27 de setembro de 2021

Aniversários de Auschwitz

Felix Nussbaum
Triumph des Todes - Die Gerippe spielen zum Tanz (1944)
[Felix Nussbaum Haus ‒ Osnabrück ‒ Deutschland]

Todos os anos se celebra mais um ano da libertação de Auschwitz, todos os anos se editam livros sobre Auschwitz, todos os anos nos afastamos dos horrores de Auschwitz e, todavia, todos os anos nos aproximamos mais dos totalitarismos inspirados em Auschwitz.

Há oito anos cumpridos hoje, estive à beira de visitar Auschwitz e acabei por me contentar com uma ida rápida ao Bairro Judeu de Cracóvia, o Kazimierz. Faltaram-me as forças anímicas para percorrer os 80km que me separavam do antigo campo de extermínio nazi.

Numa pausa do Congresso de Lusitanistas Polacos realizado na cidade do Vístula*, nem sequer atravessei o rio para visitar o gueto de Podgórze ou até a fábrica de Oskar Schindler, lembrada em 1993 num filme de Steven Spielberg.  Hoje lamento não o ter feito então.

Entre 1940 e 1945, Auschwitz eliminou cerca de três milhões de seres humanos indesejados pelo Terceiro Reich alemão. Passados oitenta anos, o complexo de Auschwitz continua a representar o símbolo mais sinistro do holocausto e da solução final da questão judaica.

Ignoro se voltarei às proximidades de Auschwitz. As viagens são difíceis de planear em tempos de pandemia. Só sei que perderei os pruridos e entrarei a homenagear todos os que por lá passaram. A sua memória exige-o para que atos semelhantes se não repitam.

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NOTA
(*) - Na Universidade Jagellónica de Cracóvia, em setembro de 2013.

22 de setembro de 2021

Hélia Correia, uma bastardia azul com sereias, bruxas e desejos de ver o mar

 
«Moisés sentia a estranha comoção que transtornava os tios. Na cozinha, as mu-lheres retomavam o silêncio com que, a princípio, o tinham recebido. E as con-versas na cavalariça, sendo os dias tão curtos, resultavam mais apressadas. Pou-co conseguia que os fregueses falassem sobre o mar. No entanto, ele se acos-tumara a servir-se dos próprios pensamentos. Imaginava o dia do encontro com aquele grande azul que se estendia, semelhante a um prado que florisse. A ob-sessão tomara conta dele como alguém que o tivesse sequestrado. Tudo o que via e ouvia era filtrado, enquadrado na sua perspetiva. Confiava em que os tios o levariam, tarde ou cedo, à Vieira. Não pensava que, com aquela espécie de tra-balho, não desfrutavam dos prazeres do verão, quando abundavam os pedidos de cavalos e de carros abertos.»
Hélia Correia, Bastardia (2005)

Habituei-me às palavras de Hélia Correia na Arte poética (1972), expressa nos versos de intervenção, resistência e luta, cantados e musicados por Jorge Letria, e passados depois de mão em mão como um instante de pão. Seguiram-se os relatos breves das novelas a resvalar para a dimensão mais longa de um ou outro romance. Com este percurso pela escrita, foi laureada com os mais altos prémios literários nacionais, com um destaque para o Prémio Camões (2015), bem como o de ter sido listada pela Asociación de Escritoras e Escritores em Lingua Galega como uma Escritora Galega Universal (2017).

As cerca de seis dezenas de páginas de Bastardia (2015), o mais recente livro que chegou até mim da sua lavra, remete-nos para a órbita restrita do conto, uma categoria ficcionada composta em prosa e de natureza épico-narrativa, forma genérica assente num tema particular e episódico em que também se tem vindo a destacar. A história que aqui nos traz está concentrado no destino trágico de Moisés - etimologicamente, o que foi tirado das águas -, um herói mítico nascido fora do matrimónio materno, gerado numa noite de bruxedo e que passou a sua curta existência convicto de ser filho do mar e irmão das sereias.

Uma navegação solitária pela rede das redes informáticas, em busca da duvidosa legitimidade de algumas cabeças coroadas ou por coroar da nossa da monarquia pretérita, conduziu-me de modo casual a essa outra ligação bastarda com raízes bíblicas profundas judaico-cristãs, composta com o engenho e arte habituais a que a escritora e tradutora portuguesa nos habituou. Descobri também, na sequência dessa pesquisa, ter inspirado a veia criadora de Paula Rego em quatro telas inéditas, cuja sensibilidade estética a levou a adjetivar o texto de maravilhoso. Assim o descreveu a Colin Wiggins, aquando da exposição The Boy Who Loved the Sea and Other Stories, organizada pela Jerwood Gallery de Hastings, entre 21 de outubro de 2017 e 7 de janeiro de 2018. Melhor elogio seria difícil de coligir e dispensa mais encómios verbais se os visuais valem mais do que mil palavras.

