2 de maio de 2018

Mario Vargas Llosa, conversas de Zavalita e Zambo no bar La Catedral

«Desde la puerta de La Crónica Santiago mira la avenida Tacna, sin amor: automóviles, edificios desiguales y descoloridos, esqueletos de avisos luminosos flotando en la neblina, el mediodía gris. ¿En qué momento se había jodido el Perú? Los canillitas merodean entre los vehículos detenidos por el semáforo de Wilson voceando los diarios de la tarde y él echa a andar, despacio, hacia la Colmena. Las manos en los bolsillos, cabizbajo, va escoltado por transeúntes que avanzan, también, hacia la Plaza San Martín. El era como el Perú, Zavalita, se había jodido en algún momento. Piensa: ¿en cuál? Frente al Hotel Crillón un perro viene a lamerle los pies: no vayas a estar rabioso, fuera de aquí. El Perú jodido, piensa, Carlitos jodido, todos jodidos. Piensa: no hay solución.»
Mario Vargas Llosa, Conversación en La Catedral (1969)
Descobri Mario Vargas Llosa há algum tempo já. Ainda a Academia Sueca se não lembrara de premiá-lo com o Nobel da Literatura. Foi amor à primeira vista. Depois desse encontro feliz, não perdi o ensejo de estar atento às novidades expostas nos escaparates das livrarias reais e virtuais e de ler logo de seguida os mais recentes títulos dados à estampa. Nos intervalos, tenho-me dedicado a percorrer com afinco as páginas dos mais antigos. Os textos fundadores duma forma singular de contar histórias, quiçá os mais significativos e elaborados da sua vasta obra de criador de heróis da imaginação. Este inverno dediquei-me à leitura muito lenta da Conversa n'A Catedral (1969). Entremeei-a com viagens mais ligeiras a outras paragens povoadas de vogais e sílabas com as quais se formam as palavras e frases que dão vida a este universo em expansão contínua feito de sons e letras. Fi-lo com o fino intuito de prolongar um pouco mais o convívio com as personagens coloquiantes da ficção, como se não tivesse já na calha outros livros do autor hispano-peruano que na devida altura explorarei com toda a atenção devida a quem o merece e aqui darei conta.

No derradeiro período do «Prólogo» à edição que tenho entre mãos, datada de junho de 1998, o seu obreiro confessa ter sido este romance o que lhe dera mais trabalho a urdir, razão pela qual seria aquele que salvaria dum incêndio, caso tivesse de escolher um entre todos os que até então compusera. O esforço despendido na escrita acaba por se refletir nos obstáculos constantes erigidos à leitura. A sobreposição de modalidades estruturais, de tempos e espaços narrativos, de episódios cruzados e de encaixes sucessivos, de monólogos interiores e vocalizados, de diálogos fragmentários laterais a alternar com os nucleares, produzidos em discurso indireto livre e relatado, conduzem-nos a um complexo fluxo de falas de primeira e terceira pessoas que convém decifrar, de modo a mudar o esforço da pesquisa no prazer da revelação cabal da mensagem. então, a conversa interminável travada ao longo de setecentas e vinte e seis páginas, distribuídas por trinta e um capítulos e arrumadas em quatro partes, pode frutificar plenamente.

Tudo começa com o resgate de Batuque do canil municipal de Lima, que leva Santiago Zavalita, jovem periodista branco de La Crónica, a cruzar-se com o zambo Ambrosio, o antigo motorista mestiço de negro e índio da família, então a trabalhar nesse antro de recolha e abate de cães abandonados à sua sorte. Celebram o reencontro casual no bar La Catedral, cenário central para dar vida durante quatro horas às memórias guardadas pelos dois atores coloquiantes em palco. As confissões assentam arraiais no Ochenio ditatorial de direita do general Manuel A. Odría (1948-1956). Com a eficácia desinibidora da cerveja, as histórias da história tomam conta do tecido narrativo e os relato de relatos surgem de enfiada uns após outros. Os políticos, os eróticos, os mediáticos. Todos eles são chamados ao nosso convívio, enquanto medianeiros reais/imaginados do drama, contribuindo cada um dos testemunhos voluntários/forçados pronunciados em direto/diferido para converter a fábula numa das obras maiores da atual prosa poética latino-americana hispanófona, vertida para um número crescente de idiomas falados à escala planetária.

A tentação de passar de imediato à revelação sintética da multidão de destinos novelescos convocados à colação é avassaladora. Limitar-me-ei a assinalar os papéis representados por dois pares de (co)protagonistas/antagonistas-deuteragonistas da complexa trama de intrigas e enredos secundários. Referir um Cayo Bermúdez / Cayo Mierda ou um Dom Fermín Zavala / Bola de Oro, o cérebro da repressão política do país andino e o empresário envolvido nos meandros do poder instituído à força das armas. Destacar as intervenções decisivas de La Musa Hortensia e da malfadada Amalia, a atarem os nós que conduzirão ao desfecho de todas as tramoias e maquinações relembradas nesse bar com nome catedral. Remeter para a leitura integral dum texto maior das letras universais que os académicos de Estocolmo premiaram pela sua cartografia das estruturas de poder e de imagens, pela sua mordaz resistência, revolta e derrota do indivíduo. Na sua ânsia louvável de elevar os protegidos das musas à companhia de Apolo no Parnaso, os juízes da obra feita de poetas e prosadores às vezes lá vão acertando. O tempo o dirá se a imortalidade passou por aqui.

2 comentários:

  1. Um texto inspirador. Um autor a revisitar.

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  2. Um enredo bem sugestivo que o texto acentua. Ainda não o li mas não ficará esquecido, pois desde "A tia Júlia e o escrevedor" que tento acompanhar Vargas Llosa, um autor extraordináriamente criativo.

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