30 de outubro de 2022

Dança das Horas

Cadran d'horloge de la Révolution française
[Combiné traditionnel et décimal]

Às duas horas deste último domingo de outubro, voltará a ser uma da manhã em Portugal peninsular e Madeira. A antecipação nos Açores far-se-á à uma hora do novo dia, respeitando a diferença de fuso horário de GMT+0 para GMT-1. Dá-se assim início à hora oficial de inverno, ao que parece aquela que estará mais de acordo com a hora solar aparente ou real, num compromisso medial nem sempre pacífico entre a hora fornecida por um relógio solar (sol verdadeiro) e por um relógio comum (sol fictício).

Se o calendário republicano francês continuasse a marcar a dança das horas, teríamos de esperar pelo 8.º minuto, do 8.º dia, da 1.ª década do mês de Brumário, do ano 221, para recolocar o relógio no início do horário oficial de inverno. Complicado mas curioso para quem está afastado desses modismos revolucionários a seu tempo criados e revogados. Napoleão terá tido em boa hora as suas razões para deixar de vez a hora decimal dos sansculotides e restabelecer a duodecimal dos royalistes. Hèlas !

24 de outubro de 2022

Ildefonso Falcones e a crónica da rainha descalça

«"La Descalza." Ese fue el apodo con el que los mosqueteros del Coliseo del Príncipe terminaron bautizando a Milagros. La gitana se negó a vestir los mis-mos trajes que lucían Celeste y las demás damas de la compañía. [...Aceptó, sin embargo, sustituir sus sencillas prendas por las vestimentas de las manolas madrileñas: jubón amarillo ajustado al talle, sin ballenas, falda blanca con volantes verdes, larga casi hasta los tobillos, delantal, pañuelo verde anudado al cuello y cofia recogiendo su cabello. De lo que nadie logró convencerla fue de que se calzase. "Nací descalza y moriré descalza", afirmaba una y otra vez.»
Ildefonso Falcones, La reina descalza (2013: IV, 30,517)

Gosto de histórias que tenham um princípio, meio e fim bem limitado, sem grandes interrupções de permeio, a trocarem as voltas aos sentidos do texto e a perturbarem o prazer da leitura. Pouco importa que caiam no domínio do bestseller internacional. Assim eu goste da forma como contam os factos acontecidos, sejam eles verídicos, verosímeis ou visionários. Encontrei um hipotético candidato a este modo de relatar imitações de vida numa visita despreocupada ao Corte Inglês de Lisboa. Lá encontrei uma capa sugestiva a chamar por mim através da reprodução dum abanico com motivos barrocos, encimado pelo nome sonante dum autor conhecido de outras aventuras literárias e um título insinuante  acenar-me. Foi assim que peguei num exemplar volumoso de Ildefonso Falcones e trouxe para casa a crónica de duvidosa aristocracia d'A rainha descalça (2013).

A obra descoberta por acaso na secção dedicada às letras hispânicas atuais dum grande armazém citadino foi-se-me revelando pouco a pouco, à medida que percorria as suas quase sete centenas e meia de páginas bem contadas numa edição de bolso, i.e., como um megarretábulo de pequenas e grandes intrigas, tecidas em seis painéis maiores do políptico e enquadradas em cinquenta tábuas menores da representação pictórica urdida com palavras pintadas. A dar coesão à tessitura narrativa, encontramos a presença central de duas mulheres, cujo percurso de vida nos é traçado com todo o rigor exigido pela arte da escrita, fragmentos existenciais dum tempo pretérito escolhidos para serem lidos com todos os sentidos bem dispersos. São elas Milagros, a cigana de Triana que durante uma temporada reinou descalça no Coliseo del Príncipe de Madrid, e Caridad, a ex-escrava negra de La Habana desembarcada à aventura solitária no porto de Cádiz.

