“I have never begun a novel with more misgiving. If I call it a novel it is only because I don't know what else to call it. I have little story to tell and I end nei-ther with a death nor a marriage. Death ends all things and so is the comprehen-sive conclusion of a story, but marriage finishes it very properly too and the so-phisticated are illadvised to sneer at what is by convention termed a happy en-ding. It is a sound instinct of the common people which persuades them that with this all that needs to be said is said. When male and female, after whatever vicissitudes you like, are at last brought together they have fulfilled their biolo-gical function and interest passes to the generation that is to come. But I leave my reader in the air. This book consists of my recollections of a man with whom I was thrown into close contact only at long intervals, and I have little knowled-ge of what happened to him in between. I suppose that by the exercise of inven-tion I could fill the gaps plausibly enough and so make my narrative more cohe-rent; but I have no wish to do that. I only want to set down what I know of my own knowledge.”
Nos anos de aprendizagens académicas básicas recebidas na grande cidade, tinha o hábito de ampliar a minha biblioteca pessoal com um ou outro exemplar trazido da feira do livro, a imensa festa anual dos amantes da república das letras que então se realizava na avenida da Liberdade. A bolsa não dispunha de muitos fundos e a escolha foi sempre pacífica e fácil de satisfazer. Já levava os meus autores-títulos engatilhados e Somerset Maugham era um deles. Nesse já distante mês de maio de 72, chegara o momento d'O fio da navalha (1944) entrar em cena. Mantém-se comigo desde então e acaba de ser revisitado mais uma vez, sempre com novas leituras a revelar.
A ação central decorre no período histórico compreendido entre as duas guerras mundiais nunca referidas com tal. A bem-dizer, a mais recente só é aludida de raspão e a escassíssimos parágrafos do fim, muito embora a sintamos espreitar o horizonte com mais insistência após os efeitos devastadores provocados pela crise da bolsa de Nova York de 1929, sobretudo em algumas das personagens com maior visibilidade na tessitura narrativa sem ocuparem todavia o estatuto de protagonistas. Estes lograram escapar à grande depressão e avivar a atenção do narrador, também participante no relato como cronista ocasional e biógrafo parcelar de todos eles, com especial incidência no ex-aviador norte-americano Laurence Darrell, mergulhado numa vadiagem militante pelo mundo fora em busca dum significado para a existência humana. Este mesmo Larry, como era conhecido e tratado pelos amigos, partilha esse modo de vida errante com o snobismo ferino de Elliot Templeton e o cinismo mordaz de Somerset Maugham, formando com eles uma lídima estrutura triangular particularmente enriquecedora da urdidura efabulativa.
Durante muito tempo tenho resistido à tentação de compor uma top lista com os livros da minha vida. E já estou a considerar um número plural de textos, porque a eleição dum único deles seria uma tarefa perfeitamente impossível de concretizar para não dizer absurda. Ancorei-me sempre ao argumento do meu prazer de leitura continuar muito vivo no meu dia a dia e de acalentar a ideia de mais tarde ou mais cedo encontrar essa tal obra que supere todas aquelas que a haviam precedido. Prosseguindo o périplo pela estante guardiã das minhas viagens pelo universo dos livros efetuadas no início da década de 70, apercebi-me que alguns deles marcaram de facto a minha passagem da fase adolescente para a adulta de modo decisivo. As respostas dadas na Servidão humana, no Exame de consciência e n'O fio da navalha às questões que então me fazia seriam, só por si, suficientes para colocar estes títulos como os três mais significativos dos meus teenage years. Nunca mais, a partir de então, as noções de finito/infinito, de deus-eternidade-absoluto, ou mesmo de bem/mal me voltaram a incomodar do mesmo modo. Ultrapassei-os e com caráter definitivo até hoje. Razão mais do que suficiente para inaugurar essa listagem há tanto tempo adiada.
Lidos e relidos os livros há muito depositados numa estante especial da biblioteca cá de casa, detenho-me na história de vida do andarilho retratado lacunarmente neste romance de seres reais com nomes de fantasia. Foi na Índia da Hatha Yoga que terá encontrado entre os swamis de Ramakrishna a chave que lhe abriria as portas para vislumbrar as três manifestações da Realidade Final, regidas por Brama, o Criador, Vixnu, o Conservador, e Xiva o Destruidor. É também nesse ambiente místico que o narrador-autor, ficionista e dramaturgo britânico se inspirou para dar um título adequado ao relato. Fá-lo a partir dum princípio registado no Katha-Upanisad, o livro sagrado do hinduísmo, que alerta para o quão difícil é andar sobre o aguçado fio duma navalha, o árduo caminho para atingir a Salvação. As caminhadas da figura maior da crónica chegou a bom porto. O mesmo se diga do cronista que lhe deu corpo e preservou voragem dos dias, meses e anos através da palavra escrita. Até o exemplar impresso que o trouxe até mim resistiu a esse desgaste. A efemeridade do suporte material a ser superada pela perenidade da obra gravada na memória das gentes.