26 de setembro de 2018

Hélia Correia e as premonições de morte de Lillias Fraser

«Lillias salvou-se da carnificina porque, seis horas antes da batalha, viu o pai morto, como realmente ele haveria de morrer mais tarde.»
Hélia Correia, Lillias Fraser (2001)
Durante algum tempo habituei-me a ler os romances-novelas de Hélia Correia. Para ser mais preciso, li com avidez os oito primeiros títulos publicados em 15 anos, entre 1981 e 1996. Até trabalhei semestres a fio um deles em ambiente académico. Depois o ritmo de escrita abrandou um pouco e o lançamento de novas propostas narrativas só voltou a verificar-se com a mudança de século e milénio. Voltei à sua companhia há relativamente pouco tempo. Encontrei-a no seu apogeu criativo. Um percurso trilhado nos diversos sendeiros literários que até lhe valeu um Prémio Camões entre muitos outros galardões de não menor importância e prestígio. Acabei de viajar pelas páginas inspiradas do Lillias Fraser (2001). Fi-lo com um atraso de quase duas décadas e a reboque dum outro vulto maior das nossas letras. Encontrei a protagonista a confraternizar com a Leonor de Almeida Portugal, aquela que passou a ser referenciada nos registos nobiliários por Marquesa de Alorna e nas academias poéticas por Alcipe. A culpada foi a Maria Teresa Horta com As luzes de Leonor. Encontros felizes para alimentar este sistema de vasos comunicantes estabelecido pela literatura, a dar razão à velha metáfora popular das cerejas, que quando se pega numa vêm logo outras à arreata.

As sinopses habituais nos sites publicitários postos à consideração apelativa dos potenciais interessados remeteram-me de imediato para a órbita do insólito teorizada por Todorov*, omnipresente no corpus já visitado da autora. Cheguei a pensar na hesitação exigida pelo Fantástico, para logo resvalar das explicações naturais do Estranho para as sobrenaturais do Maravilhoso, ou seja, para o mundo da fantasia consentida sem sobressaltos. Se alguém detém o dom de prever o futuro, é porque estamos perante uma realidade subjetiva que só o imaginário pode objetivar através da expressão artística, neste caso concreto da palavra feita verbo. O percurso biográfico quase picaresco duma heroína inventada cruza-se com os itinerários inscritos nos anais dos factos acontecidos e a dimensão histórica entra em campo. A Batalha de Culloden (1746) e a Guerra Fantástica (1762) definem o início e o final do relato. Tudo começa na Escócia e termina em Portugal. Pelo meio abundam referências pormenorizadas ao Terramoto de Lisboa (1755) e ao Processo dos Távoras (1759-1760). Toda uma época percorrida ao sabor da pena e do olhar atento da relatora.

E os pormenores ficam reservados à leitura integral do texto. Só podia ser assim. A menina escocesa que se fez mulher em terras portuguesas tem muito que contar a quem a quiser ouvir. A ela e a todos aqueles que com ela partilharam pedaços de vida. Episódios singulares de fuga-exílio-fuga. Circularidade discursiva a saltitar das hipóteses barrocas da novela de aventuras peregrinas para as iluministas do romance de iniciação formativa. A filiação num género literário concreto foge aos cânones tradicionais registados nos manuais de uso escolar. Envereda pelo ecletismo compositivo típico das formas estéticas em que impera a liberdade de expressão poética. Aquela que viabiliza o encontro de Lillias Fraser da Hélia Correia com a Blimunda Sete-Luas do José Saramago. Uma a visualizar com antecipação os cenários de morte de quem a rodeia, outra a visualizar o interior das pessoas quando está em jejum. Mais uma vez um livro a atrair outro livro. Uma leitura a convocar outra leitura. Sugestões que saltam de obra para obra. Convites irresistíveis de revisitar os textos que merece a pena revisitar. Está bem de ver que mais cedo ou mais tarde terei de voltar ao Memorial do Convento. Há já algum tempo que não o faço. Aqui como noutros espaços preenchidos pela arte de juntar palavras com sentido, é bem verdade que les beaux esprits se rencontrent.

NOTA
(*) Tzvetan Todorov, Introduction à la littérature fantastique, Paris: Le Seuil, 1970.

