27 de outubro de 2023

Cartas, postais & telegramas

Victor Arnautoff, City Life (1934)
[Mural, Coit Tower, San Francisco]

Papel, caneta & tinta

Nos meus verdes anos de menino e moço, escrevia ingenuamente aos embaixadores então creditados em Portugal bilhetes dos CTT, primorosamente caligrafados, a solicitar desdobráveis informativos sobre os países que representavam entre nós. E eles, ou alguém por eles, respondiam. Invariavelmente.

Argumentava-se então, nessas minimissivas decalcadas umas das outras, tratar-se duma mera recolha documental para as aulas de Geografia. Nalguns casos até seria, mas, nos restantes, o que valia mesmo era acumular um conjunto de pagelas coloridas e rivalizar em número com os colegas de escola.

Em papel especial se namorava à distância e em folhas A4 se escrevia aos amigos. A versão datilografada em teclado HCESAR nacional ou AZERTY internacional fazia-se a nível oficial. Depois tudo mudou de figura com o advento dos PC e do correio eletrónico enviado ao ritmo dum simples clique. 

No tempo em que ainda se redigiam cartas e postais ou se enviava um telegrama de vez em quando com as palavras bem contadas, a vida corria placidamente à espera duma mensagem de resposta. E as escritas manuscritas repetiam-se dia após dia sem variantes de permeio. Caneta, tinta, mata-borrão, selos.

Nessa época analógica em que ainda não existiam ou se suspeitava que alguma vez viessem a existir os atuais e corriqueiros e-mails, SMS, Messenger, WhatsApp e o diabo a sete virtual on-line, a espera impaciente da volta do correio era um garante seguro de que a vida se fazia num vaivém continuado de ir e vir.

Nesta era de digitalizações galopantes, dou comigo incapaz de ler a minha letra escrita à mão menos dum nada. Com uma breve busca na Net, todos os dados obtidos dispensam os bons ofícios dum mero embaixador da nossa praça. Parafraseando Shakespeare, admirável mundo novo que tais maravilhas nos dá.

23 de outubro de 2023

Regresso, Novilíngua & Coda

CIDADE-MUNDO
Jan Amos Komenský, Labyrint světa a ráj srdce (1623)
“Twenty-seven years later, in this third quarter of the twentieth century A.D., and long before the end of the first century A.F., I feel a good deal less opti-mistic than I did when I was writing Brave New World. The prophecies made in 1931 are coming true much sooner than I thought they would. The blessed interval between too little order and the nightmare of too much has not begun and shows no sign of beginning.”

“The purpose of Newspeak was not only to provide a medium of expression for the world-view and mental habits proper to the devotees of Ingsoc, but to make all other modes of thought impossible. It was intended that when Newspeak had been adopted once and for all and Oldspeak forgotten, a heretical thought -- that is, a thought diverging from the principles of Ingsoc -- should be literally unthinkable, at least so far as thought is dependent on words.”

“There is more than one way to burn a book. And the world is full of people running about with lit matches. Every minority [...] feels it has the will, the right, the duty to douse the kerosene, light the fuse. Every dimwit editor who sees himself as the source of all dreary blanc-mange plain-porridge unleavened literature licks his guillotine and eyes the neck of any author who dares to speak above a whisper or write above a nursery rhyme.”

O termo utopia entrou na linguagem comum dos falantes através de Platão (c. 428-348 AEC), registado na República com o sentido literal dum «não lugar» ou «não existente», mas possível de erigir num estado ideal futuro regido pelos princípios de Justiça dos Reis-Filósofos. Este conceito de ascensão do caos primitivo ao cosmos vindouro é retomado no Timeu e no Crítias, diálogos da maturidade do autor compostos como contraponto ao exemplo falhado da mítica/lendária Atlântica, perdida nos abismos oceânicos situados ao largo das Colunas de Hércules.

Este conceito é trazido por Thomas More dos tempos antigos para os modernos, adaptado na Utopia (1516) ao humanismo então vigente. O período áureo das navegações europeias permitem-lhe imaginar a existência dum mundo modelar paralelo ao nosso, mas de localização desconhecida. Chega-se e sai-se dali por mero acaso. O filão descrito nessa sociedade perfeita é aproveitado por outros criadores coevos, dando origem à eutopia filosófica de cariz renascentisto-barroca dum Tommaso Campanella n'A Cidade do Sol (1602) ou dum Francis Bacon na Nova Atlântida (1624).