As mulheres-pássaros da mitologia helénica são transfiguradas nas mulheres-peixes do imaginário medieval escandinavo que sem se dar conta se lhe seguiu. Essas irmãs híbridas do azul marinho das águas superficiais mediterrânico-bálticas ou do azul celestial profundo dos sonhos irrealizáveis, semicobertas de escamas brilhantes ou de penas douradas, simbolizam a autodestruição dos desejos e paixões fatais de todos os aventureiros pelágicos, aqueles que não souberam resistir como Ulisses à atração erótica de Afrodite e se deixaram submergir no reino gelado de Poseidon. Na singela ingenuidade retratada na fábula, está representada a fronteira indeterminada entre a epopeia/tragédia dum herói/anti-herói singular, dum ser solitário intemporal em busca da plenitude unificadora do nada que é tudo ou da morte que é vida.

17 de setembro de 2021

Uma língua de palmo e 1/2 ao pescoço ou zipada por inteiro na boca

«- Nosso Ford - ou Nosso Freud, como, por alguma razão impenetrável, ele gostava de se chamar quando falava de questões psicológicas - Nosso Freud foi o primeiro a reve-lar os tenebrosos perigos da vida familiar. O mundo estava cheio de pais e, por conse-quência, cheio de miséria; cheio de mães e, por consequência, cheio de toda a espécie de perversões, desde o sadismo até à castidade; cheio de irmãos e irmãs, de tios e tias - cheio de loucura e suicídio.»
Aldous Huxley, Admirável mundo novo (1931 | s.d.: , 53)
«- Não vês que o significado da novilíngua é precisamente restringir o campo do pensa-mento? Acabaremos por fazer com que o crimepensar seja literalmente impossível, pois não haverá palavras para o exprimir. Todos os conceitos de que possamos ter necessida-de serão expressos cada um deles, exclusivamente por uma palavra, de significação rigo-rosamente definida, sendo eliminados e votados ao esquecimento todos os seus sentidos subsidiários. Na Décima Primeira Edição [Dicionário de Novilíngua] já não estamos longe desse objetivo. Mas o processo continuará muito depois de tu e eu termos morri-do. Ano após anos, cada vez menos palavras, e o alcance da consciência cada vez mais limitado. Mesmo hoje, como é evidente, não há motivo ou desculpa para se cometer um crimepensar. Simples questão de autodisciplina, de controlo da realidade. Mas no futuro nem mesmo isso será necessário. A Revolução ficará completa quando a língua for per-feita, A Novilíngua é o SOCING e o SOCING é a novilíngua - acrescentou  com uma espécie de exaltação mística - Já alguma vez pensaste, Winston, que no ano 2050, o mais tardar, não haverá um único ser humano capaz de entender uma conversa como a que estamos a ter agora?»
George Orwell, 1994 (1949 |  1999: , 5; 58 )
LINGUAJARES

Li tempos que as palavras «mãe» e «pai» podiam vir a sair dos formulários escolares gauleses. Serão substituídas por «responsável e «responsável 2», afastada que está a hipótese também ela problemática de «progenitor 1» e «progenitor 2». Os mass media onde estes faits divers são comunicados ao mundo já haviam noticiado, na devida altura, que o governo desse mesmo país do além-Pirenéus vetara a chamada «linguagem inclusiva» em textos oficiais, com o beneplácito da Académie française. Vá-se lá entender esta discrepância de critérios do politicamente correto no que à igualdade de género e afins se refere. Frescuras do momento, como diria um colega e amigo meu a este propósito.

Desconheço qual terá sido a evolução desta polémica fora das fronteiras linguísticas portuguesas. Só sei que de vez em quando as diatribes sobre estas verdadeiras questiúnculas de lana-caprina assentes no género biológico e gramatical das palavras vêm à baila num tom cada vez mais acirrado, ortodoxo e dogmático. O emprego de determinadas formas verbais em detrimento doutras tem vindo a proliferar a grande velocidade, como cogumelos bravios em terreno húmido. Qualquer dia seremos obrigados a tirar um curso extra de novilíngua para nos curarmos dos crimepensar homofóbicos, transfóbicos e quejandofóbicos da velhilíngua. A bizantinice medieval voltou a pisar o palco para rediscutir o sexo dos anjos.

