«Depois chegámos nós por ouvir falar do caso e procurámos alguém que ainda não tivesse perdido a memória. Encontrámos as testemunhas, mas Aldegundes, por exemplo, já não sabia como voava um pássaro.»Lídia Jorge, O cais das merendas (1982)
A ausência de espaços livres nas estantes de guardar livros cá de casa tem-me levado ultimamente a visitar os já lidos e relidos noutras ocasiões. Vantagens de já os conhecer e saber de fonte segura o prazer renovado que advirá destes reencontros táticos com velhos amigos. Numa altura em que predominam no linguajar quotidiano vigente anglo-saxónico com pretensões globalizantes, apeteceu-me voltar à companhia da Lídia Jorge e d'O cais das merendas (1982), um clássico da literatura composta em português, com uma pitada dos falares algarvios e uma mão-cheia de modismos importados, papagueados a torto e a direito e por dá cá aquela palha pelos partícipes romanescos em francês e inglês, obtidos por um deles à la cannebière de marseille e pelos demais de as ouvirem aos turistas oriundos da verdadeira Europa e do grande mundo.
Seis décadas após as vivências retratadas na ficção e decorridas quatro sobre a sua publicação, a verbalização de termos oriundos doutras latitudes transfronteiriças pareceriam plenamente démodés, vocábulo que um franciano dos nossos dias teria logo sugerido aos seus colegas das lides hoteleiras de atualizar. Olvidaria os galicismos de emigrante bebidos no além-Pirenéus, render-se-ia sem tardar aos anglicismos passageiros que por aí pululam e proporia a substituição dos parties, evenings e barbecues de então, pelos coffeebreaks, brunchs e sunsets de agora, organizados num qualquer ressort, seafront ou rooftop adequado. Tudo muito mais cool nos dias que correm e publicáveis com muitos likes nas redes sociais.
A ação da segunda epopeia em prosa de Lídia Jorge decorre de modo algo indefinido entre a passagem da década de 50 para a de 60 e os finais da de 70, num imaginário Hotel Alguergue, erigido na não menos inventada Praia das Devícias. Tudo nos remete para o sul do país, sem que, todavia, o cenário bem conhecido da autora seja explicitado de forma clara. O surto do turismo no Algarve acabava de dar os primeiros passos e os atores-nativos na presença subalterna dos atores-visitantes ficam deslumbrados com tudo o que vestem, fazem e falam. Lembram-se das privações vividas no passado que desejam apagar a todo o custo da memória e iniciam um processo de recusa radical dessa época menos feliz das suas existências. Imitam os modelos estranhos vindos de fora e inauguram um tempo de mudança, que os colocaria numa esfera existencial idêntica à dos habitantes sazonais daquela vasta casa apalaçada de dez andares e trezentas e tantas janelas com nome de pedra de lagar de azeite. Ilusão pura, pois no final dar-se-ão conta que haviam perdido a sua identidade cultural e não tinham adquirido em momento algum aquela que pretendiam conquistar.
Relido mais uma vez em período de férias de verão, num ambiente similar ao retratado no livro – um extenso areal dourado junto ao mar sem vagas a espelhar o azul do céu e com um hotel dessa época pioneira em pano de fundo –, apercebo-me que, mutatis mutandis, a situação se mantém inalterável em variados aspetos, sobretudo nos linguísticos. O inglês, a suposta língua franca dos forasteiros, continua a sobrepor-se a todas as restantes, em ementas, etiquetas, avisos, marcas, rótulos, placas, letreiros, ignorando sistematicamente a dos nativos, como se, de facto, não existissem. A submissão ao outro é total neste utópico paraíso de devícias ilusórias em que o ancestral cais de merendas baratas se foi convertendo ao longo dos tempos. Então como agora: copiar para igualar, perder o que se tem e não receber nada em troca.