A breve trecho, o locus amœnus não tardou a converter-se num locus horrendus. Os relatos edénicos centrados em comunidades felizes instaladas em ilhas perdidas dos mares do Sul perderam o caráter inovador inicial, atravessaram um longo percurso de normalização genérica e caíram na fase epigonal da banalização a anunciar a extinção ou a renovação. As formas superiores inacessíveis de organização política local saem de cena e cedem o palco à distopia global acessível num porvir predestinado ao bem-estar absoluto e poupado aos caprichos do livre-arbítrio.

A queda dos impérios centrais e a ascensão de regimes totalitários entre guerras (mundiais, civis e frias) propiciaram o surgimento dum novo modo de contar histórias. Aldous Huxley avança com o Admirável mundo novo (1932), George Orwell prossegue com o Mil novecentos e oitenta e quatro (1949) e Ray Bradbury culmina com o Fahrenheit 451 (1953), formando, assim, um triângulo de ouro da ficção científica ou de antecipação topocrónica, erigida nos domínios duma Cidade-Mundo de cariz autocrático, a prefigurar a vitória quimérica duma Cidade-Estado planetária.

As previsões de futuro arriscam-se sempre a falhar nas suas linhas gerais. A esta a conclusão chegou Aldous Huxley, registada no «Prefácio do Autor» (1946) à sua obra maior e no Regresso ao admirável mundo novo (1958). Em pouco mais de uma geração, grande parte dos avanços científicos e tecnológicos conseguidos no sétimo século de Our Ford começavam a ser alcançados em meados do vigésimo século de Our Lord. As lacunas flagrantes detetadas são também referidas, com um destaque muito especial para a ausência de alusões à cisão nuclear.

A fronteira do real/imaginário é cada vez mais ténue e difícil de limitar. «Os Princípios da Novilíngua» vigentes no macrocosmo ficcionado do Big Brother perdem o seu caráter virtual e entram  ante no nosso universo de referências tangíveis quando o confrontamos com os excessos dogmáticos prescritos por uma certa linguagem inclusiva agora posta em voga, regida pelos preceitos cabais do politicamente corretoGeorge Orwell ver-se-ia obrigado a reformular de ponta a rabo o «Apêndice» com que completa de totalitarismo instaurado nesse tão distante/próximo ano de 1984.

Os livros ainda não começaram a ser sistematicamente queimados a 451ºF como na efabulação distópica de Ray Bradbury. O mesmo se não pode dizer de algumas palavras ali registadas e eliminadas à revelia do autor, por si elencadas no «Coda» (1979), um posfácio a uma reedição da obra. A maior censura consiste, porém, na omissão voluntária das palavras proibidas, as tais que não chegam a ser ditas/escritas para não ferir os sentires dos leitores. Triste realidade esta que afasto do meu horizonte de linguajares quotidianos, livre de espartilhos de qualquer tipo ou feitio.

                    NOVOS GÉMEOS IDÊNTICOS BOKANOVSKIZADOS DO III.º MILÉNIO                     

17 de outubro de 2023

Que fazer com estes livros...

Maria Helena Vieira da Silva
La bibliothèque - 1966

[Centre Pompidou, Paris - 
Musée des Beaux-Arts, Nantes]
«A biblioteca que em duas salas, amplas e claras como praças, forrava as pare-des, inteiramente, desde os tapetes de Caramânia até ao teto de onde, alternada-mente, através de cristais, o sol e a eletricidade vertiam uma luz estudiosa e cal-ma  continha vinte e cinco mil volumes, instalados em ébano, magnificamente revestidos de marroquim escarlate. sistemas filosóficos (e com justa prudên-cia, para poupar espaço, o bibliotecário apenas colecionara os que irreconcilia-velmente se contradizem) havia mil oitocentos e dezessete! 
   Uma tarde que eu desejava copiar um ditame de Adam Smith, percorri, bus-cando este economista ao longo das estantes, oito metros de economia política! Assim se achava formidavelmente abastecido o meu amigo Jacinto de todas as obras essenciais da inteligência  e mesmo da estupidez. E o único inconvenien-te desse monumental armazém do saber era que todo aquele que penetrava, inevitavelmente adormecia, por causa das poltronas, que, providas de finas pranchas móveis para sustentar o livro, o charuto, o lápis das notas, a taça de ca-fé, ofereciam ainda uma combinação oscilante e flácida de almofadas, onde o corpo encontrava logo, para mal do espírito, a doçura, a profundidade e a paz estirada dum leito.»
Eça de Queiroz, Civilização (1892)
Livros, livros, livros...
Toda a vida juntei livros. Nunca me desfiz de motu proprio de nenhum. Dia após dia, ano após ano, década após década, alojei-os nas estantes da sala, na mesa de cabeceira, nas prateleiras das marquises, no móvel do portátil, no armário da casa de banho, em gavetas soltas, junto aos sofás, por cima das cadeiras, debaixo da cama, em todos os recantos escusos da casa.

