«Não tenhas medo, miúda. Em todas as histórias há sempre uma ponta de paraíso, um véu de clemência que estende uma ponta, fugaz que seja.»
Maria Velho da Costa, Myra (2008)
Maria Velho da Costa nunca foi uma escritora convencional, nunca pactuou com o facilitismo do verbo feito por peso e medida, nunca se curvou ao gosto estereotipado das leituras inócuas e ingénuas. Sempre escreveu sem papas na língua nem meias-tintas, sem rodeios nem paninhos quentes. Disse sempre o que tinha a dizer e não aquilo que os outros gostariam de ouvir. Contra tudo e contra todos. Em nome individual e coletivo. A polémica gerada em torno das Novas Cartas Portuguesas (1972), tecidas em parceria com Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno – com quem formou as Três Marias – não lhe quebrou o ânimo de prosseguir o rumo pessoal por si traçado de se mover no mundo da literatura. Aquele que sempre se regeu pela recusa dos valores tradicionais anquilosados pelo tempo. A condição feminina tem marcado uma presença constante neste percurso de palavras feitas em forma de letra. O exemplo libertário de Mariana Alcoforado, a religiosa de Beja e presuntiva autora das anónimas Lettres portugaises (1619), a inspiradora atestada da continuação moderna referida, que tanta tinta têm feito correr ao longo de quatro centúrias mal contadas, será depois retomado em muitas outras páginas de ficção romanesca e de feição ensaística. As personagens até podem mudar de nome, identificar-se com uma Maina Mendes (1969), viver em Casas Pardas (1977), rescender aos aromas revolucionários da Lucialima (1983) ou frequentar os ritos místicos da Missa in Albis (1988), que o empenho inconformista da mulher se mantém inalterado. Até à vitória final, diriam os panfletos políticos que a autora só registaria como mero exercício de estilo ou testemunho literário duma época.
O último romance de Maria Velho da Costa conta-nos a vida de Myra (2008), uma jovem imigrante russa em terras lusas, que tanto assume ser apelidada de Sónia, Sophia, Helena, Ekaterina, Catarina, Kate, como ser alcunhada de Mula Ruça e Maria-Flor. Quando a vemos pela primeira vez, encontramo-la entregue à mais perfeita solidão e a caminhar em direção ao mar. Depois, descobre a presença de Rambô, um cão de luta, um cão de morte, um pitbull terrier ferido, tão mais infeliz do que ela, e que, por isso mesmo, furta ao maltrato dos donos e passa a chamar por César, Fritz, Piloto, Douro, Ivan. É que, como a própria trama novelesca regista e as vicissitudes do dia a dia se encarregam de confirmar, um nome é um destino. A relação de amizade entre a criança indefesa e o animal feroz e as peregrinações continuadas dos dois pelos sendeiros do infortúnio conduzem-nos, com alguma fatalidade, aos universos de uma certa picaresca feminina que a inventiva dos séculos de ouro peninsular popularizou. A genealogia algo duvidosa da protagonista, os castigos físicos que lhe são infligidos, a fome, o medo, o abandono a que é votada, as mentiras, os disfarces, as falsas identidades, os encontros fortuitos de caminho, os amos e protetores, o convívio com o vício e a marginalidade, a arte e manha da sobrevivência quotidiana não faltam. Só que o humor tão típico do género prima pela ausência. É o horror que prevalece ao longo de toda a tessitura efabulativa. A ironia bem-disposta que convida a uma boa gargalhada é substituída pelo sarcasmo mais despiedado que imaginar se possa, em que não há lugar a um simples sorriso ou esgare nervoso. Escusado será dizer que a instância narrativa lhe nega um final feliz, para a aproximar ainda mais da própria realidade que nos rodeia. A atual, a pós-moderna, a inaugurada com o terceiro milénio.
A escrita de Maria Velho da Costa é tudo menos simples. Já foi etique-tada de polifónica, labiríntica, fragmentária, caleidoscópica. Myra não foge em muito a este quadro de experimentalismo linguístico. Trata-se dum relato memorialista exposto a várias vozes, na fronteira da pará-bola e da fábula, a poucos passos do realismo mágico da latinidade ibero-americana. O processo de amadurecimento da autora envere-dou para um discurso mais fluido, mais fluente, mais fácil de seguir, talvez por estar centrado na existência duma criança a despertar para a vida, ainda que obrigada a comportar-se como uma adulta a quem negaram o direito à infância e à adolescência. Segundo a lição do texto, expressa pela heroína ao fiel companheiro de adversidade, há sempre mais maus que os maus, Ivan. Mais terríveis do que os terríveis. Amarga consolação para esta nossa inútil passagem pela mundo, esta nossa travessia dum deserto sempre às margens do dano e nas esteiras da dor.
NOTA
Trouxe este texto do Pátio de Letras no Dia Internacional das Migrações|Migrante, proclamado em 2000 pela Assembleia Geral das Nações Unidas e que se celebra desde então em todos os 18 de dezembro do ano.