23 de setembro de 2018

Bilhete postal de verão às portas do outono


BORDALO II – «Quando o LIXO se torna ARTE»

DISFORIAS

A ria e os campos estão a arfar de calor, o verde das plantas empalidece como vomitado, a água da ria jaz para ali salobra, rasa e escura, cheia de garrafões de plástico partidos, latas de bebidas com as cores apagadas pelo sol, fragmentos de caixotes de madeira carcomida como dentaduras de caveira. Ao longo da margem, as árvores parecem pedintes a exibir o aleijão das folhas cobertas de pó ressequido. 

Em todas as sarjetas deste sul de pobres, há sacos de plástico, pedaços de papel de jornal amarelecido, garrafas partidas, lixo espalhado em frente das montras rachadas onde empalidecem de sujidade os letreiros da troyka e dos filhos da puta que a troika serve, «Vende-se», «Aluga-se», «Trespassa-se».

Paulo Varela Gomes, O verão de 2012 (2013: 89)

19 de setembro de 2018

O diário de Anne Frank e o anexo independente da casa dos fundos

«Ik weet dat ik kan schrijven. Een paar verhaaltjes zijn goed, m'n Achterhuisbeschrijvingen humoristisch, veel uit m'n dagboek spreekt, maar... of ik werkelijk talent heb, dat staat nog te bezien.»
Anne Frank, Het Achterhuis, 5 april 1944
Descobri o fascínio dos livros muito cedo. Numa altura em que a televisão dava os primeiros passos e a rádio ainda reinava nas ondas hertzianas, o tempo era gerido dum modo bem mais calmo do que viria a suceder nas décadas seguintes. Preenchiam-se então à maravilha os momentos livres a ler, quando mais não fosse através dos folhetins que saíam periodicamente nos jornais. Estou a ver o meu avô a recortar os capítulos dos romances publicados nas páginas d'O Século. A minha avó, essa, preferia segui-los na Rádio Renascença, ouvido colado à telefonia, a tentar interagir à sua maneira com as personagens de ficção, como se estas fossem seres reais de carne e osso. Entre o ver e o escutar as palavras escritas e faladas fica sempre a recriação de mundos alternativos, feitos à imagem e semelhança dos nossos. Por vezes a ordem dos fatores inverte-se e o faz-de-conta das vidas contadas transforma-se em documentos autênticos de factos acontecidos. Estará neste caso o diário redigido por Anne Frank entre 12 de junho de 1942 e 1 de agosto de 1944, dado à luz nos Países Baixos em 1947, com a chancela da Contact, com o título de Het Achterhuis (= anexo independente da casa dos fundos). A edição portuguesa data de 1955 e ficou a cargo da Record, tendo sido traduzida e prefaciada por Ilse Losa, que seguiu a versão alemã e o original neerlandês.

Entrei em contacto com o Diário de Anne Frank no início dos anos 60. Frequentava à altura o chamado ciclo preparatório e a se'tôra de Português tinha-nos levado a organizar uma biblioteca de turma. Cotizávamo-nos mensalmente, adquiríamos as obras adequadas às nossas idades, permutávamo-los entre nós e procedíamos depois à sua análise em grande grupo. Tarefa ingrata para muitos mas exequível para mim. Ainda hoje me pergunto como é que um testemunho pessoal, tão especial como o traçado por uma jovem refugiada judia à barbárie nazi, passou sem problemas de maior num ambiente escolar regido pelas normas estado-novistas da outra senhora. Mistérios talvez explicáveis pela inocência do título ou pela abertura de espírito da professora de Língua História Pátria. O antes e o depois do testemunho registado em letra de forma não foi escamoteado, muito embora o comentário político aos factos relatados tivesse ficado no tinteiro. Pequena/grande lacuna de pormenor que essa época pretérita aconselhava vivamente a cultivar e os nossos 10/11 anos deixou passar como se de facto não existisse. A riqueza do texto supria as censuras do contexto.