A receita seguida para garantir um sucesso editorial de vendas junto dos leitores é tão difícil de identificar como encontrar o paradeiro da pedra filosofal ou descobrir a fórmula alquímica do elixir da longa vida. Em termos literários, varia de autor para autor, de obra para obra ou da ação não programada do mero acaso. Neste caso preciso, parece ser fruto duma feliz estratégia seguida pelo advogado e escritor catalão de conjugar as técnicas discursivas do romance com as temáticas que lhe dão corpo. Para pôr a nu as rivalidades ancestrais dos Vegas e Garcías andaluzes, recorre à linear estrutura encadeada, distribuída de modo alternado pelas sequências centrais/laterais dos eventos narrados. Salta duns para outros a um ritmo constante, deixando em suspenso uma ou outra situação a exigir uma resposta imediata, com o intuito de aguçar no leitor uma expectativa que só será resolvida à boa maneira folhetinesca nos capítulos seguintes, depois de vencidos todos os encaixes episódicos surgidos no percurso.

Quando li A catedral do mar deste mesmo criador de relatos fingidos como se fossem reais, fiquei com vontade de regressar a Barcelona para entrar no templo que dava um título ao livro. Ainda não o fiz. Agora fiquei com vontade de regressar a Sevilha, atravessar a sucessora da Ponte das Barcas e penetrar de vez em Triana que mal conheço. Pisar com os meus pés calçados o chão que os pés descalços dos ciganos pisaram durante a Grand Redada de 1749, quando Fernando VI os tentou exterminar dos reinos de Espanha. Projeto inglório, porque essa gente malquista de ferreiros, oleiros, e artesãos lograram sobreviver a todas as pragmáticas genocidas que lhes foram movidas. Até hoje. Ficou-lhes a fama de contrabandistas, de libertinos, párias e brigões, de vadios sem eira nem beira ou atividade laboral definida, mas também a de exímios tocaores, cantaores e bailaores de flamenco, género musical que ajudaram a criar e a transformar numa das imagens de marca mais conhecidas da alma hispânica. Só por esse facto, terá merecido a pena viajar pelos muito fólios desta saga duma raça, através das figuras plasmadas numa tela pintada com palavras que nos remete para uma magnífica deusa, um canto de sangue, uma voz da liberdade, uma paixão contida, uma voz quebrada e uma queixa de galera.

17 de outubro de 2022

Os olhares de Marullo Tarcaniota olhados por Sandro Botticelli

Sandro Botticelli

Mal entramos numa das amplas salas do Museu de Belles Arts de València, somos surpreendidos pelo olhar altivo de Michele Marullo Tarcaniota (1453-1500), captado pelo olhar indiscreto de Sandro Botticelli. Olha-nos de revés, com cara de poucos amigos, como se quisesse perguntar a quem o olha o que é que o retrato dum poeta, militar e humanista italiano com raízes greco-bizantinas, como ele, ali está a fazer exposto naquele espaço aberto aos olhares estranhos de quem entra e sai, sem se interessar para quem de facto está a olhar. Vontade muda de gritar ter sido olhado em primeiros olhares em Constantinopla, durante o assédio otomano à cidade capital do Império Romano do Oriente e derradeiro bastião da Idade Média europeia. Lenda rebatida por um ou outro olhar de passagem por ali que o olharia em silêncio olhos nos olhos e corrigiria que, de facto, o soldado da fortuna quatrocentista teria olhado e sido olhado pelo mundo não muito longe da antiga Esparta helénica do Poloponeso.

Aquele que palmilhou ½ Itália enquanto ser vivente de corpo inteiro e ½ mundo após o trespasse reduzido a um busto pintado a ¾ numa tela de 49x36cm. Quantos olhares se terão cruzado com o olhar fechado com que agora nos olha. Difícil de contar. Olhares alheios olhados desde o centro daquela moldura dourada a iluminar o rosto sombrio e vestuário negro destacado sobre um fundo de céu azul acinzentado. O retrato desse vulto singular da cultura renascentista, aquele que mereceu a proteção dos Médici de Florença, é lembrado nos dias de hoje graças a um olhar enigmático de aristocrática sobranceria que a paleta inspirada de Sandro Botticelli lhe conferiu no apogeu da sua veia criativa. Olhar que deixou os Guardans Cambò de Barcelona totalmente rendidos, levando-os a integrá-lo na sua coleção, emprestada até 2024 à pinacoteca maior da Generalitat Valenciana. É aí que o seu olhar se questiona sobre as próximas etapas das suas peregrinações pelo universo museológico mundial.