Na dúvida de registar um «æ», «@», «o-a/a-o», «e/Ə» ou «x» em final dos substantivos-adjetivos, não uso nenhum, até porque depois seria incapaz de os pronunciar. É que quer queiramos ou não, a linguagem verbal é linear e não admite, como a música instrumental, produzir dois sons ao mesmo tempo ou captá-los como se se tratasse duma pintura a 2D ou duma escultura a 3D. O acorde acústico da voz humana é impossível de produzir sem se recorrer a uma qualquer tecnologia de ponta. A língua de palmo e 1/2 à volta do pescoço necessária para proceder ao desdobramento inclusivo adequado do discurso oral arrisca-se assim a deixá-la zipada por inteiro na boca para não correr o risco de ser politicamente incorreta.

A permuta dum «-a/-o» por um qualquer neografismo inclusivo, na tentativa inglória de resolver a quadratura do círculo, será sempre uma redução ao absurdo. É nesse sentido, que me dá vontade de divulgar uma nova proposta tão estapafúrdia como as já postas em curso. Foi sugerida há mais duma década por um outro amigo e colega que gostava de brincar com estes sufocos existenciais. A seu ver, tudo se resolveria se juntássemos a perninha para cima do «σ» com a perninha para baixo do «α» para obter um «∝» e pronunciar «ə», como se fosse uma vogal neutra. Digamos que não serviria para nada, que a ortografia é assexual, mas ficaria muito bem nos meus registos escritos e, quem sabe, se nos orais também.

          Velhilíngua - Crimepensar - Novilíngua          
[CELACC]

13 de setembro de 2021

Alhos e bugalhos a trouxe-mouxe

Christelle Frobert
« Dialogue de sourd »

In illo tempore, quando ainda tinha um ouvido de tísico, ouvi sem ser visto um animado bate-papo, travado em português pelo meu amigo João e em francês pela minha amiga Gigi. Como nem um nem outro percebia a língua do outro, resultou num verdadeiro diálogo de surdos, em que os alhos e bugalhos se trocaram a trouxe-mouxe sem se darem conta do facto, enquanto tomavam um peti dej animado naquela manhã tranquila de férias de verão. Só terminou quando transpus a porta indiscreta que ligava as duas divisões contíguas onde nos encontrávamos. Ao verem-me, manifestaram grande satisfação por se terem entendido tão bem sem precisarem de intérpretes a ajudá-los.

Mutatis mutandi, os diálogos de surdos com alhos e bugalhos mudam de figura quando se travam num mesmo idioma com a presença dum duro-de-ouvidos e somos levados a encarar a gradual falência registada na captação deficiente dos sons do mesmo modo como um analfabeto olha para uma BD. Vê os balões mas não os entende. Segue a história através das imagens mas sempre dum modo aproximado. Quem começa a perder a audição, ouve os sons sem os distinguir uns dos outros. A cadeia sonora transforma-se num ruído contínuo sem que o sentido da totalidade das palavras se entenda. É como se se estivesse a ouvir uma língua estranha, indecifrável, sem sair da sua.

L'OREILLE TROMPETTE DU PROFESSEUR TOURNESOL
Hergé, Les aventures de Tintin. Objectif lune (Casterman : 1953, 8)

Hic et nunc, resolvi-me a andar com um Ferrari alojado atrás das orelhas. Aliás, uma mezza macchina cinzenta em cada uma delas, para não dar muito nas vistas como as vermelhas tradicionais. Esta corneta acústica sofisticada dos nossos dias terá como missão ajudar-me a destrinçar com nitidez cirúrgica os alhos dos bugalhos, num diálogo de sonoridades audíveis, claras e percetíveis, sem ter de recorrer à leitura dos lábios, agora escondidos pelas máscaras de proteção pandémica. Ando já há alguns dias a fazer a rodagem e os resultados esperados são francamente animadores. Entretanto, neste querer/não-querer simultâneo, vou pilotando em velocidade de cruzeiro até ao final do teste em curso. A ouvir vamos...