Voltei ao convívio da menina apátrida nascida alemã de origem judai-ca em 1997. Ocorreu em Faro entre 18 de janeiro e 28 de fevereiro, no âmbito da exposição O mundo de Anne Frank, 1929-1945, organizada pela Fundação da Juventude com material disponibi-lizado pela Anne Frank Stichting, de Amesterdão. Adquiri então um exemplar do livro que tinha descoberto 35 anos antes. Aproveitei para o dar a conhecer a um grupo de pré-adolescentes que os pais me haviam encarregado de entreter num clube de leitura. Tarefa inglória, porque nenhum deles mostrou o menor interesse de seguir a história daquela rapariguinha de sorriso aberto, que ocupara grande parte dos dias que cabem em catorze meses e meio a registar a sua rotina quotidiana num caderno de folhas em branco, que lhe fora oferecido num aniversário. Olharam com alguma desconfiança para a mostra fotográfica que vimos em conjunto, que já percorrera dezenas de cidades em 40 países e contara com cerca de seis milhões de visitantes. Reagiram com uma indiferença aparente à realidade do Holocausto e de tudo o mais a ele associado. Foram incapazes de esboçar duas frases seguidas que espelhassem minimamente a experiência visual por que tinham passado ou de ir além das três primeiras páginas do diário. Ficaram-se a meio dos parágrafos iniciais traçados por Annelies Marie Frank a 20 de junho de 1942, um sábado, um pouco antes da autora ter começado a dirigir as suas confidências pessoais em forma de missiva à Querida Kitty, a amiga imaginária que a acompanharia até à sua prisão pela Grün Polizei, passagem por Westterbork e Auschwitz e morte em Bergen-Belsen, o campo de concentração germânico localizado na Baixa Saxónia, tinha então pouco mais de 15 anos de idade.

O terceiro reencontro com o livro é mais fácil de traçar. Aconteceu agora, à distância de quase um quarto de século, já bem entrado um novo milénio. Foi absolutamente casual. O culpado foi o Philip Roth e O escritor fantasma (1979). Na secção 3 do romance apresenta-nos uma enigmática «Femme fatale» que a breve trecho nos apercebemos tratar-se duma alegada Anne Frank, disfarçada de Amy Bellette. Havia sobrevivido à solução final preconizada pelo III Reich e ali estava para contar a sua história secreta a Emanuel Isidore Lonoff, o seu protetor americano e um dos protagonistas do relato. Não a vou revelar aqui. Já tratei o tema noutra ocasião mais propícia. Resgatei o exemplar esquecido no meu gabinete de trabalho e trouxe-o ao meu convívio doméstico. Li-o de ponta a ponta. Fui incapaz de resistir ao apelo que este me fez lá do local onde estava alojado há tanto tempo. Sabe-se lá se haverá uma nova oportunidade de trocar esta edição dos Livros do Brasil por uma versão crítica definitiva entretanto posta à disposição dos leitores à escala global. Pouco importa. O documento humano elaborado num período penoso balizado pela II Guerra Mundial mantém toda a intensidade dramática transmitida aquando da escrita. Olhamos em redor e vemos muitos outros casos de vidas roubadas que em tudo se lhe assemelham. A questão judaica transformou-se em muitas outras questões de ordem indistinta e variada. Basta estar atento aos mass media dos dias de hoje. E mais não digo. Prefiro registar as derradeiras palavras da «mergulhada» no anexo da casa dos fundos da Prinsengracht, o Canal do Príncipe da capital holandesa, quando manifesta a vontade de continuar a ser aquela que gostava de ser, se... sim, se não houvesse mais ninguém no mundo.

14 de setembro de 2018

Um lugre, uma fragata, um veleiro

Por mares nunca de antes navegados...

Luís de Camões , Os Lusíadas (I. i, 3)
[Paço dos Cabrais - Belmonte]

De mar em mar, de porto em porto

Jorge Dias defendia em 1950 que a unificação e permanência da nação se devia ao mar. A tese apresentada em Washington, no Coló-quio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros*, assentava em quatro pilares do génio criador português. O literário da Epopeia de Camões, o arquitetónico do Mosteiro dos Jerónimos, o pictórico dos Painéis de Nuno Gonçalves, o musical dos Tentos de Manuel Rodrigues Coelho. Barcas, caravelas, carracas, naus e galeões fizeram a festa. E se navegar é preciso, que naveguem até nós. Réplicas antigas e versões recentes. Porque viver também é preciso. E venham lugres, fragatas e veleiros com bons ventos e marés.
O Creoula veio ter comigo em Copenhaga sem eu o ter chamado. Estava a participar numa regata internacional com partida da cidade da Sereiazinha, que ficou a olhar tranquilamente à distância. Corria o verão de 1988. Dias quentes, noites frias, sol e chuva o tempo todo, a picarem o ponto e a revezarem-se pacificamente. Quis a Fortuna que a nossa embaixada convidasse os nacionais residentes ou em trânsito para uma receção no navio-escola lusitano em águas dina-marquesas. A visita ao antigo fuste pesqueiro da Terra Nova culminou com um bacalhau à lagareiro com batata a murro, regado com azeite extra virgem e brindado com um porto de honra.

