“This is not an autobiography nor is it a book of recollec-tions. In one way and another I have used in my writings whatever has happened to me in the course of my life. Sometimes an experience I have had has served as a theme and I have invented a series of incidents to illustrate it; more often I have taken persons with whom I have been slightly or intimately acquainted and used them as the foundation for characters of my invention. Fact and fiction are so intermin-gled in my work that now, looking back on it, I can hardly distinguish one from the other. It would not interest me to record the facts, even if I could remember them, of which I have already made a better use.”
Ao dobrar a casa dos 60 anos de idade, Somerset Maugham parou para fazer um breve balanço do seu percurso literário já traçado, pô-la por escrito, publicou-o em forma de livro e deu-lhe o nome de Exame de consciência (1938), tentando assim libertar a alma de certas noções que vinham pairando sobre ela com prejuízo do seu sossego pessoal, sem todavia se deixar cair nos escolhos lúbricos da autobiografia pura. Li-o duas únicas vezes ao longo do meu viajar pelo mundo das letras. A primeira nas vésperas de atingir a maioridade, a segunda passado justamente meio século de pleno amadurecimento. Entre o então e o agora, repousou tranquilamente numa estante da minha biblioteca caseira, à espera do momento mais adequado para voltar a fazer sentir o fascínio da sua presença.
Na fase final da guerra civil espanhola e na vizinhança da mundial, o já famoso dramaturgo, romancista e contista, veste ao traje de ensaísta e resolve pôr a nu o seu sucesso estrondoso nas áreas do teatro e da ficção longa e curta, pretexto também para abordar os mais diversos assuntos associados a esses atos criativos que mais o haviam interessado ao longo da vida. Em setenta e sete capítulos de escrita breve e fluida, traça-nos um perfil preciso do seu pensamento crítico e das aprendizagens que entretanto fora acumulando em termos da sua vivência real e ficcionada. Confessa ter um horror visceral à obscuridade discursiva, tendo optado sempre pela clareza e simplicidade na hora de expor as ideias. Revela ter manifestado pouca apetência emocional pela lírica, tendo concentrando a sua preferência expressiva na prosa, muito embora não deixe de admitir que o sentido dramático que há em si teria sido mais bem sucedido se tivesse enveredado pelas formas versificadas.
Depois de ter procedido a uma autópsia à sua caminhada triunfal de contador de histórias representadas numa sala de espetáculos ou lidas nas páginas dum livro, de o ter feito com a minúcia expedita dum aprendiz de medicina que foi, o artista/artífice, o autor/ator, o encenador/fotógrafo de imagens reveladas com palavras ditas à boca de cena ou saídas impressa num prelo tipográfico, dedica os derradeiras parágrafos deste exame de consciência à filosofia, à religião e à significação e utilidade da vida. Confessa-se um agnóstico persistente, o que, a seu ver, é uma caraterística de todos aqueles que agem como se deus não existisse. A redução ao absurdo de todos os argumentos que têm tentado provar à exaustão a sua existência/inexistência e se têm revelado perfeitamente ineficazes e carentes de sentido. Conclusão drástica que marcou profundamente os meus quase 20 anos de idade e cuja acuidade continua a ecoar dentro de mim na sua máxima potência até aos dias de hoje.
No cotejo dos trechos, parágrafos e excertos sublinhados há cinco décadas, sobressaem todos aqueles que dum modo direto/indireto se referem à génese e sentido da Servidão humana ou a todos os temas, tópicos ou pontos a ela relacionados. Por alguma razão, tenho vindo a considerá-la durante todo este tempo como uma das obras mais significativas da minha vida, aquela que dum modo mais visível me ajudaram a crescer. Os problemas metafísicos do bem e do mal, da verdade e da mentira, da vida e da morte, da bondade e da beleza, da crença/descrença-apatia na eternidade consciente/inconsciente do ser humano. Tal como o episódio do pé-boto/gaguez plasmado no romance/ensaio conduzira os seus protagonistas à perda de fé no poder curativo da oração, também eu ‒ enquanto jovem leitor que então era ‒ ganhei coragem para deitar para trás das costas todas as hesitações que até aí nutria face ao transcendente e me senti plenamente livre dos dogmas insanos da infância. Definitivamente. A realidade e a ficção deram-se as mãos e ofereceram-me a carta de alforria desses tempos de trevas supersticiosas que até à data habitavam em mim e a luz surgiu radiosa no horizonte.