Pouco a pouco, passo a passo ante pé, os livros vão-se reunindo em surdina nos locais mais díspares onde ainda vão cabendo, em fila de espera para serem lidos e arrumados, lado a lado, por tamanhos e temáticas, uns à frente outros atrás, uns por cima outros por baixo, uns de pé outros deitados, até empilhados pelo chão a aguardar impacientes um alojamento adequado e à medida.

Livros comprados, dados, herdados, editados, repetidos, compostos em vários idiomas. Livros pedagógicos que insisto em manter não sei muito bem porquê ou para quê. Livros lidos e relidos, recebidos por legado direto/indireto de amigos que começaram a desfazer-se das suas bibliotecas pessoais ao sentirem chegar o momento de dizer adeusUma vida a reuni-los, uma morte a separá-los.

Olho para os livros que me olham de onde estão para onde estou e pergunto-me o que fazer/farão com todos eles. Sem soltar uma palavra audível, respondem-me que os abra, leia e releia, se for caso disso, que um livro fechado morre lentamente se não o abrirmos de vez em vez por quem os escolheu, anotou, comentou, sublinhou, manteve ao longo dos tempos. É isso mesmo que faço.

11 de outubro de 2023

Seomara da Veiga Ferreira, a crónica esquecida e relembrada de D. João II

«Nasceu uma criança do sexo masculino, de pele branca e rosada, de cabelo escuro. A alegria dos pais estendeu-se do alto escarpado do castelo e da Alcáçova, a todo o país. Naquele ninho de águia, para espanto futuro de muitos, nascera o Falcão, como a si se chamaria, o predador da nobreza abusadora e ociosa, o homem do Novo Mundo e da Nova Europa.»
Seomara da Veiga Ferreira, Crónica esquecida d’el-Rei D. João II (1995) 

Costuma aceitar-se sem grandes reservas ter o romance histórico moderno sido criado por Walter Scott com o Waverley (1814), nas vésperas da queda de Napoleão em Waterloo (1815) e da difusão triunfal do movimento romântico à escala global. A caraterização do novo género literário, estudado à exaustão por György Luckács no Der historische Roman (1955), não refuta o papel desempenhado pelos relatos afins provenientes dos tempos antigos e medievais, entendidos como antecedentes poéticos moldados aos requisitos exigidos pelas matrizes estéticas então vigentes e a abrirem as portas às inúmeras modalidades entretanto ideadasO contributo de Seomara da Veiga Ferreira, com a Crónica esquecida d'el-Rei D. João II (1995), insere-se precisamente neste cenário.

O trajeto de vida traçado pelo Príncipe Perfeito sempre me mereceu uma atenção muito especial, colocando-o numa posição destacada no seio de quase meia centena de soberanos que o antecederam ou sucederam na ação governativa do país. Essa a razão pela qual adquiri e trouxe para casa um exemplar do livro acima referido, quando o vi exposto no escaparate duma livraria. Cheguei até a perguntar-me se não se trataria mesmo duma verdadeira crónica em tempos perdida e em boa hora encontrada. Ao folheá-la logo ali, in loco, apercebi-me tratar-se duma mera biografia romanceada assente na alternância contínua de sequências históricas verídicas com outras verosímeis reveladas por um longínquo e desconhecido participante-observador fictício do relato. Isso não me impediu de o ler à data com algum prazer e proveito e de o ter voltado a fazer agora, passados quase duas décadas sobre a sua descoberta.

