「天吾は座り心地の悪い椅子の上で、その画像を熱意もなく目で追いながら、『空気さなぎ』のことを考えた。その文章を実際に書いたのが自分であることを、安達クミは知らない。しかしそれはどうでもいい。問題は空気さなぎについて具体的に細密に描写しながら、天吾自身はその実体についてほとんど何も知らないということだ。空気さなぎとは何か、マザとドウタとは何を意味するのか、『空気さなぎ』を書いていたときにもそれはわからなかったし、今でもわからない。にもかかわらず、安達クミはその本を気に入って、三度も読み返している。どうしてそんなことが起こり得るのだろう?」
村上春樹, 「1Q84-3」(2010)
A viagem do olhar pelo derradeiro painel do retábulo, esquissado por Haruki Murakami no livro 3 (outubro-dezembro) do 1Q84 (2010), chegou ao fim e, com ela, o tríptico verbal revelado nas 1450 páginas que lhe serviram de tela. Muitas das propostas genéricas sugeridas nas etapas anteriores confirmaram a sua presença estrutural efetiva e até agregaram outras hipóteses desenvolvidas neste enigmático mundo-com-um-ponto-de-interrogação. O insólito continua inalterado de cabo a rabo, num percurso gizado entre o universo natural do Estranho e o sobrenatural do Maravilhoso, reduzindo ao mínimo indispensável algumas das hesitações do Fantástico definidas por Tzvetan Todorov*. Para Umberto Eco**, em contrapartida, seria a exemplificação dum cenário alotópico perfeito, i.e., aquele em que se passam coisas inexplicáveis pela ciência mas perfeitamente possíveis pelo poder criativo da imaginação.
O desenho triangular das histórias da amor e aventuras peregrinas é tão antiga como a própria ficção helénica de feição novelesca. Assim o dão a entender os mais antigos fragmentos anónimos que até nós chegaram, conhecidos por Nino e Semíramis (séc. Ⅰ AEC), em honra dos protagonistas histórico-lendários identificados, depois canonizados no Quéreas e Calírroe de Cáriton de Afrodísias. O encontro-desencontro-reencontro de Aomame e Tengo não fogem a este esquema matricial, podendo perfeitamente figurar no título da trilogia nipónica atual. Os ingredientes paulatinamente explanados em cada um dos livros/tábuas considerados, pautados pelo amor à primeira vista da infância, os obstáculos sentidos na adolescência e a reunião dos dois na maturidade, remate lógico simbolicamente situado num parque infantil de Tóquio.
O caráter compósito do texto afirma-se ainda mais na sua reta final. Quando julgávamos que o destino dos heróis estava traçado, surge a figura sinistra de Ushikaw - o detetive particular trazido da Crónica do pássaro de corda (1994-95) - a retardar o happy end esperado. A passagem de antagonista subalterno a anti-herói com direito a título de capítulo faz-se sem aviso prévio. O ambiente de thriller entra em cena, numa tentativa de encontrar o fio da meada perdido num labirinto de mistérios insondáveis. A menção aos sete tomos do Em busca do tempo perdido de Marcel Proust, à África minha de Isak Disen/Karen Blixen ou a A cidade dos gatos de Sakutarō Hagiwara, vêm demonstrar que a literatura pode ser tida com um grande rio onde afluem as águas oriundas de muitas fontes, a que podemos associar o poder unificador da música. Tal o caso da Sinfonietta de Janáček, mas também as composições de Mahler, Haydn, Bach, Vivaldi ou Sibelius, para só falar em alguns dos clássicos citados.
Mais do que as memórias dinesianas ou da recuperação proustiana dos vinte anos perdidos pelo casal murakamiano, a visão orwelliana atua como um mise en abyme, um romance dentro do romance, i.e., do 1984 no 1Q84. O desconhecimento pessoal da realidade japonesa impede-me de me alargar muito a esse respeito, mas a violência doméstica, as seitas religioso-políticas, a intolerância ortodoxa, a solidão coletiva numa grande metrópole e os fundamentalismos de toda a espécie são temas universais nos nossos dias. A distopia inglesa remete para um avanço espácio-temporal de 1/4 de século sobre a data da sua publicação, a distopia nipónica procede a um recuo simétrico de 1/4 de século da sua mutação numa ucronia peculiar, que se pode arrastar até aos nossos dias, o da escrita do roman-fleuve e o da leitura do mesmo.
Muito fica por dizer sobre esta metáfora global da alienação urbana à procura duma utopia rural, da alucinação onírica a alternar com uma. lucidez real, da fantasia delirante ao factual quotidiano. Lacunas que deverão ser colmatadas com a leitura atenta das histórias contadas, a nuclear e as encaixadas, as próprias e as alheias, as começadas num in medias res estratégico e deixadas por terminar num open ending imaginário. A inclusão numa fábula pós-moderna d'A crisálida de ar - a composta por uma jovem disléxica de 17 anos e convertida num bestseller pela reescrita formal dum romancista praticante de 30 - ajuda-nos a decifrar a feição exotérica do oculto, convocada na sua totalidade pelo caráter alegórico da relato triádico. A cabra morta a simbolizar a passagem do povo pequeno das nina (filhas) e das mã (mães), do mundo paralelo e das duas luas, para o mundo concreto da lua solitária observável num céu sem nuvens. Lidos os livros, venham muitos mais a oferecer-nos viagens num universo sem fronteiras físicas, sem entradas/saídas bloqueadas a separar-nos uns dos outros, sem as barreiras visíveis/invisíveis a limitarem o sonho que comanda a vida.
NOTA
(*) Tzvetan Todorov, Introdução à literatura fantástica. Lisboa: Moraes Editores, 1977.
(**) Umberto Eco, «Os mundos da ficção científica», IN Sobre os espelhos e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989.
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EPÍGRAFE
«Sentado no assento pouco confortável, enquanto seguia as imagens sem deixar transparecer no seu olhar qualquer espécie de entusiasmo, Tengo deu por si a pensar n'A Crisálida de Ar. Kumi Adachi desconhecia até que ponto ele participara na redação do livro, mas isso não tinha importância. O problema era que ele mesmo, apesar de ter descrito a crisálida de ar com um pormenor considerável, não sabia quase nada acerca dela. Quando se pusera a reescrever o romance, não fazia a mínima ideia do que era a crisálida de ar, nem o que significavam "mã" e "nina", e continuava sem saber. Ainda assim, Kumi Adachi gostara do livro e tinha-o lido três vezes. Como era possível?»
Haruki Murakami, 1Q84-3 (Lx, CdL: 9, 160)