'o pendulo de Foucault' 'Baudilino'...

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  3. Sempre estimulante, ler Umberto Eco.

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  4. Este ainda não o li. Aos livros acima mencionados, acrescento "A ilha do dia antes", "Baudolino", "A misteriosa chama da rainha Loana" e "História da beleza". Das 40 obras que nos legou, muito tenho ainda que aprender com Eco!

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