Ambrosius Roiz, o narrador judeu converso, filho e neto de judeus, centra as suas memórias diretas/indiretas na primeira fase da Dinastia Joanina à frente dos destinos da Coroa Portuguesa, desde a eleição em Cortes do Mestre de Avis até à subida ao trono do Duque de Viseu e Beja. Reparte-as por três livros, com um número variável de capítulos, subordinados às principais fases dos reinados dos respetivos monarcas, com uma atenção especial a D. Afonso V n'«O ciclo do Dragão» [L.I] e a D. João II n'«O tempo do Falcão» [L.II] e «Na rota dos mundos mortos» [L.III]. Para facilitar a tarefa dos leitores, o autor anexa ainda nas páginas finais do testemunho apócrifo uma extensa Cronologia enquadrante do período em causa, pautado pelo nascimento do futuro Conde de Barcelos (1377) e Duque de Bragança e pela morte da Rainha D. Leonor de Lencastre (1525), bem como uma Genealogia referente à descendência de D. João I e à da família do presumido biógrafo do monarca nomeado no título atribuído aos anais secretos voluntariamente escondidos e finalmente revelados meio milénio depois.

O conhecimento generalizado dos eventos históricos trazidos para a ficção dispensa resumi-los numa breve resenha de leitura como esta. Basta elencá-los e tecer depois as reflexões adequadas. Dizer, v.g., que entre a crise dinástica que substituiu os Borgonha pelos Avis e a conversão forçada dos Judeus por ordem do Afortunado, estariam as batalhas de Aljubarrota e do Toro, o Tratado de Alcáçovas e a Terçaria de Moura, as conjuras dos grandes do reino contra o poder real do biografado, a divisão das terras descobertas e por descobrir acordado em Tordesilhas pelos representantes de Portugal e Castela. Estaria ainda uma sentida incursão pelos sendeiros calcorreados pelo Infante D. Pedro, o Dragão de São Jorge, Cavaleiro do Cisne, Senhor das Sete Partidas, Regente do Reino e Duque de Coimbra, sogro e tio do Africano, sacrificado em Alfarrobeira. Uma mancheia de episódios labirínticos e jogos poder que dariam uma boa série televisiva, caso a RTP dispusesse de verbas idênticas às da BBC para uma produção desta natureza. Assim, resta-nos fantasiar uma mudança radical do panorama mediático português e entretanto contentarmo-nos com as histórias contadas com história dentro, impressas em letra de forma nas páginas dum romance de época inspirado na figura ímpar do Rei-Falcão, o obreiro perfeito dum império minuciosamente sonhado, que o primo, cunhado e sucessor ergueria depois dele.

5 de outubro de 2023

Histórias com história dentro p'ra contar

SELO PORTUGAL
Carta de doação pelo infante D. Afonso Henriques a
Egas Ramires da igreja de São Bartolomeu de Campelo
28 de julho de 1129
[Arquivo Nacional da Torre do Tombo] 
CONDES ‒ REIS  PRESIDENTES
[com  Duques, Infantes, Príncipes e Vice-Reis de permeio]
A substituição solene da Monarquia pela República, formalizada nas varandas da Câmara Municipal de Lisboa em 1910, é celebrada no país com toda a pompa e circunstância que os tempos presentes permitem. Altura para evocar a realização, neste mesmo dia e mês do longínquo ano de 1143, da Conferência de Zamora, que reconhecia a Portugal o estatuto de Reino e ao seu soberano o título de Rei. Um duplo aniversário que os partidários belicosos dos dois regimes rivais revivem de modo distinto  invariavelmente virulento na verbalização emotiva de sentires. Feitios.

Quem ninguém felicita é Vímara Peres, pela tomada de Portus Cale, criação da Presúria do Porto e fundação de Portugal em 868Histórias da História com 1155 anos de idade bem contados, com muitos e variados condes, reis e presidentes a contá-las e alguns duques, príncipes, infantes, vice-reis mais de permeio. falta encontrar uma data precisa para festejar condignamente e em igualdade de direito o nascimento dum país. Até podia ser simbolicamente a 5 de outubro e ganhava-se assim um oportuno três em um à maneira para juntar ao feriado já existente. Ideias.