11 de outubro de 2022

Igualdades desiguais

BALLET ROYAL DE LA NUIT - SÉC. XIII

 

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A rainha Margarida da Dinamarca acaba de anunciar o propósito de retirar os títulos reais de príncipe e princesa aos filhos do príncipe segundogénito Joaquim e de os manter para os do príncipe herdeiro Frederico. A medida parece seguir a mais recente tendência das monarquias europeias de reduzirem o número de membros oficiais das respetivas casas dinásticas. Sinais dos tempos em que se tentam amenizar algumas desigualdades sociais sem eliminar de raiz os princípios igualitários inquinados. A solução de nivelamento entre súbditos e soberanos talvez até pudesse passar pela elevação de toda a plebe pé-rapada à mui nobre categoria fidalga de príncipes e princesas, alimentando assim o ego ávido de sangue azulado que lhes passaria a correr nas veias.

O candidato a novo czar da Rússia acaba de anexar quatro regiões da Ucrânia, depois de ter falhado a conquista total do país e de ter encenado um referendo ilegal que desse cobertura legal à conquista parcial por si perpetrada. O direito a veto que o Kremlin detém como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU foi suficiente para fazer abortar a resolução de condenação da alegada consulta popular e subsequente apropriação de territórios alheios. Aqui como na Animal Farm de George Orwell, dá vontade de afirmar que todos os países representados nas Nações Unidas são iguais perante a lei, mas há alguns deles que são mais iguais do que os outros. Muito significativo para entender as igualdades desiguais que (des)governam o mundo.

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O Rei-Sol Luís XIV da França e Navarra julgava ocupar o centro do cosmos apolíneo. Se tivesse o conhecimento astronómico dos nossos dias mudaria rapidamente de opinião. Ficaria a saber que há mais estrelas no céu do que grãos de areia em todas as praias e desertos da terra. Dizem. Cálculos sábios de quem consegue contar até o número incontável que cabe no infinito. O mesmo se passaria com as pretensões de Filipe IV das Espanhas ou de Dom João V de Portugal e Algarves, apodados de Rei-Planeta e Rei-Constelação. Por este andar, até o super Putin de todas as Rússias almejaria um cognome astral à altura. Creio que lhe ficaria bem o de Imperador do Buraco Negro, na esperança, porém, de não nos arrastar para as mais profundas trevas do universo.

5 de outubro de 2022

Julianos & Gregorianos

     MEDIEVAL CELESTIAL WOODCUT     
Católicos & Ortodoxos
Se a conjugação astral do Sol e da Lua se voltasse a repetir como há 440 anos, é bem provável que na data de hoje a contagem das rotações anuais da Terra fosse atualizada, passando-se da noite para o dia do 5 de outubro esperado para o 15 de outubro antecipado. A supressão desses dez dias foi decretada pelo Papa Gregório XIII na bula Inter gravissima, assinada a 24 de fevereiro de 1582. A substituição do calendário juliano pelo gregoriano tinha em vista corrigir a discrepância multissecular cavada desde 46 AEC entre a duração dos ciclos solar e lunar.

A revolução papal não foi seguida de imediato em todo o lado. Levou o seu tempo a concretizar-se. As rivalidades ancestrais entre Católicos e Ortodoxos não se fizeram esperar. As datas das grandes festividades do cristianismo latino e grego continuam a manter as suas divergências até aos nossos dias. Só assim se entende que o natal de inspiração romana ocidental se celebre em dezembro e o de tradição grega oriental em janeiro. Razão também para que a revolução russa dita de outubro se festeje atualmente em novembro. Bizantinices, em suma.

As repercussões em Portugal neste 5/15 de outubro seria mínima, apesar de perdermos de imediato um feriado sem ser tempo da Troika de triste memória. A implantação da República e, por arrastamento, da conferência de Zamora ficariam este ano privadas de ser evocadas na data exata em que ocorreram ou seriam transferidas para uma outra altura mais adequada, motivo suficiente para alvoroçar os defensores/detratores das datas oficiais da fundação/queda da Monarquia. Por bem fazer mal haver, como sói  acontecer em momentos revolucionários.

ECLIPSIS SOLIS & LUNE
Hartmann Schedel, Liber Chronicarum, Nürnberg, 1493
[Woodcut, Nuremberg Chronicle]