2. D. FERNANDO II & GLÓRIA: FRAGATA

Avistei há dias à D. Fernando II e Glória em Cacilhas ao estacionar o carro no parque contíguo ao porto. Deixa-se visitar como peça de museu ao preço módico dum bilhete individual ou coletivo. Está acompanhada do submarino Barracuda em estado periclitante de conservação. A fragata, em contrapartida, goza de boa saúde. Já a tinha visto ao largo, em 1998, aquando da Expo de Lisboa. Imponen-te. Acabada de restaurar e transformada numa atração dos 500 anos dos Descobrimentos Portugueses. A frisar serem «Os oceanos: um património para o futuro». A receção foi feita no Mar da Palha, sem direito a banquete, mas com muito fogo de artifício.
Fui propositadamente ao encontro do Sagres na sua primeira visita a Faro. Estava fundeado no cais comercial da cidade, preparada para celebrar o dia do município a 7 de setembro. Fazia-lhe companhia o Boa Esperança, um fac-símile perfeito do caravelão com que Bartolomeu Dias dobrou o cabo das Tormentas em 1488. O anão e o gigante lado a lado, proa com popa. Vistas bem as coisas, tratou-se dum reencontro com o mais mediático navio-escola da marinha portuguesa. Já o avistara em 1977 num cenário francês, na marina bretã de Saint-Malo. Convívios felizes, gerados por bons ventos e marés, a navegar de mar em mar, de porto em porto.

NOTA
(*) Jorge Dias, O essencial sobre os elementos fundamentais da cultura portuguesa. Lisboa: IN-CM, 1986.

10 de setembro de 2018

Philip Roth e as histórias de vida do escritor fantasma

«I turn sentences around. That’s my life. I write a sentence and then I turn it around. Then I look at it and I turn it around again. Then I have lunch. Then I come back in and write another sentence. Then I have tea and turn the new sentence around. Then I read the two sentences over and turn them both around. Then I lie down on my sofa and think. Then I get up and throw them out and start from the beginning. And if I knock off from this routine for as long as a day, I’m frantic with boredom and a sense of waste.» 
Philip Roth, The Ghost Writer (1979)
Há livros que falam de livros. Há outros livros que vão mais além e falam dos autores que escrevem livros. Contos, novelas, romances. Livros que falam das voltas que é preciso dar a uma frase para a juntar a outras frases identicamente martirizadas, palavra a palavra, até encontrarem a versão final. Aquelas que depois de terem sido marteladas incessantemente numa Olivetti serão entregues às rotativas das impressoras e confiadas ao público leitor. Philip Roth consegue tudo isto n'O escritor fantasma (1979), primeiro volume duma trilogia e epílogo protagonizada por Nathan Zuckerman, um jovem e auspicioso romancista em princípio de carreira, que nos proporciona um proveitoso encontro com a literatura e com os grandes livros que a compõem.

A badana de capa da edição que me serviu de abre-te, Sésamo! às histórias contidas no seu interior dá-nos logo um lamiré sobre a sua trama discursiva, tecida como se se tratasse do diário duma ilusão. Remete-nos, sem o explicitar, para a lei das três unidades dramáticas concebidas por Aristóteles na Poética. Tempo, espaço, ação. Tudo se passa numa única noite, na casa de campo de E. I. Lonoff, autor reputado do bildungsroman e figura de culto do protagonista-narrador da fábula, numa conversa sobre a literatura e a vida. Nesse encontro de homens das letras, o consagrado e o promissor, desenvolvem um diálogo que os levará, passo a passo, a revelarem as fronteiras entre a existência imaginária das personagens feitas de papel e tinta e a concreta vivida pelas pessoas de carne e osso.

