«"La Descalza." Ese fue el apodo con el que los mosqueteros del Coliseo del Príncipe terminaron bautizando a Milagros. La gitana se negó a vestir los mis-mos trajes que lucían Celeste y las demás damas de la compañía. [...] Aceptó, sin embargo, sustituir sus sencillas prendas por las vestimentas de las manolas madrileñas: jubón amarillo ajustado al talle, sin ballenas, falda blanca con volantes verdes, larga casi hasta los tobillos, delantal, pañuelo verde anudado al cuello y cofia recogiendo su cabello. De lo que nadie logró convencerla fue de que se calzase. "Nací descalza y moriré descalza", afirmaba una y otra vez.»
Ildefonso Falcones, La reina descalza (2013: IV, 30,517)
Gosto de histórias que tenham um princípio, meio e fim bem limitado, sem grandes interrupções de permeio, a trocarem as voltas aos sentidos do texto e a perturbarem o prazer da leitura. Pouco importa que caiam no domínio do bestseller internacional. Assim eu goste da forma como contam os factos acontecidos, sejam eles verídicos, verosímeis ou visionários. Encontrei um hipotético candidato a este modo de relatar imitações de vida numa visita despreocupada ao Corte Inglês de Lisboa. Lá encontrei uma capa sugestiva a chamar por mim através da reprodução dum abanico com motivos barrocos, encimado pelo nome sonante dum autor conhecido de outras aventuras literárias e um título insinuante acenar-me. Foi assim que peguei num exemplar volumoso de Ildefonso Falcones e trouxe para casa a crónica de duvidosa aristocracia d'A rainha descalça (2013).
A obra descoberta por acaso na secção dedicada às letras hispânicas atuais dum grande armazém citadino foi-se-me revelando pouco a pouco, à medida que percorria as suas quase sete centenas e meia de páginas bem contadas numa edição de bolso, i.e., como um megarretábulo de pequenas e grandes intrigas, tecidas em seis painéis maiores do políptico e enquadradas em cinquenta tábuas menores da representação pictórica urdida com palavras pintadas. A dar coesão à tessitura narrativa, encontramos a presença central de duas mulheres, cujo percurso de vida nos é traçado com todo o rigor exigido pela arte da escrita, fragmentos existenciais dum tempo pretérito escolhidos para serem lidos com todos os sentidos bem dispersos. São elas Milagros, a cigana de Triana que durante uma temporada reinou descalça no Coliseo del Príncipe de Madrid, e Caridad, a ex-escrava negra de La Habana desembarcada à aventura solitária no porto de Cádiz.
A receita seguida para garantir um sucesso editorial de vendas junto dos leitores é tão difícil de identificar como encontrar o paradeiro da pedra filosofal ou descobrir a fórmula alquímica do elixir da longa vida. Em termos literários, varia de autor para autor, de obra para obra ou da ação não programada do mero acaso. Neste caso preciso, parece ser fruto duma feliz estratégia seguida pelo advogado e escritor catalão de conjugar as técnicas discursivas do romance com as temáticas que lhe dão corpo. Para pôr a nu as rivalidades ancestrais dos Vegas e Garcías andaluzes, recorre à linear estrutura encadeada, distribuída de modo alternado pelas sequências centrais/laterais dos eventos narrados. Salta duns para outros a um ritmo constante, deixando em suspenso uma ou outra situação a exigir uma resposta imediata, com o intuito de aguçar no leitor uma expectativa que só será resolvida à boa maneira folhetinesca nos capítulos seguintes, depois de vencidos todos os encaixes episódicos surgidos no percurso.
Quando li A catedral do mar deste mesmo criador de relatos fingidos como se fossem reais, fiquei com vontade de regressar a Barcelona para entrar no templo que dava um título ao livro. Ainda não o fiz. Agora fiquei com vontade de regressar a Sevilha, atravessar a sucessora da Ponte das Barcas e penetrar de vez em Triana que mal conheço. Pisar com os meus pés calçados o chão que os pés descalços dos ciganos pisaram durante a Grand Redada de 1749, quando Fernando VI os tentou exterminar dos reinos de Espanha. Projeto inglório, porque essa gente malquista de ferreiros, oleiros, e artesãos lograram sobreviver a todas as pragmáticas genocidas que lhes foram movidas. Até hoje. Ficou-lhes a fama de contrabandistas, de libertinos, párias e brigões, de vadios sem eira nem beira ou atividade laboral definida, mas também a de exímios tocaores, cantaores e bailaores de flamenco, género musical que ajudaram a criar e a transformar numa das imagens de marca mais conhecidas da alma hispânica. Só por esse facto, terá merecido a pena viajar pelos muito fólios desta saga duma raça, através das figuras plasmadas numa tela pintada com palavras que nos remete para uma magnífica deusa, um canto de sangue, uma voz da liberdade, uma paixão contida, uma voz quebrada e uma queixa de galera.