L'oreille acoustique

9 de setembro de 2021

Haruki Murakami, os meses de outubro a dezembro do ano de 1Q84-3

「天吾は座り心地の悪い椅子の上で、その画像を熱意もなく目で追いながら、『空気さなぎ』のことを考えた。その文章を実際に書いたのが自分であることを、安達クミは知らない。しかしそれはどうでもいい。問題は空気さなぎについて具体的に細密に描写しながら、天吾自身はその実体についてほとんど何も知らないということだ。空気さなぎとは何か、マザとドウタとは何を意味するのか、『空気さなぎ』を書いていたときにもそれはわからなかったし、今でもわからない。にもかかわらず、安達クミはその本を気に入って、三度も読み返している。どうしてそんなことが起こり得るのだろう?」
村上春樹, 「1Q84-3」(2010) 

A viagem do olhar pelo derradeiro painel do retábulo, esquissado por Haruki Murakami no livro 3 (outubro-dezembro) do 1Q84 (2010), chegou ao fim e, com ela, o tríptico verbal revelado nas 1450 páginas que lhe serviram de tela. Muitas das propostas genéricas sugeridas nas etapas anteriores confirmaram a sua presença estrutural efetiva e até agregaram outras hipóteses desenvolvidas neste enigmático mundo-com-um-ponto-de-interrogação. O insólito continua inalterado de cabo a rabo, num percurso gizado entre o universo natural do Estranho e o sobrenatural do Maravilhoso, reduzindo ao mínimo indispensável algumas das hesitações do Fantástico definidas por Tzvetan Todorov*. Para Umberto Eco**, em contrapartida, seria a exemplificação dum cenário alotópico perfeito, i.e., aquele em que se passam coisas inexplicáveis pela ciência mas perfeitamente possíveis pelo poder criativo da imaginação.

O desenho triangular das histórias da amor e aventuras peregrinas é tão antiga como a própria ficção helénica de feição novelesca. Assim o dão a entender os mais antigos fragmentos anónimos que até nós chegaram, conhecidos por Nino e Semíramis (séc AEC), em honra dos protagonistas histórico-lendários identificados, depois canonizados no Quéreas e Calírroe de Cáriton de Afrodísias. O encontro-desencontro-reencontro de Aomame e Tengo não fogem a este esquema matricial, podendo perfeitamente figurar no título da trilogia nipónica atual. Os ingredientes paulatinamente explanados em cada um dos livros/tábuas considerados, pautados pelo amor à primeira vista da infância, os obstáculos sentidos na adolescência e a reunião dos dois na maturidade, remate lógico simbolicamente situado num parque infantil de Tóquio.

O caráter compósito do texto afirma-se ainda mais na sua reta final. Quando julgávamos que o destino dos heróis estava traçado, surge a figura sinistra de Ushikaw - o detetive particular trazido da Crónica do pássaro de corda (1994-95) - a retardar o happy end esperado. A passagem de antagonista subalterno a anti-herói com direito a título de capítulo faz-se sem aviso prévio. O ambiente de thriller entra em cena, numa tentativa de encontrar o fio da meada perdido num labirinto de mistérios insondáveis. A menção aos sete tomos do Em busca do tempo perdido de Marcel Proust, à África minha de Isak Disen/Karen Blixen ou a A cidade dos gatos de Sakutarō Hagiwara, vêm demonstrar que a literatura pode ser tida com um grande rio onde afluem as águas oriundas de muitas fontes, a que podemos associar o poder unificador da música. Tal o caso da Sinfonietta de Janáček, mas também as composições de Mahler, Haydn, Bach, Vivaldi ou Sibelius, para só falar em alguns dos clássicos citados.

Mais do que as memórias dinesianas ou da recuperação proustiana dos vinte anos perdidos pelo casal murakamiano, a visão orwelliana atua como um mise en abyme, um romance dentro do romance,  i.e., do 1984 no 1Q84. O desconhecimento pessoal da realidade japonesa impede-me de me alargar muito a esse respeito, mas a violência doméstica, as seitas religioso-políticas, a intolerância ortodoxa, a solidão coletiva numa grande metrópole e os fundamentalismos de toda a espécie são temas universais nos nossos dias. A distopia inglesa remete para um avanço espácio-temporal de 1/4 de século sobre a data da sua publicação, a distopia nipónica procede a um recuo simétrico de 1/4 de século da sua mutação numa ucronia peculiar, que se pode arrastar até aos nossos dias, o da escrita do roman-fleuve e o da leitura do mesmo.