A unidade e a diversidade da memória, traçadas pelo eu enunciador, cruzam-se na questão judaica, que atravessa o relato de ponta a ponta, sem pausas nem rebuços, distribuída de forma avassaladora pelas quatro partes dramáticas postas em cena. As dedicadas ao maestro ou anfitrião, a Nathan Dédalo ou convidado, à femme fatale ou discípula do mestre e à casada com Tolstoi ou anfitriã. As referências literárias são evidentes neste labirinto discursivo de ramificações hipertextuais, típico das narrativas que falam doutras narrativas. As gizadas pelo grande escritor, as vividas pelo aprendiz de escritor à imagem das descritas por James Joyce no Retrato do artista enquanto jovem, as imaginadas por Amy Bellette no papel duma Anne Frank sobrevivente do holocausto nazi e as de Hope Lonoff a abandonar o lar conjugal à semelhança do vulto maior das letras russas de todos os tempos.

Lidos os livros, os reais e os virtuais, pergunto-me quem será mesmo o escritor fantasma. O que se mantém por vontade própria nos bas-tidores do sucesso, o que procura a todo o custo o reconhecimento público à sombra duma celebridade consagrada, o que se esconde por detrás dessas figuras da ficção decalcadas duma realidade fac-tual concreta. Por alguma razão Nathan Zuckerman e Emanuel Isidore Lonoff podem ser entendidos como duas vertentes comple-mentares do alter ego multifacetado de Philip Roth, situadas nas duas fases do seu percurso fecundo pelos universos da escrita. O sujeito externo de enunciação romanesca a escolher um sujeito interno como verdadeiro transmissor duma autenticidade artística almejada. Um risco assumido por um contador genial de histórias verdadeiras como se fossem fingidas.

6 de setembro de 2018

Escritas em contracorrente

le trèfle à quatre feuilles


É dito e redito que o número quatro é tido e retido por muitos como símbolo da orientação cósmica e do cruzamento de vias. Pitágoras utilizava-o como referência matemática do nome de Deus. Na sua perfeição divina, indica-nos os quatro pontos cardeais, as quatro estações do ano, os quatro elementos, os quatro humores. Rapa-tira-deixa-põe, muito-pouco-tudo-nada, paus-copas-espadas-ouros, quente-frio-morno-gelado. Et tutti quanti... 

Iniciei há quatro anos estas escritas em contracorrente, por artes de berliques e berloques, a torto e a direito, de fio a pavio, de alto a baixo. Um quadriénio de letras e tretas, coisas e loisas, ditos e dicas, alhos e bugalhos. As guerras de alecrim e manjerona, as lérias e balelas, as fitas e tricas, o cozido e assado têm assinado o ponto aqui no blogue com nome de novela de cavalaria. O trevo de quatro folhas tem andado por aí. Audaces fortuna juvat...

3 de setembro de 2018

Ana Hatherly, da experiência do prodígio ao prodígio da experiência

            A noção de escrita alargou-se
            a TUDO
            a QUASE TUDO
            porque escrita é sinónimo de IMAGEM

Ana Hatherly, A idade da escrita (2005)
Voltei a cruzar-me com a Ana Hatherly num local especial. Mágico. Desta vez foi na Casa da Cerca, em Almada. E A experiência do prodígio (1983) transformou-se n'O prodígio da experiência (2018). As bases teóricas dos textos-visuais barrocos dos séculos xvii e xviii expostas em livro converteram-se numa exposição visual neobarroca dos séculos xx e xxi. Prodigiosas as formas que a arte inventa de se reinventar constantemente.

Os labirintos, acrósticos, anagramas, emblemas e empresas, rebus, enigmas, a escrita ropálica e o texto-amuleto, os calígrafos, os ecos, os versos centónicos ou mosaicos, as macarróneas e versos de línguas juntas, os lipogramas e versos de cabo roto antologiados pela ensaísta cedem passo à poesia experimental e visual da artista plástica exibidas ao público a partir das obras do Arquivo Fernando Aguiar. Portentoso o resultado final da mostra.

E na antiga Quinta da Cerca, o Centro de Arte Contemporânea, ro-deado de jardins paradisíacos debruçados sobre o Tejo e Lisboa em pano de fundo, ofereceu-me O escritor invadido pelo escritor (1974). Pintura, poesia, escrita, desenhoTextos entre tecidos / entretecidos a escrever a escrita. Experiências prodigiosas / prodígios experimen-tais. E a Ana Harthely lembrou-me que o Escrever é falar com o silêncio & Falar é escrever com o silêncio (1979).