Muito fica por dizer sobre esta metáfora global da alienação urbana à procura duma utopia rural, da alucinação onírica a alternar com uma. lucidez real, da fantasia delirante ao factual quotidiano. Lacunas que deverão ser colmatadas com a leitura atenta das histórias contadas, a nuclear e as encaixadas, as próprias e as alheias, as começadas num in medias res estratégico e deixadas por terminar num open ending imaginárioA inclusão numa fábula pós-moderna d'A crisálida de ar - a composta por uma jovem disléxica de 17 anos e convertida num bestseller pela reescrita formal dum romancista praticante de 30 - ajuda-nos a decifrar a feição exotérica do oculto, convocada na sua totalidade pelo caráter alegórico da relato triádico. A cabra morta a simbolizar a passagem do povo pequeno das nina (filhas) e das (mães), do mundo paralelo e das duas luas, para o mundo concreto da lua solitária observável num céu sem nuvens. Lidos os livros, venham muitos mais a oferecer-nos viagens num universo sem fronteiras físicas, sem entradas/saídas bloqueadas a separar-nos uns dos outros, sem as barreiras visíveis/invisíveis a limitarem o sonho que comanda a vida.

NOTA
(*) Tzvetan Todorov, Introdução à literatura fantástica. Lisboa: Moraes Editores, 1977.
(**) Umberto Eco, «Os mundos da ficção científica», IN Sobre os espelhos e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989.
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EPÍGRAFE
«Sentado no assento pouco confortável, enquanto seguia as imagens sem deixar transparecer no seu olhar qualquer espécie de entusiasmo, Tengo deu por si a pensar n'A Crisálida de Ar. Kumi Adachi desconhecia até que ponto ele participara na redação do livro, mas isso não tinha importância. O problema era que ele mesmo, apesar de ter descrito a crisálida de ar com um pormenor considerável, não sabia quase nada acerca dela. Quando se pusera a reescrever o romance, não fazia a mínima ideia do que era a crisálida de ar, nem o que  significavam "mã" e "nina", e continuava sem saber. Ainda assim, Kumi Adachi gostara do livro e tinha-o lido três vezes. Como era possível?»
Haruki Murakami, 1Q84-3 (Lx, CdL: 9, 160)

6 de setembro de 2021

Palavras em contracorrente

VINCENZO FOPPA
Fanciullo che legge Cicerone
Affresco staccato dal Banco Mediceo a 
Milano, c. 1464
[London, The 
Wallace Collection]
« Sept correspond aux sept jours de la semaine, aux sept planètes, aux sept de-grés de la perfection, aux sept sphères ou degrés célestes, aux sept pétales de la rose, aux sept têtes du naja d'Angkor, aux sept branches de l'arbre cosmique et sacrificiel du chamanisme [...] Il symbolise un cycle complet, une perfection dy-namique. Chaque période lunaire dure sept jours et les quatre périodes du cycle lunaire (7 x 4) ferment le cycle. Philon observe à ce propos que la somme des sept premiers nombres (1 + 2 + 3 + 4 + 5 + 6 + 7) arrive au même total : 28. Sept indique le sens d'un changement après cycle accompli et d'un renouvelle-ment positif. »
J. Chevalier et A. Cheerbrant, Dictionnaire des symboles : Mythes, rêves, coutumes, gestes, formes, figures, couleurs, nombres. Paris : Robert Laffont – Jupiter, 1969, 1982 (860a)

 NU Á RI O

Conta-corrente entre livros, escritas & leituras

A gestão dos ais foi mitigada nesta sétima temporada no blogue com o recurso às leituras, às escritas e aos livros, com a música, a arte e o lazer em pano de fundo. Devorei o Quarteto de Alexandria do Lawrence Durrell e o 1Q84 do Haruki Murakami, deliciei-me com a criatividade da Pina Bausch, sobretudo no Kontakthof para damas e cavalheiros acima dos 65, descobri a Sinfonietta do Leoš Janáček e aprendi muito sobre as Poses: linguagem corporal na arte.

O déjà vu de 2020 estendeu os seus tentáculos até 2021. Os anos atípicos do SARS-CoV-2 teimam em manter a sua presença viral dia após dia, semana após semana, mês após mês, vaga após vaga, máscara após máscara, teste após teste. Ininterruptamente. Sem parar. Trouxeram consigo uma conta-corrente ainda mais intensa de livros, escritas e leituras. Nem tudo se pode dar como perdido por completo nesta visita prolongada sem fim à vista. Até quando...

cd

As Histórias d'Arthur d'Algarbe cumprem hoje sete anos de vida e a vontade de continuar é tão forte como no primeiro dia. Se possível sem pandemias virais a contaminar os novos ciclos que se perfilam no horizonte. Que venham como ventos de mudança, anunciadores da permuta há muito tempo desejada, a animar-nos a existência, com muita música no ar, a motivar-nos para a leitura de mais livros, a inspirar-nos sempre para novas escritas e vivências.